Empresas têm conseguido reverter a aplicação de multas e indenizações pleiteadas pelo Ministério Público Federal (MPF) em decorrência do transporte de mercadorias acima do peso permitido nas rodovias do país. Desembargadores de pelo menos três regiões vêm entendendo que, como o Código de Trânsito Brasileiro prevê medidas aos casos de infração, não caberia ao Judiciário criar novas punições.
O que o Ministério Público vem pedindo, nas ações civis públicas, é que a Justiça fixe multa – entre R$ 5 mil e R$ 10 mil – para cada nova autuação sofrida nas estradas. Ou seja, seriam duas multas: uma aplicada pelos órgãos de fiscalização e outra fixada pelo Judiciário.
Há centenas de liminares concedidas em primeira instância atendendo o MPF. E são essas decisões que as companhias têm conseguido reverter em segunda instância. Em um dos casos, a 6ª Turma do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região, que tem sede em Brasília, entendeu que não caberia ao Judiciário "adentrar em matéria de competência do Legislativo".
"Já existe uma determinação legal de não fazer", afirma na decisão o relator do caso, desembargador Kassio Nunes Marques. "O legislador estabeleceu que transitar com veículo em excesso de peso é uma infração administrativa, considerada de nível médio, e punida com multa cujo valor pode ser fixado entre 4 e 5 UFIR [Unidade Fiscal de Referência], dependendo do excesso de peso auferido", acrescenta.
Há decisões semelhantes em outras turmas do TRF da 1ª Região e também nos tribunais da 3ª Região, que abrange os Estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul, e da 4ª Região, no sul do país.
Uma das decisões, da 3ª Turma do TRF da 4ª Região, contrariando a tese do Ministério Público, chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). A matéria foi julgada de forma monocrática pelo ministro Mauro Campbell.
Ele manteve o entendimento dos desembargadores, mas por uma questão processual. O ministro entendeu que o recurso do Ministério Público Federal não poderia ser aceito porque demandava reexame dos fatos, o que não é permitido ao STJ. Esse foi o único caso julgado até agora.
O Ministério Público Federal começou uma mobilização para tentar coibir o excesso de peso nas rodovias por volta do ano de 2010. O ponto de partida foi um levantamento sobre a quantidade de multas aplicadas às empresas.
No Triângulo Mineiro, por exemplo, onde teve início esse movimento, havia companhias com mais de mil autuações em um único ano. E esse foi justamente o critério para processá-las. As ações civis públicas são direcionadas às empresas com multas reiteradas pelo transporte de mercadorias acima do peso permitido pela legislação.
Na argumentação do MPF, ao Judiciário, constam as consequências do excesso de peso sobre a vida útil das rodovias – bem como os riscos para a segurança dos usuários, danos ao meio ambiente e à ordem econômica. Segundo o Ministério Público, o sobrepeso, na maioria dos casos, é de 10% a 30%. Essa quantidade seria suficiente para reduzir em até 40% a vida útil projetada para o pavimento.
Há centenas de ações civis públicas, em todo o país, nesse sentido. Além do pedido de fixação de multa ao Judiciário, a cada nova autuação sofrida pela empresa, o Ministério Público pede indenização por danos morais e coletivos – que em alguns casos ultrapassa a cifra de bilhões.
O procurador da República Edilson Vitorelli entende que a tese apresentada pelo MPF está "meio a meio" nos tribunais. "Há decisões contrárias, mas há também decisões favoráveis", diz. Ele acredita que haverá "um estímulo econômico para a conduta ilícita" se prevalecer a ideia de que não se pode punir empresas reiteradamente autuadas.
"A conduta ilícita não pode ser interessante para quem pratica", argumenta o procurador. "Como o valor da multa [aplicada pelos órgãos de fiscalização] não é muito alto, ele acaba entrando no custo logístico das empresas. Existe um modelo de negócio por trás do problema do excesso de carga."
De acordo com o procurador, existem dois cenários: o das companhias que se aproveitam dos valores baixos das multas que são aplicadas pelos órgãos fiscalizadores – porque compensaria transportar as mercadorias de uma só vez, mesmo pagando a multa, ao invés de fazer duas viagens, por exemplo – e o das que simplesmente não têm controle.
As investigações continuam frequentes, segundo procurador, e novos inquéritos sobre o excesso de peso ainda são abertos. Todos a partir de levantamentos feitos pela Polícia Rodoviária Federal em conjunto com o Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (Dnit) e a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).
Somente no ano de 2015 foram lavrados quase 180 mil autos de infração por excesso de peso nas rodovias federais. Os dados são os mais recentes publicados sobre o tema pela ANTT.
Há investigações do MPF, no entanto, que não chegam a se transformar em ações civis públicas. Isso porque, conforme o órgão, existem empresas que em vez de brigar na Justiça preferem assinar um termo de ajustamento de conduta, comprometendo-se em implementar programas de controle – com metas de redução de autuações nas rodovias.
As advogadas Nancy Franco e Jacqueline Cecílio de Oliveira, do escritório Muriel Medici Franco, atuam em quase dez processos que foram ajuizados contra empresas. Elas consideram a situação complexa. Especialmente porque o Código de Trânsito Brasileiro prevê não só a multa pelo excesso de peso total do caminhão, como também por eixo (a carga não pode estar concentrada em um eixo só).
"E há deslocamento de carga durante a viagem", afirma Nancy. "Esse é um problema crítico. Não tem como evitar. O caminhão está abaixo do peso total permitido, mas há esse deslocamento. Existem inclusive balanças, nas estradas, localizadas depois de aclives", complementa.
Elas criticam ainda a forma como são feitos os cálculos para os pedidos de indenização. Segundo as advogadas, há casos em que o MPF teria se baseado no orçamento da União destinado aos reparos nas estradas do país para chegar ao valor total da indenização. A quantia total teria sido dividida pelo número de multas aplicadas pelos órgãos fiscalizadores às empresas.
A ausência de critérios para a fixação de valores também é criticada por Eduardo Diamantino, do Diamantino Advogados Associados, mas no que diz respeito às multas pleiteadas pelo Ministério Público Federal. A um frigorífico para quem atuava havia sido definido o valor de R$ 5 mil a cada nova autuação, já para uma empresa do setor madeireiro a quantia era de R$ 10 mil.
"Qual é a base desses valores?", questiona. "Vamos imaginar que essa ação fosse procedente e que o Ministério Público viesse a arrecadar toda essa quantia. Isso tudo equivale ao ressarcimento da estrada? E se a estrada for privatizada e no contrato de concessão o custo do recapeamento já estiver previsto?"
Por Joice Bacelo | De São Paulo