Filas de caminhões parados nos acostamentos e um caos nacional causado por um desabastecimento em comércios e postos de combustíveis às vésperas das eleições presidenciais. Há exatamente um ano, caminhoneiros cruzaram os braços, bloquearam rodovias e demonstraram a força política da categoria.
Em meio ao caos, os trabalhadores receberam apoio de políticos e a promessas de que teriam suas reivindicações atendidas.
A greve acabou após o Congresso aprovar uma tabela com valores mínimos para o frete de cargas no país e reduzir o preço do diesel em R$ 0,46 a partir de julho de 2018.
A tabela foi a pauta mais expressiva dos grevistas. Eles também pediam uma política permanente de controle do preço do diesel e o fim da cobrança de pedágio para eixos suspensos (isenção que acabou sendo regulamentada em estradas federais, estaduais e municipais no decorrer do ano passado).
Nos últimos meses, o governo de Jair Bolsonaro vem tentando conter a ameaça de uma nova greve, que causaria graves prejuízos a uma economia já fragilizada.
Em abril, diante de rumores de paralisação, o governo anunciou uma linha de crédito de R$ 500 milhões para a categoria, na qual cada caminhoneiro teria acesso a um financiamento de até R$ 30 mil para manutenção dos veículos, compra de pneus etc.
Na segunda-feira, 20, a BR Distribuidora divulgou que iniciará testes com o "Cartão do Caminhoneiro Petrobras", que pretende dar estabilidade aos preços do diesel para os motoristas - eles pagariam o mesmo valor de combustível na ida e na volta de uma viagem, por exemplo.
Mas será que os caminhoneiros estão contentes com o que mudou no decorrer do último ano? A BBC News Brasil ouviu caminhoneiros e lideranças para avaliar como está o clima entre representantes da categoria que parou o país há um ano.
'Deu uma melhorada'
Moisés de Oliveira Costa, de 41 anos, foi um dos líderes dos caminhoneiros autônomos durante a greve iniciada no dia 21 de maio de 2018. Ele diz que não votou em Bolsonaro, se considera uma pessoa de esquerda, mas afirma que os caminhoneiros foram beneficiados pelas mudanças implantadas devido à greve.
"Depois da paralisação, para mim deu uma melhorada. Antes, eu recebia pouco mais de R$ 10 mil para ir e voltar da Bahia. Hoje, com as empresas respeitando a tabela do frete, eu recebo R$ 18 mil", contou ele. O valor é bruto, e dele o profissional precisa deduzir todas as despesas com combustível, pedágios, alimentação, manutenção do caminhão etc. Os gastos consomem grande parte do total.
No entanto, na visão de Costa, o governo passou a beneficiar os caminhoneiros por medo de que eles convoquem uma nova greve.
"O governo não vai dar um tiro no pé e querer parar o país depois de cinco meses. Eles sabem que uma paralisação de caminhoneiros prejudicaria ainda mais a imagem deles", afirmou Costa.
Mesmo com uma vida melhor, ele diz que pretende deixar o Brasil para trabalhar em Portugal, seguindo na mesma profissão.
Na Europa, Moisés contará com a ajuda do irmão, que é soldador de navios e vive em Portugal há 20 anos. Ele vai emprestar o apartamento para ele por tempo indeterminado.
"Minha intenção é passar dois ou três anos e voltar. Lá, eles pagam de 4 a 6 mil euros por mês para trabalhar entre Portugal, Espanha, França e Alemanha. Tudo com um caminhão novo, em rodovias melhores", afirmou.
Desrespeito à tabela
Caminhoneiro há mais de duas décadas, Marcelo Augusto do Nascimento, de 45 anos, ficou parado 11 dias durante a greve de 2018. Mas ao contrário de Moisés, diz que a situação piorou porque as transportadoras não respeitam a tabela do frete.
"Por exemplo, uma viagem de São Paulo a Mato Grosso, ida e volta, rendia R$ 4 mil de lucro ano passado. Hoje, vai sair na faixa de uns R$ 2,6 mil. Isso é menos que tabela. O pessoal tá trabalhando bastante, mas ganhando menos. Apenas viagens de curta distância, de 150 km a 200 km, respeitam o frete", afirmou.
No começo de maio, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) decidiu isentar de multa os caminhoneiros autônomos flagrados transportando cargas sem respeitar o piso mínimo. A decisão foi fruto de negociação entre o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, e representantes da categoria.
Segundo a agência, o relator do processo, o diretor Marcelo Vinaud, argumentou que a aplicação de multas aos motoristas estava desmotivando denúncias contra empresas que não seguiam a tabela. Isso porque a ANTT previa a sanção para quem contratasse o serviço e também para quem aceitasse fazê-lo.
Nascimento diz que a lei do frete mínimo é desrespeitada na maior parte do país. Segundo ele, isso prejudica principalmente os caminhoneiros que fizeram grandes planos esperando que a situação melhorasse depois da greve.
"O pessoal confiou na tabela e trocou até de caminhão. Esses aí estão trabalhando agora em cima de qualquer valor. Como fizeram dívida, precisam pagar."
Ele conta que votou em Bolsonaro, "mesmo ele sendo contra a tabela de frete", e avalia que o presidente não consegue governar porque a população o atrapalha.
Em maio do ano passado, o então pré-candidato à Presidência recuou em seu apoio à paralisação após o nono dia de estradas fechadas.
"Ninguém deixa ninguém trabalhar. Fica todo mundo torcendo contra. Acredito que as pessoas não deixam ele (Bolsonaro) trabalhar e o Congresso está travando a (reforma da) Previdência", diz Nascimento.
Em grupos de caminhoneiros, parte culpa a própria categoria por aceitarem que empresas paguem valores abaixo da tabela.
"Se ninguém aceitar ser passado para trás, o que as empresas vão fazer? Jogar mercadoria na rua? Elas vão ter que contratar alguém pelo preço que prevê a lei. Ninguém deve se humilhar e aceitar uma miséria. Nós temos que nos unir para o bem de todo mundo", disse um caminhoneiro autônomo.
Há ainda os que se queixam de estar há mais de duas semanas parados à espera de trabalho em pátios da capital paulista.
Tabela é 'solução de curto prazo'
O presidente do Sindicato das Empresas de Transportes de Carga de São Paulo, Tayguara Helou, diz que o pagamento do frete abaixo da tabela, além de ser ilegal, coloca a segurança viária em risco.
"Quando isso acontece, o trabalhador passa necessidades básicas e começa a fazer coisas a troco de sua sobrevivência. Ele usa drogas, reduz a manutenção do caminhão, da troca de pneus, freios etc. E isso impacta diretamente na solução viária, além de sua saúde e na sua família", afirmou.
Para ele, a tabela do frete é uma solução a curto prazo e o ideal seria o Brasil investir em políticas de mobilidade e principalmente em ferrovias.
"A gente precisa olhar o nosso tipo de produção. O agronegócio tem uma produção com baixo valor agregado. Dificilmente, esses produtores vão conseguir pagar bem por viagens mais longas. Precisamos de intermodalidades, como um sistema de cabotagem mais eficiente, uma grande expansão das ferrovias, um sistema de estocagem melhor. Tudo causa perdas. Na estrada esburacada caem muitos grãos. Nos silos, a mercadoria estraga. É preciso rever o modelo como um todo", afirmou.
Helou diz ainda que a tabela de frete atual contém erros de cálculo.
"O embarcador quer sempre pagar abaixo. Se houver acidente, hoje não está claro que ele é responsável pelas vítimas, problemas ambientais, fiscalização, etc. O ideal é ter uma lei que prevê que a transportadora assuma 100% dos riscos, caso pague abaixo da tabela, além de toda a diretoria", afirmou.
O presidente do sindicato das empresas diz ainda que a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) não tem condições de fiscalizar todos os pagamentos de frete e que por isso poucas empresas são punidas.
"Isso incentiva que essa prática (de pagar menos que a tabela) continue. Além disso, o valor da multa é muito baixo para alguns tipos de carga transportada. Com esse cenário, estamos longe de mudar a situação."
Nova greve
O presidente da Associação Brasileira de Caminhoneiros (Abcam), José da Fonseca Lopes, disse que a situação dos caminhoneiros só piorou após a greve. Para ele, o sindicato foi o responsável pela redução no preço do diesel e está lutando para que o preço do combustível tenha uma nova queda.
Um ano depois da greve, dados do relatório semanal da Agência Nacional do Petróleo, do Gás Natural e dos Biocombustíveis (de 12 a 18 de maio) mostram que o preço médio nacional do diesel é o maior registrado em 2019 (R$ 3,73 para o S10 e R$ 3,65 para o S500) e já ultrapassa o patamar alcançado na segunda semana de maio de 2018, logo antes da paralisação.
"O caminhoneiro está passando fome. Provavelmente, na semana que vem eu devo ser recebido pelo ministro da Casa Civil para apresentar documentos que comprovam que a Petrobras pode reduzir o preço do diesel para até R$ 1,30. Hoje, as treze refinarias brasileiras estão trabalhando com 60% da capacidade porque o país manda óleo bruto para o exterior e compra refinado. O combustível volta com preço internacional e por isso aumenta todo dia", afirmou.
Lopes ameaça mobilizar os 600 mil caminhoneiros autônomos que fazem parte do sindicato, caso eles não sejam recebidos por representantes do governo e suas reivindicações não sejam atendidas.
"Estamos negociando e semana que vem o governo tem que decidir alguma coisa. Estamos muito organizados e a coisa pode ser feia. Vai parar o país, mas não queremos isso. Queremos criar um piso mínimo entre a Abcam e embarcadores, depois a gente faria um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) e o governo endossaria para ninguém pagar abaixo."
Por outro lado, os caminhoneiros estão desanimados em relação a uma nova greve. Em abril e no início deste mês, o sindicato já havia ameaçado entrar em greve. Parte dos trabalhadores, porém, diz não ter condições financeiras de parar novamente.
De acordo com a Associação Brasileira dos Armadores de Cabotagem (Abac), a quantidade de cargas transportadas em navios cresceu 27% no primeiro trimestre. Parte dos caminhoneiros atribui esse aumento à mudança na tabela do frete, que deixou os transportes de longa distância mais caros. O presidente da Abcam discorda.
"Isso não está acontecendo. A carga quando chega no navio fica parada até um mês antes de chegar ao seu destino e muitas vezes estraga. De caminhão, ela chega em até 72 horas em qualquer ponto do país. Nós temos num país rodoviarista e a cabotagem só é usada em situação emergencial. O que precisamos resolver são os problemas dos caminhoneiros", afirmou.
Colaborou Ingrid Fagundez, da BBC News Brasil em São Paulo