Transporte, logística e uma história inspiradora, por Geraldo Vianna

Publicado em
15 de Julho de 2015
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Continuo achando que aquela foi uma iniciativa correta e que colocar sob o mesmo guarda-chuva a representação de transportadores e de operadores logísticos é uma solução natural e, de certa forma, inevitável, embora ainda existam várias associações específicas de logística, como a Abol e a Abralog, entre outras. Nada contra; se uma associação existe é porque os sócios que a mantêm acham que ela faz sentido. Ninguém se disporá, voluntariamente, a sustentar uma instituição que não tenha utilidade prática. Mas penso que, com o tempo, acabaremos todos sob o mesmo teto, porque isso é da lógica das coisas e também porque há muitas empresas cujo negócio é híbrido, transporte e logística, ficando muito difícil separar uma coisa da outra, ainda que, conceitualmente, sejam muito nítidos os limites e os contornos de cada atividade. Mais difícil ainda é o transportador conseguir cobrar, além do frete, os serviços adicionais que ele acaba prestando sob demanda dos clientes embarcadores ou destinatários. Mas isso é assunto para outro artigo.

 

Dia desses, refletindo sobre esses temas e sobre o papel absolutamente estratégico da Logística na viabilização do processo produtivo como um todo, me veio à lembrança algo que li há mais de dez anos e que me chamou muita atenção à época. Fui então reler a ótima biografia “Matarazzo – a travessia”, de autoria deRonaldo Costa Couto, até encontrar o que procurava. A memória não me havia traído. Estava tudo lá, exatamente como eu tinha lembrança. Ali se conta, com detalhes muito saborosos e instigantes, como o jovemFrancesco Matarazzo, no final do século XIX, repetindo a saga de tantos imigrantes, deixou a sua Castellabate, uma cidadezinha da região da Campânia, província de Salerno, com destino ao Brasil.

 

Aqui chegando, fixou-se inicialmente em Sorocaba, que era, então, uma espécie de capital do tropeirismo, em que o grande negócio era o comércio de eqüinos e muares, provenientes do sul do Brasil, para servir aos tropeiros, que, como se sabe, são os ancestrais dos atuais empresários do T.R.C. Aliás, este foi também o seu primeiro negócio no Brasil, o que lhe permitiu viajar muito e conhecer os costumes e as carências do país ainda muito pobre e eminentemente rural que ele encontrou aqui. Misto de tropeiro e mascate, um belo dia ele resolveu se estabelecer, abrindo um pequeno armazém, em que vendia secos e molhados, inclusive banha de porco, que era importada dos Estados Unidos em barricas de madeira, embalagem adequada ao transporte marítimo, mas pouco aderente ao ticket médio dos seus fregueses, como se diz hoje...

 

Não demorou muito para ele perceber a oportunidade de fabricar aqui a banha de porco. Ele dominava o processo, pois já fizera isso em sua terra natal e os suínos eram abundantes na região de Sorocaba – talvez por isso, pouco valorizados. Não se pode esquecer que a banha de porco era, naquela época, insumo básico e insubstituível na cozinha de todas as famílias, ricas ou pobres, seja para cozinhar, seja para conservar os alimentos. Por outro lado, o produto made in USA, o único disponível, chegava ao armazém do futuro conde Matarazzo muito caro, por conta do frete marítimo e dos manuseios e percalços do precaríssimo transporte terrestre. Além disso, o transit time já comprometia uma boa parte da vida útil do produto, perecível pela própria natureza.

 

Em pouco tempo ele desenhou e mandou fazer uma prensa de madeira, com algumas partes em metal, com a qual ele passou a fabricar a banha nos fundos do seu armazém. Para tanto, montou um esquema de aquisição de toda a produção de porcos na região de Sorocaba. O êxito do seu empreendimento fui fulminante. Mas, mesmo assim, algo ainda o incomodava. Ele continuava usando as mesmas barricas de madeira para embalar o produto final. Elas eram grandes e pesadas demais, encarecendo e dificultando o transporte, além de complicar a comercialização, porque as pessoas compravam, geralmente, quantidades bem menores, que eram embrulhadas e carregadas pelos fregueses, em condições inadequadas de conforto e higiene.

 

Deu-se então o “estalo” do gênio empreendedor; foi a primeira e, talvez, a mais importante, dentre tantas sacadas que acabaram por transformar Francesco Matarazzo, em tempo relativamente curto, no homem mais rico da América Latina, dono de um verdadeiro império empresarial, também sem paralelo no continente. Ele inventou, simplesmente, a banha de porco em lata, que permitia que o produto fosse transportado de forma muito mais adequada, a custos muito menores e vendido com o fracionamento ideal, que ele bem conhecia a partir da experiência do seu pequeno comércio. Como rapidamente a demanda de latas tornou-se muito maior do que a capacidade de atendimento do mirrado parque industrial de então, ele não perdeu tempo e passou a fabricar latas, que foi a sua primeira grande indústria, depois da desajeitada prensa de madeira com a qual ele começou a produção de banha. Sendo conhecedor também dos segredos da distribuição, mascate e tropeiro que fora – e que continuava a ser –, Matarazzo foi estendendo o seu círculo de comercialização, até cobrir praticamente todo o país.

 

Em poucos anos, sem contar com qualquer tipo de subsídio ou de apoio governamental, ele empreendeu talvez o primeiro grande processo de substituição de importação da nossa história, praticamente varrendo a banha de porco norte-americana do mercado brasileiro. Não por decreto, mas por pura competência.

 

Fiz esta rapidíssima incursão sobre a magnífica obra do ex-ministro e ótimo contador de histórias Ronaldo Costa Couto, antes de tudo para recomendar a leitura dos dois volumes e mais de 600 páginas dessa verdadeira epopéia que foi a vida do conde Francesco Matarazzo. Vale cada minuto e cada página.

 

Além disso, fui buscar este episódio para dar um exemplo prático de como transporte, logística e comércio são, na sua essência, partes essenciais do processo produtivo e elementos indispensáveis ao êxito de qualquer negócio. No caso, como se viu, o “ovo de Colombo” foi muito mais a embalagem do que propriamente o seu conteúdo. It’s logistics, stupid, como diria James Carville, o célebre estrategista da campanha presidencial deBill Clinton.

 

A verdade é que, se o velho conde continuasse a produzir e vender banha de porco em barricas, talvez viesse a ser apenas um empresário bem sucedido, que um dia, quem sabe, voltaria para a sua Castellabate, com um bom dinheiro e um grande patrimônio, mas sem nenhum brilho nos olhos e sem uma história inspiradora a ser contada...

 

 

 

Geraldo Vianna é advogado, consultor em Transportes, ex-presidente da NTC&Logística e Diretor da CNT.

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