Rodovias paulistas viram rota de investimentos; já as federais

Publicado em
23 de Março de 2017
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Em breve, os motoristas no caminho entre os municípios de Igarapava e Florínea, no interior paulista, terão a comodidade de acessar um site com informações de pronto-socorros e borracharias situados ao longo dos 570 quilômetros da rodovia entre as cidades. A inovação é parte do plano de investimento de 3 bilhões de reais em antenas de Wi-Fi, na duplicação de trechos de pista simples e num sistema de pagamento eletrônico para substituir as praças de pedágio.
 
A ideia é que quem passar por ali pague uma tarifa flexível de acordo com o horário, um modelo de cobrança comum nos Estados Unidos. A modernização está prevista na concessão da via, arrematada em março pelo fundo de investimento Pátria por 1,3 bilhão de reais, valor 130% acima do mínimo estipulado pelo governo estadual, organizador do leilão.
 
Além das inovações na prestação do serviço, há outra novidade: o Pátria é o primeiro investidor sem intimidade com construção civil a assumir uma rodovia no Brasil — o setor é dominado pelas empreiteiras enroscadas na Operação Lava-Jato. A preparação para o leilão começou há dois anos, com a contratação do IFC, consultoria do Banco Mundial para projetos em infraestrutura, que conversou com 40 potenciais investidores brasileiros e estrangeiros para tornar o projeto atraente. “O objetivo desde o início era atrair um perfil diferente de concessionário”, diz Karla Bertocco Trindade, subsecretária de Parcerias e Inovação do governo de São Paulo.
 
O ar de novidade em torno do leilão paulista contrasta com o desânimo no campo das rodovias federais. Nelas, além da falta de um calendário de novas concessões, o que se vê é uma choradeira pela ausência de recursos para tocar investimentos previstos nos contratos existentes. Na raiz do problema está um velho defeito da área de infraestrutura no país: a falta de planejamento criterioso, comprometendo tudo o que vem a seguir. A situação é mais grave nas rodovias federais que foram concedidas pelo governo Dilma Rousseff em 2013 e 2014.
 
Na época, a transferência para a iniciativa privada era vista como o jeito de apressar o andamento de projetos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e atender à demanda por serviços públicos de qualidade. Os contratos previam um investimento de 17 bilhões de reais, grande parte logo nos cinco primeiros anos de concessão, na duplicação de trechos de estradas que são alguns dos maiores gargalos logísticos do país. Entre eles estavam os 1 700 quilômetros da BR-163 entre a cidade de Sinop, celeiro agrícola em Mato Grosso, e a divisa com o estado de São Paulo, onde a rota para escoar a safra de grãos por caminhões já é toda duplicada até o porto de Santos.
 
Por causa do notório desconforto da ex-presidente com a iniciativa privada, a taxa de retorno dos contratos foi achatada: variava de 4% a 10% das receitas, menos da metade do índice das primeiras concessões dos anos 90, que rendiam, em média, 20%. “O governo apertou demais as condições”, diz o advogado Massami Uyeda Junior, sócio do escritório Arap, Nishi & Uyeda, focado em projetos de infraestrutura. “Não havia margem para problemas.”
 
Mas, de lá para cá, os problemas se multiplicaram. A começar pela crise econômica, que diminuiu 5% do tráfego nas rodovias com pedágio desde 2014. Piorou com as descobertas da Lava-Jato, porque o BNDES resolveu brecar os empréstimos para empresas implicadas em escândalos. As empreiteiras contavam com dinheiro do banco para fazer até 70% do investimento previsto. Das seis rodovias concedidas em 2013, cinco tiveram pedidos de crédito de longo prazo negados.
 
Para completar, o licenciamento ambiental para as obras, que o governo Dilma prometeu obter do Ibama antes de liberar as estradas às concessionárias, só saiu em alguns trechos, elevando os custos dos projetos. O resultado é que as melhorias vieram a conta-gotas. O caso mais dramático é o da BR-153, em que a concessionária, a Galvão Engenharia, cuja diretoria foi condenada por corrupção pelo juiz Sergio Moro em 2015, nem chegou a ter obras e pedágios. Já na BR-163 viraram autoestrada pouco mais de 250 quilômetros, insuficientes para impedir o trânsito intenso de caminhões em supersafras como a  atual.
 
O torniquete do BNDES se explica pela insegurança. O banco teme que os acordos de leniência assinados pelas empreiteiras sejam contestados pelo Tribunal de Contas da União e que a situação das concessionárias piore de vez — diante disso, prefere não emprestar. “O risco de crédito persiste. O acordo de leniência é condição necessária mas não suficiente para concessão de novos financiamentos”, informa o -BNDES, por meio da assessoria de imprensa. Para tentar resolver o impasse, o governo Temer quer abrir um espaço para as empresas encrencadas saírem do negócio.
 
Em novembro, o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), gabinete federal para concessões em infraestrutura, encaminhou ao Congresso uma medida provisória que prevê a devolução das estradas ao poder público. Elas seriam, então, leiloadas de novo. A medida ainda está em tramitação. “A outra saída seria um processo moroso em que a concessionária perderia quase todo o investimento feito e os usuários da estrada ficariam sem os serviços”, diz Adalberto Vasconcelos, secretário executivo do PPI.
 
Mas faltou combinar a medida com os maiores afetados por ela. A ABCR, associação das concessionárias de rodovias, é contrária à medida por não prever uma clara compensação dos investimentos realizados — somente na era Dilma foram concedidos 5,5 bilhões de reais em empréstimos de curto prazo para contratar obras. “Queremos recuperar os contratos existentes, e não fazer novas licitações”, diz o presidente da ABCR, César Borges, ex-ministro dos Transportes no governo Dilma. Para ele, a gestão Temer está de mãos atadas diante da pressão dos órgãos de controle, como o Tribunal de Contas da União, para se livrar das concessionárias atuais e dar origem a novos contratos — de preferência com gente bem distante da Lava-Jato. O risco, aí, é o de as novas licitações atrasarem ainda mais as duplicações prometidas. “Se houver relicitação, as novas concessões deverão atrasar em pelo menos dez anos as obras nas vias”, diz Borges.
 
Herança bendita
 
Como explicar o fato de as concessões da União causarem tanto conflito com os investidores enquanto as de São Paulo atraírem capital novo? É consenso entre especialistas em projetos de infraestrutura viária que pesou a favor de São Paulo a experiência de negócios da Artesp, agência reguladora fundada em 2002 para cuidar dos contratos de rodovias como a Anhanguera e a Bandeirantes, concedidas à iniciativa privada quatro anos antes, e hoje entre as melhores do país.
 
Boa parte dos técnicos da Artesp foi herdada do Departamento de Estradas de Rodagem paulista. Eles carregavam na bagagem anos de prática na negociação de contratos espinhosos. “Esses acordos precisam de ajustes frequentes para recompor perdas inflacionárias e incluir novos termos, como obras em caso de aumento de tráfego”, diz a advogada Letícia Queiroz de Andrade, do escritório Queiroz e Maluf, que assessora projetos de concessão.
 
E, desde o início da agência paulista, o plano foi basicamente o mesmo: usar o capital privado para estender a malha de vias duplicadas a todas as regiões do estado. O resultado é que hoje São Paulo tem uma rede rodoviária digna de país desenvolvido: são 23 quilômetros de autoestradas para cada 1 000 quilômetros quadrados. Na União Europeia, o índice é de 17 quilômetros; nos Estados Unidos, 11. Em todo o Brasil, a densidade é de irrisório 1,7, de acordo com um levantamento da consultoria Bain & Company.
 
Na esfera federal, em duas décadas de concessões, aconteceu tudo ao contrário de São Paulo. A começar pelo fato de que os primeiros contratos, como é o da rodovia Presidente Dutra, entre São Paulo e Rio de Janeiro, previam somente obras de manutenção. A ambição de uma malha nacional de autoestradas veio apenas no governo Dilma, mas, com os erros cometidos, deu no que deu.
 
A estrutura para monitorar os primeiros contratos, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), fundada em 2001, começou os trabalhos praticamente do zero após o antigo Departamento Nacional de Estradas de Rodagem ser extinto em 1999 por causa de casos de corrupção. De lá para cá, a ANTT sofre com a falta de técnicos capacitados. “Temos 87 analistas para dar conta de 10 000 quilômetros de rodovias”, diz Luiz Fernando Castilho, superintendente da ANTT.
 
Para comparação: a Artesp tem 103 servidores para monitorar 6 900 quilômetros concedidos. A agência federal é criticada por fazer exigências descabidas aos parceiros privados. Até hoje é piada no setor uma imposição contratual feita à empresa espanhola OHL, que assumiu estradas em 2007, no governo Lula. Ela teria de contratar jardineiros para evitar que a grama no acostamento superasse os 30 centímetros de altura em toda a extensão das vias.
 
A exigência, obviamente absurda num país tropical como o Brasil, juntamente com outras esquisitices, rendeu multas de 10 milhões de reais à OHL que colaboraram para a construtora espanhola sair do país em 2011, após quatro anos de contrato. Além disso, nos governos Lula e Dilma, o critério do menor preço, a chamada modicidade tarifária, ganhou peso na seleção dos parceiros privados. “A prática deu margem a pedágios camaradas, mas os contratos hoje se sustentam a duras penas  porque o retorno é baixo”, diz Paulo Resende, professor na Fundação Dom Cabral. Para o usuário, isso significa falta de investimentos em melhorias.
 
Consertar a lambança nas rodovias federais e reconquistar a confiança dos investidores vai levar tempo. E demora é justamente o que o país não precisa num período de crise misturado a altos custos de transporte em rodovias. Aqui, esses custos foram equivalentes a 6% do PIB em 2016, segundo a consultoria Ilos. Nos Estados Unidos, representam 3%. Nos seis primeiros meses de vida do PPI, pouco foi feito para resolver a situação. A expectativa é que em breve sejam realizadas as consultas públicas para as duas primeiras concessões do governo Temer: a BR-364, de Goiás a Minas Gerais, e a BR-101 no litoral sul catarinense, juntamente com a autoestrada gaúcha de Osório a Porto Alegre.
 
Mas os prazos dos leilões ainda estão incertos. “Toda vez que o governo dá um prazo e não cumpre, perde credibilidade”, diz Vasconcelos, secretário executivo do PPI. “Foi o que aconteceu nos programas anteriores, em que quase nada saía do papel.” A favor do PPI há o fato de que o disputado leilão dos aeroportos de Florianópolis, Fortaleza, Porto Alegre e Salvador, no dia 16 de março, saiu na data prevista e atraiu ao Brasil operadores aeroportuários que estão entre os maiores do mundo, como a alemã Fraport e a francesa Vinci.
 
Algumas das medidas da disputa federal, como a extensão do período de análise das propostas de 45 para 100 dias e a criação de um fundo para proteção de riscos cambiais, foram inspiradas em práticas adotadas na preparação do bem-sucedido leilão que atraiu o Pátria para as estradas paulistas. Que os dois eventos sejam o início de uma retomada de bons projetos em concessões — não apenas em São Paulo, mas no país inteiro.

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