Há pelo menos vinte anos eu tenho insistido, seja através de artigos publicados, seja em salas de aulas, palestras e reuniões empresariais, que a forma pela qual estamos tentando resolver os problemas da sociedade precisa ser revista e, sem dúvida, alterada.
Muito se fala, por exemplo, principalmente aqui no Brasil, no êxito da utilização de uma determinada política econômica, quando os chamados “fundamentos econômicos” estão bem. Elogiam-se, e corretamente, os dados relativos ao combate da inflação, do aumento no nível de reservas, no crescimento das exportações ou do superavit comercial. Mas, infelizmente, não se “enaltecem”, com o mesmo vigor, os índices que medem os níveis de concentração de renda, de pobreza, de desemprego e sua informalidade, de falta de investimento, do aumento da violência ou da corrupção, ou da baixa qualidade (ou da falta) dos serviços de saúde, saneamento e educação.
Aqui é importante ressaltar que uma correta compreensão da essência da ciência econômica (“ciência social que estuda a produção, a organização e a distribuição de bens econômicos e serviços”) nos leva a perceber que ela não pode estar limitada somente à busca da eficiência produtiva, principalmente quando for em detrimento de outros objetivos também importantes. Não é possível “deixar de lado”, por exemplo, o quanto é imprescindível que se busque a melhor forma de distribuir a produção dos bens e serviços produzidos, uma vez que é essencial manter cidadãos justa e corretamente recompensados, seja como consumidor, seja como produtor.
Consequentemente, já deveria estar claro para todos que os mercados não funcionam de “forma perfeita” e que as pessoas, empresas e países, além de não atuarem de uma forma eficiente, ainda são irracionais, posto que outros valores, inclusive políticos, sociais e culturais, também são responsáveis por ações que movimentam o mercado e as atividades econômicas. Não à toa, muitos países, além dos indicadores puramente econômicos, também medem diversas outras variáveis relativas ao bem-estar da sociedade, tais como a liberdade, inclusão social, felicidade ou sustentabilidade ambiental (1).
Não por acaso, tenho alertado para o fato de que na maioria dos países, inclusive aqui no Brasil, não mais se ‘pratica’ a verdadeira Política Econômica, como sendo um conjunto de ações planejadas por um determinado governo, com o objetivo de se atingir metas que alcancem, além da estabilidade econômica, a melhoria do bem-estar de sua população. Tenho chamado isso de ‘ditadura financeira’, posto que é sobejamente conhecido por todos que a utilização excessiva de política monetária, como instrumento único de se combater a inflação, dificulta, e até mesmo impede, que se alcancem outros índices importantes do sistema econômico, tais como os níveis de consumo e investimento. Aliás, como vem demonstrando as estatísticas brasileiras a respeito.
Minhas observações a respeito, desde então, são a de que além da falta de visão que caracteriza a grande maioria de nossos governantes, notadamente com relação aos objetivos e à essência da ciência econômica, há uma necessidade extrema de se atender as exigências do capitalismo financeiro, para o qual a estabilidade monetária, sempre via aumento das taxas de juros, é a prioridade máxima, quando não a única, e a qualquer custo, mesmo da população e por um período demasiadamente largo.
Minha conclusão era a de que precisávamos “mudar a receita e criar uma Política Econômica que de fato”, e “sem perder o que já se conquistou, principalmente com relação ao controle da inflação” (valem a pena os grifos), cumprisse seus objetivos. Era “preciso fugir da ‘ditadura financeira’ (2), caracteristica do capitalismo mundial, pelo menos dos últimos 30 anos.
Não há qualquer dúvida que “a falta de investimentos (3) por um período tão grande, pelo qual tem passado o Brasil, somente agrava sua situação no futuro, pois já terá comprometido toda uma geração de pessoas, visto que não poderão, em face das carências passadas e atuais, exercerem seus papéis como cidadãos, em seu conceito mais amplo: educado, politizado, solidário, com saúde, moradia, trabalho e consciente de seus direitos e deveres”.
Não se pode cometer os mesmos erros do passado, quando se chegou ao absurdo de concordarmos com frases do tipo “provavelmente o Copom irá aumentar a taxa Selic, pois infelizmente a economia está crescendo”. Ou, que o “BC justifica alta da Selic com preocupações sobre crescimento excessivo da economia”.
É evidente que a pandemia e a invasão da Ucrânia, eventos mais recentes, colaboraram de forma acelerada para que houvesse uma desestruturação da sociedade, da economia e do comércio mundiais, além de uma desorganização do processo produtivo e de suas cadeias logísticas. Uma tragédia cujos efeitos, muitos ainda desconhecidos, serão mantidos por mais alguns anos. Ressalte-se, inclusive, que o conflito entre Ucrânia e Rússia ainda não tem data para terminar, aumentando incertezas e riscos.
Mas está muito claro que há um conjunto de problemas que se arrasta há várias décadas e que na medida em que os sistemas políticos e econômicos vigentes deixam de garantir a realização dos objetivos e aspirações esperadas pela maioria da população, a sociedade como um todo reage e questiona esses próprios sistemas. Num claro processo de aprofundamento das crises, também questiona as instituições constituídas.
Se a crise do capitalismo do “laissez-faire”, em 1930, “foi suplantada pela economia de guerra durante a Segunda Guerra Mundial”, e o estilo keynesiano (intervenção do Estado na economia e estímulo ao consumo e ao emprego) foi superado pela globalização (expansão dos mercados, capital, trabalho e insumos), o capitalismo financeiro que se instalou posteriormente também chegou ao fim de forma melancólica em 2008, ao se caracterizar como a maior crise financeira depois da Grande Depressão de 1930. Como escreveu o sociólogo espanhol Manuel Castells (“Outra economia é possível”, Zahar, 2017), as promessas de prosperidade, de crescimento sustentável, de equilíbrio fiscal e de combate à desigualdade não se tornaram realidade e, ao contrário, inclusive pela significativa contribuição das economias de mercado (grifos meus), aumentaram a desigualdade e, consequentemente o enfraquecimento da democracia. A falta de perspectivas tornou-se característica das populações mais pobres e a tensão social, em todo o mundo, só aumentou. Frise-se que em todos esses movimentos as mudanças não se limitaram à economia, posto que tiveram impactos “sociais, institucionais, culturais e políticos”.
Vale ressaltar, ainda segundo Castells, que todas as crises levaram a uma busca, ou pelo menos a uma tentativa, de se “alterar as relações de poder sobre as quais o falho sistema capitalista” estava instalado. E foi “a partir da diversidade dessas práticas sociais e econômicas” que “surgiu uma nova compreensão da economia”, cujo objetivo principal baseava-se na “importância das pessoas”. “Entre um mercado excludente e a falência do Estado de bem-estar social, uma nova forma de solidariedade social estava sendo projetada em redes horizontais e de reciprocidade e apoio. Isso sinalizava um afastamento da cultura capitalista e da cultura estatista na direção de uma cultura de humanidade, que vincula pessoas enquanto seres humanos”.
O sociólogo Zygmunt Bauman, em seu livro “Tempos Líquidos” (Zahar, 2007), já assinalava que “o novo individualismo, o enfraquecimento dos vínculos humanos e o definhamento da solidariedade estão gravados num dos lados da moeda cuja outra face mostra os contornos nebulosos da ‘globalização negativa’. Em sua forma atual, puramente negativa, a globalização é um processo parasitário e predatório que se alimenta da energia sugada dos corpos dos Estados-nações e de seus sujeitos”. E conclui Bauman: ”É a insegurança do presente e a incerteza do futuro que produzem e alimentam o medo mais apavorante e menos tolerável” que, “por sua vez, nasce de um sentimento de impotência: parecemos não estar mais no controle, seja individual, separada ou coletivamente”.
A alteração dos padrões políticos, sociais e econômicos, em todo o mundo, é uma característica atual e vive-se o que o próprio Bauman, em outro livro, chamou de “a era do interregno”. Dizia ele, não com estas mesmas palavras, que tudo o que existe hoje já não serve mais para resolver nossos problemas, e tudo o que existirá para resolver os novos problemas ainda não foi desenvolvido.
As consequências, bem como os resultados das ações adotadas para se contornar os problemas surgidos, permanecem incertas, mas buscando um olhar mais pragmático à atual realidade atual, trabalho da McKinsey (4), por exemplo, mesmo admitindo que “a incerteza é abundante”, “os sinais econômicos são profundamente confusos” e, consequentemente, “maior é a volatilidade”, arrisca e enumera cinco impactos que ainda perdurarão por algum tempo e que exigiriam total atenção: “1. a crise humanitária; 2. a diversificação das fontes de energia; 3. o aumento dos gastos com defesa; 4. o ciber como palco de conflitos; e 5. a retirada das corporações da Rússia”.
É bastante claro, portanto, que assuntos relacionados às mudanças geopolíticas, ao aumento da concentração de renda e da desigualdade, ao futuro da globalização, à transição energética, à mudança climática, à saúde, à educação e ao aumento da violência, são ‘mais antigos’ e vêm ocupando, talvez sem a ênfase que se deseja, a agenda de todos. Os eventos recentes, pandemia e invasão da Ucrânia, apenas demonstraram, de forma clara e transparente, quanto o mundo em que vivemos atualmente está desprotegido, vulnerável e vivendo realidades diametralmente antagônicas (5).
O mundo todo vem sofrendo e muito precisará ser feito para minimizar os efeitos maléficos gerados nos últimos quarenta anos e em face das atuais circunstâncias, pois além de tudo há clara diminuição da produção de um conjunto enorme de produtos, seja por consequências diretas da pandemia e da invasão da Ucrânia, ou pelos ‘desvios’ de recursos, agora orientados para a produção bélica e a manutenção de exércitos.
Como já escreveu Castells em seu livro aqui já mencionado, “a substituição de uma lógica capitalista por uma lógica estatista foi sepultada pela história e é desdenhada pela maioria das pessoas, mesmo sob condições de tensão extrema, na medida em que a liberdade, considerada compatível com a igualdade, é o seu valor supremo. Embora não conheçamos os contornos precisos do nosso futuro, se estivermos atentos à criatividade das práticas alternativas que estão surgindo da crise, saberemos que outra economia é possível” (grifos meus).
Eu acredito, aliás como já escrevi (“Os problemas do mundo, a geopolítica e as corporações empresariais”, artigo publicado dia 10.06.22 no Guia do TRC), que o momento atual “exigirá que se adotem, pelo menos e de forma inquestionável, seis providências fundamentais: a) aumento da geração de empregos e diminuição dos níveis de desigualdade; b) aumento da cooperação entre países; c) pressão para que as grandes empresas de tecnologia e os governos nacionais estabeleçam um processo comum para “governança da privacidade de dados, do uso seguro e ético da inteligência artificial e da segurança cibernética”; d) incentivo para que as empresas, via um “olhar mais holístico”, se ocupem e iniciem estudos geopolíticos que lhe correspondam; e) preparação da sociedade mundial para o enfrentamento de eventos desse tipo, posto que ocorrerão em futuros cada vez mais frequentes; e f) aumento dos investimentos para a efetiva substituição dos sistemas energéticos atuais, por outros de menor impacto ambiental (buscar efetiva e concretamente a “economia de zero carbono”).
Ou há alguma dúvida que se providências para alcançar esses objetivos não forem adotadas e as nações não cooperarem entre si e se fecharem ainda mais, criando dificuldades ainda maiores para o livre funcionamento do comércio mundial, bem como da transferência de recursos e de tecnologia entre países, a crise climática aumentará ainda mais seus efeitos maléficos, a produtividade mundial e a inovação cairão e as consequências imediatas serão aumento de inflação e queda ainda maior da produção mundial?
Indiscutivelmente, portanto, é necessário que todos ‘despertemos’ para problemas desse tipo que, como se vê, extrapolam as fronteiras empresariais ou de uma só nação, e implicam em decisões de caráter geopolítico. São temas que afetam a humanidade e o mundo como um todo, não podendo se limitar, ainda que separadamente, às discussões acadêmicas, científicas, tecnológicas, empresariais ou governamentais.
Foi com extrema alegria, portanto, que ao ler o livro de Klaus Schwab e Peter Vanham (“Capitalismo Stakeholder – Uma Economia Global que trabalha para o progresso, as pessoas e o planeta”, editora Alta Cult, 2023), percebi o quanto todos nós precisamos trabalhar para que, “em um mundo no qual o pessimismo é cada vez mais a ordem do dia, e o interesse próprio e em curto prazo ainda é atraente”, seja construída uma “economia mais resiliente, inclusiva e sustentável”.
Neste modelo de “capitalismo stakeholder”, caberá aos governos “permitir a prosperidade equitativa”. Isto é, “permitir que qualquer ator individual maximize sua prosperidade (6), mas de um modo que seja equitativo para as pessoas e o planeta”. Nesse sentido os governos deverão: 1º) “valorizar as contribuições de todos à sociedade, dar oportunidades iguais para todos e diminuir quaisquer desigualdades excessivas que surgirem” (educação, saúde, moradia e conectividade); 2º) “agir como um árbitro e regulador de empresas operando no livre mercado”; e 3º) “como guardião de gerações futuras deve impedir as atividades que degradam o meio ambiente”.
Vale, aqui, reproduzir um trecho que representa parte das conclusões de Schwab e Vanham: “aquele tempo no qual uma organização tinha apenas seu próprio interesse em mente e o seguia sem considerar os interesses de seus ‘stakeholders’ acabou. Em uma sociedade tão interconectada e na qual o sucesso de cada ator depende de grande conectividade e interação com tantos outros atores, decisões só podem ser tomadas se houver um resultado positivo para o sistema inteiro. Para empresas isso significa, especificamente, que os ventos da história soprarão no rosto daqueles que se prendem ao conceito de primazia ‘shareholder’. Mas serão ventos favoráveis para aqueles que reconheceram os sinais e pratica o ‘capitalismo stakeholder’ “.
Se, como dizem Schwab e Vanham, “os sistemas atuais falham ao ignorar muitos dos problemas que enfrentamos atualmente”, está na hora de se buscar respostas mais “holísticas”, que envolvam “governos, empresas e indivíduos”. É imprescindível que se busque um novo “contrato social” no qual as responsabilidades estejam compartilhadas.
Quem tem acompanhado as reuniões do Fórum Econômico Mundial, do qual Klaus Schwab é seu fundador e presidente, sabe que além das preocupações com o meio ambiente e os conflitos entre nações, um dos assuntos que mais tem chamado a atenção é a desigualdade, isto é, a forma injusta como são distribuídos os bens econômicos e serviços produzidos. Aliás, como aqui já se escreveu e todos somos sabedores, as consequências de processos contínuos de concentração de renda geram, em todo o mundo, desconfiança com as instituições, erosão do contrato social, desesperança com a política e descrédito com relação à Democracia. Não há dúvidas que a desigualdade, o desemprego, as mudanças climáticas, para pior, e até muitos dos impactos tecnológicos, irão alterar profundamente o comportamento das pessoas e da sociedade. Os movimentos sociais ficarão mais ativos, estimularão a busca por soluções inovadoras e testarão, de forma cada vez mais contundente, a geopolítica mundial e as sociedades que ainda não perceberam esses “novos tempos”. O Brasil, como de resto todo o mundo, precisa se atualizar a respeito e procurar fazer “as coisas” de forma diferente do que até agora se fez. E, principalmente, melhor!
1.“Compreender a ciência econômica, em sua essência, sempre foi indispensável. Agora mais do que nunca!” – artigo publicado em 10 de agosto de 2022 no site do Guia do TRC.
2.Ótica exageradamente financista, distorce as prioridades da economia e a análise financeira se sobrepõe à análise econômica. Essa política se sobrepõe à produção, ao emprego e à geração de renda, pois está atrelada única e exclusivamente aos interesses financeiros da economia. Qualquer proposta contrária é rapidamente considerada retrógrada e fica impossível voltar-se contra a “opinião majoritária”, que avalia ministros da área econômica, principalmente dos últimos governos, como os únicos que têm desempenhado um bom papel. Considerados como competentes e de bom-senso, foram, no máximo, bons tesoureiros e jamais executores de Política Econômica, na medida que suas decisões não levam em conta as atividades produtivas e a necessidade urgente de crescimento, de geração de empregos e renda.
3.Lamentavelmente essa política monetária agressiva desistimula o investimento produtivo, fator imprescindível ao crescimento e ao desenvolvimento econômicos. E impedir que um país cresça é condená-lo ao subdesenvolvimento. O crescimento, embora não seja condição suficiente para o desenvolvimento, é condição “sine qua non”.
4.“Guerra na Ucrânia: Doze interrupções mudando o mundo – atualização”, artigo produzido pelos sócios da Mckinsey (28 de julho de 2023: Olívia Branca, Kevin Buehler, Sven Smit, Ezra Greenberg, Ritesh Jain , Guillaume Dagorret e Christiana Hollis). “A volatilidade nas perspectivas e no desempenho econômico está afetando fortemente as empresas, principalmente devido à compressão de margens e ao crescimento mais lento. Analistas e empresas revisaram consistentemente para baixo as previsões de 2023 para ganhos e receitas de 2023”. E mais: “a instabilidade geopolítica subiu ao topo do radar de risco dos líderes após a invasão e permanece lá, embora outros fatores macro (ou seja, inflação e taxas de juros) também chamem a atenção”.
5.Capitalismo Stakeholder – Uma economia global que trabalha para o progresso, as pessoas e o planeta. – Klaus Schwab e Peter Vanham. Alta Cult Editôra, 2023: “Desde o fim da 2ª GGM viveu-se “um surto de desenvolvimento econômico global. Mas, apesar disso, o mundo com duas realidades antagônicas”: a) Em tempo de relativa paz e riqueza absoluta, se “comparado com gerações passadas, muito de nós vivemos vidas longas e, na maior parte, saudáveis”, sendo que “nossas crianças puderam ir à escola, muitas vezes até a faculdade, e computadores, celulares e outros dispositivos tecnológicos nos conectaram com o mundo”. Vivemos época de “energia abundante, com avanços na tecnologia e no comércio global”; b) “nosso mundo e a sociedade civil são castigados pela desigualdade insana e por uma insustentabilidade perigosa. A crise de saúde pública da Covid-19 foi apenas um evento a demonstrar que nem todo mundo recebeu as mesmas chances na vida” (grifos meus).
6.No conceito defendido por Daron Acemoglu e Simon Johnson, no livro “Power and Progress”, ‘progresso é a prosperidade que é compartilhada’, isto é, ‘não é suficiente haver progresso no bem-estar de um grupo se isso implicar piora significativa no de outro’. As frases estão no artigo (“Nem sempre mais tecnologia traz progresso”) publicado no Estadão dia 11 pp, pela professora do Insper Laura Karpuska.