Artigo escrito por Paulo Roberto Guedes*
Constatado que a pandemia do Covid-19 transformou-se em um problema crônico e que ‘importunará’ a humanidade por muito mais tempo (1), muito tem sido discutido a respeito “de como tudo ficará” quando ela, pelo menos, amenizar seus impactos negativos e alcançar níveis menos intensos e letais.
Utilizei a palavra ‘tudo’ na frase anterior, posto que as consequências geradas pela pandemia, muitas das quais permanecerão por longo tempo, estão em todos partes do mundo e em todos os setores da sociedade. A “desorganização” foi grande e total. De se ressaltar, ainda, um significativo desconhecimento a respeito de muitas outras possíveis.
De fato, é fundamental que se discutam presente e futuro. Como resolver a crise pandêmica atual e como estabelecer bases de desenvolvimento para o futuro, posto que muita coisa precisará ser cancelada, alterada, adaptada ou refeita.
Ao estabelecer a agenda mundial até 2030, a Organização das Nações Unidas (ONU), em setembro de 2015, portanto antes desta nova fase da pandemia, ditou os 17 principais “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável” (ODS). Vale relembrá-los: Erradicação da Pobreza, Fome Zero e Agricultura Sustentável, Saúde e Bem-Estar, Educação de Qualidade, Igualdade de Gênero, Água Potável e Saneamento, Energia Limpa e Acessível, Trabalho Decente e Crescimento Econômico, Indústria, Inovação e Infraestrutura, Redução das Desigualdades, Cidades e Comunidades Sustentáveis, Consumo e Produção Responsáveis, Ação Contra a Mudança Global do Clima, Vida na Água, Vida Terrestre, Paz, Justiça e Instituições Eficazes, e Parcerias e Meios de Implementação.
Já na reunião do Fórum Econômico Mundial de 21 a 24/01/2020 (também ainda antes desta pandemia), em Davos na Suíça, a pauta principal foi: Como Salvar o Planeta, Sociedade e Futuro do Trabalho, Tecnologia para o Bem, Economias mais Justas, Melhores Negócios, Futuros Saudáveis, e Além da Geopolítica. Naquela reunião Ângela Merkel, chanceler alemã, disse: “o modelo industrial com o qual o mundo se acostumou nas últimas décadas terá de ser abandonado nos próximos 30 anos”.
Portanto, como se nota, muitos dos problemas que estamos hoje enfrentando e discutindo não são novos, sendo que grande parte deles (se não todos!) foi gerado pelo próprio ser humano. Muitos poderiam até ser evitados (2) ou, no mínimo, terem seus impactos negativos reduzidos. Não tenho dúvidas que uma grande parte dos problemas da humanidade tem suas soluções conhecidas, mas que, infelizmente e por motivos diversos, não podem ser implementadas.
É o caso, por exemplo, dos chamados “desastres naturais”, posto que muitos ocorrem ou são frutos da forma predatória como o homem explora a natureza, sem que providências mais drásticas sejam tomadas. O relatório da Organização Meteorológica Mundial, da ONU, indica que em 50 anos, de 1970 a 2019, e em todo o mundo, os desastres naturais mataram cerca de dois milhões de pessoas e causaram prejuízos na ordem de US$ 3,4 trilhões (3).
A “fome” e a “miséria” são outros exemplos. Aproveito material publicado na revista Nexo, em 22 pp, por Anna Maria de Castro (“Josué de Castro e a descoberta da fome”), pois no Brasil, ao escrever em 1946, o livro a “Geografia da Fome”, o geógrafo brasileiro Josué de Castro já afirmava que a fome não era um problema natural (grifos meus), isto e?, não dependia nem era resultado dos fatos da natureza – ao contrário, era fruto de ações dos homens, de suas opções, da condução econômica que davam a seus países” (grifos meus). Nada mais verdadeiro (4).
Não é difícil concluir que, na medida em que os poderes constituídos e as classes dirigentes não conseguiam dar solução a esses problemas, independentemente das causas, as dúvidas e a tensão só aumentaram, assim como as incertezas com relação ao futuro. Não à toa, já no início deste século vivíamos o que muitos chamavam de “era das incertezas”, na qual quase todos valores anteriormente aceitos, tais como Democracia, Capitalismo ou Globalização, por exemplo, passaram a ser questionados. Depois a pandemia se encarregou de piorar tudo. Diante portanto, da própria incapacidade do ser humano para compreender e aceitar – que dirá resolver – os principais problemas do mundo, movimentos mais intensos e firmes de contestação começaram a ‘pipocar’ em todo o planeta e a impactar o “status quo” vigente.
Mas como também não é novidade, os mais atingidos, e de forma muito mais cruel, sempre foram – e parece que infelizmente por muito mais tempo ainda serão - as populações mais pobres e carentes, até porque muito mais vulneráveis a problemas como a inflação, o desemprego, a falta de saneamento básico e de infraestrutura, de assistência médico-hospitalar, de vagas nas escolas ou nas creches, de violência urbana e oriundos da “fome”, da “miséria” e dos “desastres naturais”.
Aliás, mesmo em momentos nos quais a “solidariedade” e a “fraternidade” aparecem como valores maiores, são essas mesmas populações as que mais padecem, como demonstram diariamente os noticiários ao registrarem a falta de vacinas contra a covid nos países mais pobres, ao mesmo tempo em que sobram nos países mais ricos.
Não há qualquer dúvida, a retomada e a qualidade da estabilidade, do crescimento e do desenvolvimento econômico e social de um País, ocorrerá em condições e tempos completamente diferentes, dependendo do nível de organização e de reação que esse País tiver. O que dirá naqueles cujos governos são corruptos, medíocres, incapazes e/ou irresponsáveis?
O Relatório da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), por exemplo, indica que os 46 países menos desenvolvidos, dentre eles o Brasil, além de serem obrigados a “suprir deficiências institucionais, econômicas e sociais” instaladas anteriormente e já a algum tempo, ainda “dependerão de ajuda internacional para investir no sistema de produção e na preparação de sua população para os desafios do crescimento e do progresso”. O relatório também indica o que fazer, mas alerta sobre a necessidade de se ter governos e lideranças competentes e direcionadas a resolver problemas concretos (“Também a recuperação é desigual”, artigo publicado dia 02/10/21 no Estadão).
Ressalve-se que às vezes os governos e as lideranças não sabem como dar soluções a problemas como esses ou porque não tem instrumentos adequados, mas na maioria das vezes porque não querem, já que estão somente ocupados em atender seus interesses próprios. Aliás, quando analisamos o Brasil, trabalhar apenas para resolver seus problemas, em qualquer tempo ou circunstância e sem qualquer arrependimento, parece ser uma característica típica da classe dirigente brasileira, política ou empresarial. Apenas um exemplo, dentre centenas, de interesses particulares sobrepondo-se aos coletivos: o jornalista Lauriberto Pompeu (Estadão de 02/10/21), baseando-se em estudo feito pelo Centro de Liderança Pública (CLP) a respeito dos impactos gerados pelo atraso da aprovação do projeto que limita super salários no serviço público, relatou que cerca de R$ 213 milhões por mês, em média, são gastos à mais para pagar a parte dos salários que estão acima do limite vigente. E como essa quantia deixou de ser economizada desde dezembro de 2016, pois ainda se encontra em discussão na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado, a estimativa é a de que, em um governo que acumula déficits seguidos nas contas públicas, indevidamente foram gastos quase R$ 13 bilhões!
Inevitavelmente, um País como o Brasil, com uma economia que não consegue crescer de forma sustentável e em níveis satisfatórios, com altíssimos índices de desigualdade, de concentração de renda, de analfabetismo, de miséria e de desemprego, com péssimos serviços públicos, notadamente nas áreas da saúde e da educação e que trata o meio ambiente com total descaso, apenas para citar alguns exemplos, tem agravadas suas crises e posicionam o País cada vez mais distante do desenvolvimento.
Portanto, ao se estabelecer projetos para o futuro, não se pode, simplesmente, querer voltar ao “normal”, pois isso apenas equivaleria a “tirar o bode da sala”. Resolver o problema da pandemia e voltar ao “normal” é continuar com todos os problemas citados anteriormente, que tão mal tem feito à grande maioria da população deste País. O mundo, e mais notadamente o Brasil, precisam de muito mais. Um simples, mas terrível exemplo: segundo o IBGE, antes da pandemia, em 25% dos domicílios brasileiros nenhum morador disponha de renda do trabalho e agora no 2º trimestre de 2021, em plena pandemia, 28,5%. Voltar ao normal é ter 25% de residências brasileiras sem renda do trabalho?
Pois é, simplesmente repetir parte do que se fez até agora, além de não resolver problemas estruturais sérios e condenar nossa economia ao “eterno processo de desenvolvimento”, ainda facilitará os movimentos antidemocráticos, autoritários e de intolerância! Como já se viu antes e agora, excelente campo de atuação para demagogos, populistas e ditadores, de esquerda ou de direita.
O Brasil não pode limitar-se apenas às diversas, imprescindíveis e necessárias reformas estruturais ou da adoção de novas e mais modernas tecnologias, de processos produtivos mais sofisticados ou de interconectividade, mas sim, iniciar um movimento que aumente o grau de conscientização de seus habitantes com respeito a tudo que envolve a sociedade, cujo principal objetivo tem que ser o próprio ser humano.
Será que todos – governantes e governados, empresários e trabalhadores, militares e civis - estamos preparados para compreender que “as coisas não andam bem” e que, individual ou coletivamente, todos nós somos responsáveis? Que cada vez mais dependemos das outras pessoas e da natureza? Que não haverá um mundo melhor se não protegermos o meio ambiente e a saúde das pessoas? Que para melhorar o mundo é essencial o esforço de todos, e não somente de alguns? Que sem políticas sérias na Saúde e na Educação (5) a diferença entre ricos e pobres somente tende a aumentar? E que em um mundo cada vez mais desigual ninguém terá ‘sossego’?
Eu tenho absoluta certeza que as empresas, até pelo que tenho visto em consultorias, seminários, fóruns e apresentações diversas, irão investir em inovação, modernização das plantas operacionais e treinamento, com o objetivo de aumentar a produtividade, a competitividade e o lucro, até porque é a razão de suas existências (tudo pelo ROI, retorno sobre investimentos), mas será que elas terão o mesmo ímpeto diante de motivos mais coletivos e nobres, nos quais o lucro talvez não seja o principal objetivo?
Estará o mundo empresarial, em particular, pronto para compreender, como defendido pelo movimento “Capitalismo Consciente” (6), que “os negócios são bons quando criam valores para todos, éticos porque baseados na troca voluntária, nobres porque elevam a existência, heroicos porque tiram as pessoas da pobreza e promovem a prosperidade”?
Grande parte do empresariado, inclusive aqui no Brasil, já vem se movimentando com relação aos problemas gerados pelas mudanças climáticas e buscando soluções que protejam o meio ambiente (7), mas elas também precisam aumentar a abrangência de suas atitudes e compreender, por exemplo, que enquanto houver desigualdade social em níveis altos e sem perspectiva de melhora, o nível de desenvolvimento dessa sociedade será baixo e correndo riscos enormes.
Pessoas com saúde (inclusive mental, considerando os efeitos da pandemia (8)) e seguras, não só cuidam bem de suas famílias e colaboram para transformar o mundo em um lugar melhor para se viver, como também trabalham e produzem muito mais!
Enfim, será que estamos preparados, como escreveu Jacques Attali em seu livro aqui já citado, para sairmos da “economia da sobrevivência” e irmos para uma “economia da vida” (9), um dos principais caminhos para “evitar que as crianças de hoje sofram com uma pandemia aos 10 anos, uma ditadura aos 20 e um desastre climático aos 30?
Não há dúvidas, há que se capacitar as pessoas para tudo isso, no qual muito ainda é desconhecido, mas é preciso conscientizá-las de tal forma que atitudes importantes, tais como o combate à desigualdade, à violência, ao racismo e à discriminação, a favor da inclusão social, do respeito à diversidade, ao meio ambiente e às leis vigentes, sejam transformadas em valores inquestionáveis. E reforçar a respeito da responsabilidade de todos, uma vez que a solução para os problemas da sociedade precisa da contribuição de cada um de nós – pessoa física ou jurídica. Todos precisam conhecer e defender seus direitos mas, imprescindível também, conhecer e cumprir suas obrigações.
Consequentemente, o papel a ser desempenhado por cada um de nós, deverá ser mais abrangente, concreto e efetivo do que o atual, diferentemente do que se prega como volta à “normalidade”, tanto para melhor compreensão da realidade que nos cerca, como na conscientização a respeito desses “novos” valores. Diferentemente de modismos e soluções circunstanciais, é preciso trabalhar para se implantar em todo o mundo, e mais precisamente no Brasil, uma cultura que se ocupe, prioritariamente, do ser humano e da vida. Mudanças não são somente técnicas, é preciso trabalhar a consciência de todos para que, de fato, haja transformações, já dizia meu amigo e professor Sergio Rodrigues Bio (10). Exige-se pensar de forma mais abrangente e holística, pois como escreveu Jacques Attali, esta crise “sem precedentes dos últimos dois séculos, revela-se múltipla: social, política, econômica, ideológica, filosófica e ecológica”.
(1) Ao que parece, já em novembro de 2002, também na China e de origem animal, surgiu o vírus (SARS-CoV), responsável por doença respiratória aguda, relacionada ao Coronavírus (“Severe Acute Respiratory Syndrome-Related Coronavírus”).
(2) “Nesse mesmo ano de 2009, após um relatório do Ministério de Defesa Francês, um relatório da CIA estimava que o ‘surgimento de uma nova doença respiratória humana virulenta, extremamente contagiosa, para a qual não existe tratamento adequado, poderá desencadear uma pandemia global’. Ela poderia intervir, sem dúvida, dentro de uma zona de forte densidade populacional, com grande proximidade entre seres humanos e animais, como existe na China, onde as populações vivem em contato com o gado”. Texto do escritor, professor e assessor especial do presidente francês François Miterrand, Jacques Attali, extraído de seu livro “A Economia da Vida”, publicado pela Vestígio em 2021.
(3) A matéria a respeito foi elaborada por Mayara Paixão e publicada na Folha UOL dia 02/09/21: “ressalte-se que ‘questões do clima’ contabilizaram mais de 11 mil eventos, tais como secas, enchentes, deslizamentos de terra, tempestades e incêndios. Mas enquanto na década de 1970 houve 711 eventos, na década de 2000 houve 3.536 e na década de 2010 mais de 3.165”. Inundações, 44% e tempestades tropicais, 35% foram, disparados, os eventos mais frequentes.
(4) Josué de Castro produziu diversos trabalhos para comentar os problemas da fome e da miséria, não só no Brasil, mas em todo o mundo. Ao constatar a intensa realidade da fome e o tamanho do mal que causava, Josué, mesmo enfrentando muitos preconceitos que encobriam aquele problema, dedicou-se a estudar esse problema, ainda atual e universal. Trabalho elaborado por Anna Maria de Castro (“Josué de Castro e a descoberta da fome”) e publicado na revista Nexo, em 22 pp., trata do assunto de forma clara e bastante objetiva.
(5) Não há qualquer dúvida que a Educação é instrumento de melhoria no processo de distribuição de renda. E que, neste mundo moderno, estar ligado à internet é fundamental. A conectividade, a internet, a educação e a cidadania estão ligados de forma significativa. Vale lembrar a defesa que a professora da London School of Economics, Ellen Helsper fez com relação ao acesso à internet: “deveria ser considerado como um ‘direito fundamental”.
(6) “Capitalismo Consciente” é uma forma de refletir sobre onde estamos e aonde queremos chegar em termos de evolução humana. As empresas conscientes são movidas por um propósito maior e procuram praticar uma cultura com consciência mais ética e nobre, na medida em que tira as pessoas da pobreza e cria prosperidade. O termo “Capitalismo Consciente” foi utilizado pela primeira vez por Muhammad Yunus em uma publicação no Atlantic Monthly em 1995 e se tornou popular em face da publicação do livro “Conscious Capitalism – Liberating the Heroic Spirit of Business”, de John Mackey, CEO e cofundador da Whole Foods, e do Prof. Raj Sisodia, da Universidade Bentley. (retirado do site “Conscious Capitalism”).
(7) Ainda na semana passada, o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEDBS) coordenou a elaboração de uma carta na qual 105 empresas nacionais e estrangeiras, de 10 entidades setoriais diferentes, defenderam a necessidade de o País estabelecer metas mais ousadas com relação ao meio ambiente. Em síntese, a carta diz que é possível fazer com que o Brasil alcance maior crescimento e de forma sustentável, sempre com base nas melhores práticas operacionais, na economia circular, no baixo carbono e na inclusão.
(8) “Saúde mental” já é debatida nas empresas. Reportagem do Estadão de 19/09/21, de Ludmila Honorato apresenta os casos do Itaú Cultural e da L’Oréal, que já investem em programas de saúde mental e de equilíbrio de vida, cujos pilares principais são: emocional, físico, trabalho e relacionamentos. “Vamos abordar como quebrar o tabu sobre a terapia, como lidar com a montanha-russa de emoções na pandemia, ser vulnerável, evitar o estresse, lidar com o luto e gerenciar ansiedade”, disse Kátia Saraiva, psicóloga e consultora da L’Oréal, na entrevista.
(9) Modelo de desenvolvimento que “concentre esforços e investimentos em setores interdependentes que promovam e protejam a vida: saúde, higiene, energia limpa, alimentação, agricultura, pesquisa e inovação, reciclagem, educação, cultura, segurança e outros” (Hélio Mattar, presidente do Insituto Akatu pelo Consumo Consciente, escreveu na capa do livro de Jacques Attalil).
(10) “Do empreendedorismo ao ‘empresadorismo’” (A viagem do empreendimento nascente à empresa de sucesso continuado no século XXI), livro de Sergio Rodrigues Bio, publicado pela Alta Books em 2018.