A adoção de uma tabela com valores mínimos para o frete no Brasil pode aumentar os preços dos alimentos nos supermercados e ameaçar as exportações de commodities (matérias-primas), dentre outros efeitos negativos. É o que diz uma análise do grupo de pesquisa em logística da Esalq (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz), da USP (Universidade de São Paulo).
Exigência - A tabela é uma das exigências feitas pelos caminhoneiros na greve que paralisou o país por 11 dias no final de maio. Mas os preços mínimos podem prejudicar até mesmo os próprios motoristas autônomos, ao reduzir a procura pelos seus serviços, segundo Samuel da Silva Neto, um dos autores do estudo. "A tabela tenta resolver um problema criando outros que são ainda mais difíceis de solucionar", disse.
ANTT - A ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) divulgou uma tabela em 30 de maio, que desagradou as empresas. Em 7 de junho, substituiu-a por outra, que, por sua vez, foi criticada pelos caminhoneiros. A segunda versão foi revogada e, segundo a agência, é a primeira que está valendo hoje.
Aumento vai direto para o consumidor, diz pesquisador - O estudo da Esalq mostra que a ANTT não levou em conta diversos fatores importantes na definição dos custos do transporte rodoviário no país. Um dos principais é a sazonalidade da produção do agronegócio. Ou seja, o quanto o volume de produtos a ser transportado varia ao longo do ano. Num mercado com preços livres, o valor do frete tende a subir no período de safra, quando há maior procura para transportar os produtos colhidos, e diminuir entre uma safra e outra, quando a procura cai.
Repasse - "Essa conta vai ser repassada para alguém", disse Silva Neto. "No caso dos produtos vendidos no mercado interno, como alimentos, o repasse vai direto para o consumidor."
Exportações brasileiras ficam menos competitivas - Como o Brasil é um grande produtor de matérias-primas, a tabela do frete deve afetar também as exportações. De acordo com o pesquisador, gastos com transporte têm forte peso no preço final dos produtos exportados. No caso do milho, por exemplo, o frete chega a representar quase 60% do preço final em alguns períodos do ano. Como a cotação das commodities é definida no mercado internacional, o produtor rural tem pouco espaço para absorver aumentos nesses custos.
Vantagem competitiva - "O Brasil acaba perdendo grande parte da vantagem competitiva que ele tem dentro da 'porteira' quando acontece uma mudança estrutural no custo do transporte", disse o pesquisador.
Fertilizantes - Uma das distorções mais claras apontadas pelo estudo é a do setor de fertilizantes, que geralmente faz o caminho dos portos para o interior do país. Por ser uma trajetória de retorno, utilizando caminhões que anteriormente haviam transportado produtos do interior para os portos, o frete praticado hoje é mais barato. A tabela, portanto, teria um impacto ainda maior para o setor, de acordo com o estudo. Se o aumento nos custos se concretizar, os produtores rurais podem comprar menos fertilizantes, o que pode prejudicar o desempenho das lavouras.
Competitividade menor - O encarecimento tem o agravante de reduzir a competitividade do produto brasileiro lá fora justamente num momento delicado para o comércio mundial. Segundo analistas, a guerra comercial entre os Estados Unidos e a China deve acabar respingando nas exportações do Brasil.
Caminhoneiro autônomo pode perder mercado - No longo prazo, a tabela do frete pode prejudicar os próprios caminhoneiros autônomos, que reivindicaram a tabela, aponta o estudo. Caso os preços fiquem de fato em patamares acima do mercado, as transportadoras podem decidir aumentar a sua frota própria e contratar caminhoneiros, em vez de usar os serviços de motoristas autônomos. Isso prejudicaria os autônomos na medida em que reduziria a procura pelos seus serviços.
Verticalização - Outro possível efeito da adoção da tabela, diz o estudo, é a "verticalização das operações de transporte nas diversas organizações". Significa que uma empresa de um determinado setor, que costumava contratar transportadoras ou caminhoneiros autônomos, passaria a se encarregar do transporte. Uma usina, por exemplo, pode passar a transportar cana-de-açúcar, álcool e açúcar por conta própria.
Mercado paralelo - Se a fiscalização da aplicação da tabela for frouxa, existe ainda o risco de se criar um mercado paralelo, no qual os caminhoneiros autônomos ofereçam preços mais baixos que os tabelados.
Ferrovias e hidrovias devem acompanhar aumento - O impacto do aumento do frete não ficaria restrito ao transporte rodoviário, disse Silva Neto. Outros modais, como ferrovias e hidrovias, também tendem a subir os preços. "Imagine que você produz no Mato Grosso e tem duas opções para levar o produto até o porto de Santos (SP): uma é o transporte rodoviário direto até lá, a outra é a ferrovia", disse. "Os dois modais competem entre si, e a ferrovia tende a ser mais barata. Mas, se o rodoviário subir o preço, o ferroviário também vai subir."
Tabela desestimularia qualidade e produtividade - O tabelamento discutido pelo governo também é negativo, segundo Silva Neto, porque impede que haja preços diferentes dependendo da produtividade e da qualidade do serviço prestado pelo caminhoneiro. Um autônomo que trabalha com um caminhão novo e faz entregas em uma velocidade maior receberá o mesmo frete que um caminhoneiro em um caminhão velho e que seja mais lento na prestação de serviço.
Medida é alvo de ação no STF - A medida provisória que instituiu a tabela do frete (MP 832/18) está sob análise do STF (Supremo Tribunal Federal), que vai decidir se ela é constitucional. (Folha de São Paulo)