Rota até o litoral paulista também oferece transporte por hidrovia, mas percurso por estradas ainda é maior e motoristas driblam crateras
POR ROGER MARZOCHI - FOTOS: FERNANDO MARTINHO, DE CUIABÁ (MT) A SANTOS (SP)"Lá é muito feio.” Era assim que Adelino Bissoni preparava o espírito da esposa quando decidiram, na década de 1980, deixar Brusque, em Santa Catarina, para morar em Rondonópolis, em Mato Grosso. O então jovem recém-formado em administração de empresas já havia feito incursões pela região, quando as lavouras começavam a despontar no Estado. Mas, em 1985, a família decidiu viver naquelas paragens definitivamente. “Era a nova fronteira agrícola. Mas era só pó e lama”, diz. “Eu queria ficar dez anos, fazer um pé de meia e voltar.”
Em parceria com outros cinco irmãos, ficou e criou o que hoje é o Grupo Botuverá, que faturou, no ano passado, R$ 340 milhões, um resultado 13% maior que o realizado em 2016. O nome da empresa é uma homenagem da família à cidade catarinense de mesmo nome, para onde o bisavô de Adelino imigrou da Itália, em 1878.
A empresa começou com 15 caminhões, que partiram do sul rumo a Rondonópolis. Hoje, a frota soma 180 veículos. O grupo também tem lavouras de soja, milho e criação de gado, responsáveis por 29,4% do faturamento da companhia.
Adelino é o personagem emblemático da segunda fase do Caminhos da Safra, que percorreu 1.921 quilômetros entre o médio-norte de Mato Grosso e o Porto de Santos. O percurso foi feito pela primeira vez em 2012 e, nesses últimos seis anos, é inegável perceber os avanços nos modais de transporte da safra do Estado, maior produtor nacional de grãos. Há, no entanto, muito o que evoluir. “Podemos colher 120 milhões de toneladas de grãos, mas a infraestrutura precisa melhorar”, aposta Adelino, que continua transportando carga para o Porto de Santos, mas restrito a algodão e muito pouco de soja.
No ano passado, o Estado colheu o recorde de 61,6 milhões de toneladas de grãos: 31,2 milhões de toneladas de soja e 30,4 milhões de toneladas de milho. Quando Adelino chegou a Rondonópolis, Mato Grosso produzia apenas 1 milhão de toneladas. As exportações de soja e milho somam 36 milhões de toneladas. O principal destino do escoamento ainda é o litoral paulista, que, no ano passado, foi responsável por 46,7% dos embarques de soja e 52,7% dos de milho mato-grossense. “Houve época em que a gente só exportava por rodovia”, lembra Daniel Latorraca Ferreira, superintendente do Instituto Matogrossense de Economia Agropecuária (Imea). “Agora, a ferrovia subiu até Rondonópolis e nos deu grande ganho de competitividade.”
Sem dúvida, o terminal de Rondonópolis foi o principal avanço para a região. Em 2012, estavam em operação os terminais ferroviários de Alto Taquari (hoje desativado) e Alto Araguaia.
No fim de 2013, a concessionária de ferrovias avançou até Rondonópolis, num terminal de 14 milhões de metros quadrados, a 20 quilômetros da cidade, pela BR-163. “E nossa intenção é subir ainda mais, aproximando-se das áreas produtoras”, explica Douglas Cunha, gerente da Rumo Logística em Rondonópolis, empresa que assumiu a malha ferroviária, em 2015.
Desde então, foram realizados investimentos de R$ 5 bilhões na melhoria da ferrovia, compra de vagões, locomotivas, automação e ampliação do terminal da cidade, capaz de receber por dia 1.200 caminhões para descarga.
O armazém tem capacidade para guardar 45.000 toneladas, com giro de 29 vezes ao mês. A soja é descarregada dos caminhões em sete tombadores. Até o fim do ano, outros dois tombadores entrarão em operação, podendo assim receber mais 600 caminhões por dia. Há duas linhas de trem que passam pela túlia ferroviária, circulando em formato de pera, para que não seja necessário realizar manobras para embarcar o produto.
O sistema é capaz de encher um vagão em dois minutos, e cada vagão representa 3,5 caminhões a menos na estrada. Por dia, são carregados de sete a nove composições de 80 vagões. A empresa, que ainda administra outro terminal, em Itiquira, transportou sobre trilhos no ano passado em direção a Santos 18,8 milhões de toneladas de grãos, sendo 5,9 milhões de toneladas de soja, 3,8 milhões de toneladas de farelo de soja e 9 milhões de toneladas de milho. E, em 2018, a expectativa é superar os 20 milhões de toneladas.
Com a construção do terminal de Rondonópolis, a participação do transporte ferroviário na produção de Mato Grosso em direção a Santos passou de 30%, em 2016, para 40%, em 2017, de acordo com estimativas da própria Rumo. “E vamos chegar a 70% em 2023”, afirma Claudio Rizzo, gerente de terminais ferroviários da companhia.
Ele prevê que o ritmo de crescimento da safra de Mato Grosso será de 7 milhões de toneladas ao ano nesse período. De acordo com ele, outros R$ 5 bilhões serão investidos na rota nos próximos anos para conseguir dar conta desse crescimento.
A empresa ainda investiu R$ 60 milhões no chamado Rondopátio, uma área com capacidade para receber 576 caminhões a granel e 50 caminhões que transportam líquidos. O pátio conta com restaurantes, áreas de descanso (para homens e separadas para mulheres e crianças) e de lazer. E instituiu, no segundo semestre de 2015, o agendamento da descarga de caminhões, que pode ser marcado com janela de um dia.
Tudo isso para evitar a situação crítica que foi experimentada em 2011 no terminal de Alto Araguaia, quando as filas de caminhões para descarga tomaram nada menos que 80 quilômetros da BR-364. Mas nem todo mundo está contente. “Eles ainda judiam da gente”, reclama um caminhoneiro que prefere revelar apenas seu apelido: Magayver. “Com pouco caminhão, ficamos cinco horas lá dentro. Com muito, ficamos até 12 horas”, diz ele, que esperava o horário de entrar no terminal estacionado num posto na beira da estrada. Devido ao grande movimento, o dono do posto deve lançar um hotel três estrelas.
Claudio e Douglas atribuem a responsabilidade aos transportadores e produtores que, muitas vezes, utilizam o caminhão como silo, na necessidade de colher mais soja. “O caminhão vira armazém, e eles culpam a ferrovia. Os dados comprovam que não é por falta de vagão”, afirma Douglas. Ele defende que os caminhoneiros cobrem dos transportadores o agendamento antes mesmo de carregar a carga.
Mas, em Alto Araguaia, terminal que ficou especializado no transporte de farelo de soja e que recebe 800 caminhões por dia, a reclamação se repete. “Fico de oito a dez horas para descarregar”, afirma Maikon Batista, que há dois anos transporta farelo de soja de Primavera do Leste para Alto Araguaia.
Na estrada entre Cuiabá e Rondonópolis, também ocorreram avanços em seis anos. A BR-163 e a 364 correm sobrepostas nesse trecho. E, entre 2013 e 2016, a concessão à iniciativa privada fez duplicar 117 quilômetros nesse trecho, com pavimentação de cimento. Mas restam outros 121 quilômetros, sem previsão de serem duplicados.
De acordo com o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), houve revisão do projeto por “problemas na desapropriação do contorno de Jaciara e algumas interferências com a rede concessionária de energia”. O governo culpa as chuvas pela paralisação dos serviços, mas afirma que “serão retomados assim que viabilizados pelas condições climáticas”.
“É vergonhoso, deveria ter sido feito muitos anos atrás”, protesta Antonio Galvan, presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado de Mato Grosso (Aprosoja/MT). A expectativa é que, ao menos nas rodovias estaduais, a situação melhore. No fim de março, o governo de Mato Grosso promoveu o leilão de 300 quilômetros de estradas estaduais, que garantiria R$ 900 milhões de investimento em manutenção, conservação e recuperação. A MT-483, conhecida como anel viário de Rondonópolis, está toda esburacada, afirmam os caminhoneiros. “É muito ruim e perigoso. Tem de passar em primeira e segunda, porque tem muito buraco”, diz Maikon Batista.
Mas e as federais? O DNIT afirma que há contratos de conservação da 364 entre Rondonópolis e Alto Araguaia. Mas não é o que parece. Saindo de Rondonópolis pela BR-364, a precariedade da pista ganha nítidos contornos. Entre Mineiros e Jataí, em Goiás, o caminhoneiro Harry Arno Müller, de 53 anos, foi obrigado a parar num borracheiro por causa da quebra de um talão do pneu.
Entre os quilômetros 175 e 176, depois de Jataí, o buraco no sentido Aparecida de Rio Doce era tão grande que era preciso atravessar na pista contrária para desviar. “Com esses buracos, a gente deixa o frete no borracheiro. Sem falar do desnível entre a pista e o acostamento. Isso tomba o caminhão”, diz o motorista, que carregava 49 toneladas de soja.
“A 262 e a 364 pioraram muito”, afirma a motorista Odeir Anselmo Aldonado, de 51 anos. Com 20 anos de estrada, ela mora em São Simão (GO), a carga de soja trouxe de Montividiu (GO), 74 toneladas em rodotrem de nove eixos. “As estradas da região de Minas, Mato Grosso e Goiás estão péssimas, só em São Paulo melhora. Nesses 20 anos, pouca coisa melhorou”, afirma ela, que estava há 21 horas na fila para descarregar o produto na unidade da Caramuru, em São Simão.
Nessa cidade, quem segue pela BR-364 tem a possibilidade de escoar a produção pela hidrovia no Rio Paranaíba até Pederneiras, pelo Rio Tietê, em São Paulo. O movimento tem sido grande: 6 milhões de toneladas de soja, farelo de soja e milho foram transportadas na hidrovia em 2017. De Pederneiras, o produto segue em ferrovia, ou em rodovia a partir de Anhembi, até o Porto de Santos.
“Cada comboio tira de circulação 200 caminhões. Por ano, são 200 mil carretas que deixam as estradas”, calcula Guilherme Mortoza, gerente industrial da Caramuru, uma das principais exportadoras da região, em São Simão. “Mas é preciso realizar obras para melhorar a hidrovia.” Depois de São Simão, a BR-364 é uma cilada.
Entre os 158 quilômetros até Campina Verde, em Minas Gerais, há um trecho de 12 quilômetros de estrada de terra. Literalmente, joga por terra a ótima qualidade do asfalto nesse trecho. O DNIT informa que “será publicado o edital de licitação para elaboração de projeto básico e projeto executivo para pavimentação do lote remanescente”, mas sem previsão de data.
Com a falta de asfalto e segurança, os motoristas que ainda descem a soja de Mato Grosso para Santos fazem caminhos alternativos por Mato Grosso do Sul até conseguirem acesso às rodovias paulistas Anhanguera, Whashington Luiz ou Raposo Tavares.
Grãos, como soja e milho, e açúcar também são escoados para o Porto de Santos por terminais rodoferroviários da VLI em Uberaba (MG), em funcionamento desde o ano passado, e em Guará (SP), construído em 2015. A companhia ainda inaugurou no ano passado a ampliação do Terminal Integrador Portuário Luiz Antonio Mesquita (Tiplam), em Santos, integrando a exportação da ferrovia ao transporte marítimo. Com isso, espera tirar por dia 1.500 caminhões das estradas entre o sul de Minas, São Paulo e o porto santista. Entre Uberaba e o Porto de Santos, a empresa investiu R$ 4,5 bilhões.
Com quatro berços para atracação de navios, no ano passado o Tiplam exportou 4,7 milhões de toneladas de açúcar, soja, farelo e milho e recebeu 2,5 milhões de fertilizantes, enxofre e amônia.
“A intermodalidade vai propiciar a Mato Grosso ser mais competitivo com a soja argentina e americana, com menor custo e mais eficiência”, afirma Igor Figueiredo, gerente geral de agronegócio da VLI. O custo, no entanto, é segredo ao qual apenas grandes tradings têm acesso. Há quem diga, como Galvan, da Aprosoja/MT, que o frete para descer de caminhão ou de trem é praticamente o mesmo. O fato é que a rodovia não comportaria o volume de tráfego de caminhões necessário para escoar esse volume todo de produção.