Artigo escrito por paulo Roberto Guedes*
Em abril de 2020, ainda nos primeiros meses da pandemia, representantes da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Fundo Monetário Internacional (FMI), respectivamente o diretor geral Tedros Ghebreyesus e a diretora gerente Kristina Georgieva, emitiram pronunciamentos nos quais salientaram a fundamental importância, para todos os países, de se adotar medidas que contemplem a proteção da vida das pessoas e de apoio financeiro às populações mais pobres.
Lamentavelmente, de lá para cá, não foi o que aconteceu no Brasil, posto que os índices de desigualdade e de concentração de renda continuaram aumentando. Seja pelo empobrecimento nacional, oriundo das quedas sucessivas e significativas do PIB, ou seja pela distorção instalada no mercado de trabalho que, mais incisivamente aumentou o desemprego das pessoas menos capacitadas, com menor índice de escolaridade e menos preparadas para os desafios dos ‘novos tempos’. Em época de pandemia, esse fenômeno foi extraordinariamente acentuado (1).
E se é óbvio que os problemas atuais não foram gerados somente pelo governo Bolsonaro, está claro também que a receita preconizada, inclusive por sua equipe econômica, jamais se pautou em buscar soluções para esses problemas, cuja forma pela qual o País tem sido administrado, somente alavancou algumas das variáveis mais indesejáveis em qualquer sociedade: (i) políticas voltadas exclusivamente a interesses particulares (2); (ii) aumento da desigualdade, da concentração de renda e da pobreza, (iii) oferta de empregos muito menor do que a demanda; (iv) serviços públicos precários e insatisfatórios; (v) abandono do combate à violência e à corrupção; e (vi) fracasso na proteção do meio-ambiente.
O modelo de governo implantado, ao eleger o “deus mercado”, somente beneficiou alguns poucos privilegiados e contribuiu para diminuir o campo de oportunidades para a maioria da população brasileira. Um triste cenário que, agravado ainda mais pela pandemia (jamais tratada de forma séria), resultou na maior crise econômica, política e social da história nacional.
Não há dúvidas: o custo da pandemia para o Brasil está sendo e será, infelizmente, muito maior do que deveria. Os números de novos casos e de mortes recentes, diariamente apontados pela imprensa, estão aí a comprovar o tenebroso e lamentável momento no qual vive o País. Ao mesmo tempo em que a pandemia aumenta, o processo de vacinação fica mais devagar.
Felizmente, e não interessam os motivos, parece que agora ‘caiu a ficha’ de que, sem combate firme à pandemia, nada de bom poderá ocorrer com a economia, reconhecendo-se inclusive na área econômica do governo, ser imprescindível, antes de mais nada, proteger a vida do brasileiro. Para o governo federal, de uma forma geral e grande parte do Congresso, uma “virada” e tanto, posto que defendiam, a qualquer custo, o controle das finanças públicas como única e exclusiva prioridade.
Apenas como ilustração, ainda esta semana, ao comentar sobre o endividamento público, disse o ministro Paulo Guedes em entrevista à imprensa: “Não há problema em aumentar endividamento quando se está em guerra. O Estado existe para a proteção do cidadão (grifos meus). Pois é, demorou mas entendeu. Esperemos que não sejam apenas discursos e narrativas oportunistas.
É indiscutível que cabe ao Estado toda e qualquer iniciativa nesse sentido, pois são os investimentos públicos os principais indutores dos investimentos privados. Escreveu o professor e diretor da FEAPUC-SP e presidente do Conselho Federal de Economia, Antonio C. de Lacerda (reportagem publicada no Estadão de 21/04/21): “Quanto ao aspecto fiscal, vale lembrar que o impulsionamento das atividades gera efeito positivo sobre a arrecadação de impostos, o que, no médio prazo, tende a compensar a necessária ampliação dos desembolsos. Muitos países têm ampliado seu déficit e o endividamento público. No âmbito do G20, por exemplo, o indicador da relação Dívida/PIB retomou o nível máximo atingido em 1946, logo após a 2.ª Grande Guerra. Há ainda medidas de reforma tributária em vista visando a ampliar os recursos financeiros. Até com relação à ampliação de recursos financeiros, o ministro Guedes reconheceu ser possível (3).
Portanto, há certa convergência para a necessidade de atendimento simultâneo à, pelo menos, quatro demandas: a) combate à epidemia, com vacinação em massa e manutenção, o quanto possível, do distanciamento social, b) manutenção de renda mínima de sobrevivência para as pessoas mais pobres, desempregadas ou que trabalhavam na informalidade, c) amparo às empresas, notadamente às pequenas e médias, para pagarem suas folhas salariais e manterem os postos de trabalho, e d) estratégia para retorno paulatino ao trabalho, na qual a geração de empregos é fundamental (4).
Considerando que um Estado moderno é aquele que, no momento adequado e preciso, trabalha concretamente na criação de oportunidades para todos, busca a justiça social e o bem-estar da população, é por sua vez o sistema democrático o regime apropriado para que eventuais ônus, frutos desses esforços, sejam divididos entre todos (5). Mas de uma forma mais justa: pagar mais, quem tem mais, é consequência indiscutível, pagar menos que tem menos é fundamental, e não pagar nada, e se necessário até receber, quem nada tem, é essencial.
A evolução ‘quase’ incontrolável da pandemia, o colapso no sistema hospitalar e o empobrecimento crescente de uma grande maioria da população brasileira, exigem que se priorizem políticas voltadas às pessoas. Queira-se ou não, pois além de um problema de injustiça social e humanitário, será daqui que virão novos e maiores problemas (6). E em contexto ainda mais complicado, caso nada seja feito no curto espaço de tempo.
Consequentemente, se este ainda não é o cenário desejado, cabe à toda sociedade brasileira, incluindo-se os dirigentes empresariais, empresas e suas associações de classe, além de se ocuparem com providências no limite de suas atividades, mobilizarem-se, também, na busca de soluções para os grandes e graves problemas nacionais (7). Quero acreditar, inclusive, que as últimas atitudes do governo federal, meio contrariado é verdade, e muito atrasadas, estejam indicando esse momento de inflexão. Mas se por qualquer motivo o governo brasileiro se desviar desse desejável caminho, será necessário que a classe empresarial brasileira passe a agir, de forma objetiva, clara e concreta.
Independentemente das ideologias e posições partidárias, é fundamental que todos os agentes econômicos discutam os problemas nacionais e pressionem o governo a realizar uma forte e séria revisão de tudo aquilo que já se fez até agora. Contribuir para a elaboração de uma proposta convergente e que tenha como objetivo maior, o bem estar coletivo, é essencial. E neste momento, acredito não haver mais dúvidas, o combate à pandemia é a prioridade número um. Como disse o presidente Robson Braga da Confederação Nacional da Indústria (CNI): “Só a imunização em massa da população contra a doença recolocará o Brasil no caminho da retomada da economia, do dinamismo do mercado consumidor e na rota dos investimentos”. Bingo!
Como já escrevi algumas vezes, “não é possível acreditar que em um País como o Brasil, no qual os índices de concentração de renda e de desigualdade só tem aumentado, o desequilíbrio fiscal e a consequente destruição da capacidade de investimentos do governo se deram por conta dos mais pobres e desempregados. Ou por causa dos benefícios sociais existentes. Sem dúvida, a crise não foi criada por essa parcela significativa da população brasileira”.
1. “O impacto da pandemia tem sido mais prejudicial para os indivíduos mais jovens e os menos escolarizados”, diz a técnica do Ipea Maria Andréia Parente Lameiras, autora do estudo. No último trimestre de 2020, a taxa de desocupação dos trabalhadores com idade de 18 a 24 anos alcançou 29,8%, com 4,1 milhões de jovens sem emprego. Entre os trabalhadores com ensino médio incompleto, passou de 18,5% para 23,7% entre os últimos trimestres de 2019 e 2020 (“Os trabalhadores mais atingidos pela pandemia”, editorial do Estadão de 21.04.21);
2. “No Brasil não existe uma classe econômica dominante, mas, sim, uma classe política dominante. (...) As instituições políticas (governo e Congresso, assembleias, câmara de vereadores) são ocupadas pelo estamento oligárquico, que se autogera, que se reproduz incestuosamente, e que se vende, a preço de ouro, caso a caso, para os grupos de interesses na formulação de leis e de políticas que nem de longe atendem ao interesse público”. Trecho do livro “Uma nova Constituição para o Brasil: de um país de privilégios para uma nação de oportunidades” (LVM Editora, 2021), comentado pelo jornalista e advogado Nicolau da Rocha Cavalcanti (“Sonhar e construir um novo Brasil) no Estadão do último dia 18;
3. Conforme indicam os noticiários desta semana, o próprio ministro Paulo Guedes comentou o fato de que é necessário revisar – e diminuir, sem dúvida - o enorme valor de desonerações e subsídios federais (cerca de 4% do PIB) existentes no orçamento nacional. E continuou o Ministro: “Quem tem poder político consegue isenções e desonerações. Quem tem poder econômico prefere entrar na Justiça e ao invés de pagar R$ 1 bilhão para a União, paga R$ 100 milhões para um escritório de advocacia” (reportagem de Eduardo Rodrigues e Lorenna Rodrigues, publicada pelo Estadão dia 5 pp: “Reforma deve debater subsídios e desonerações, diz Guedes”);
4. “É preciso vacinar, é preciso garantir uma renda básica, estimular o consumo e criar empregos”. “Cada um vai ter de ceder para todos ganharem. E o emprego é que vai dar dignidade às pessoas”, comentou a empresária Luiz Trajano em entrevista à jornalista Sonia Racy (Estadão de 21.04.21);
5. Comentário do coordenador de Trabalho e Rendimento do IBGE, Cimar Azeredo: “O Brasil tem um histórico de desigualdade bastante elevado e a pesquisa mostra que o problema persiste” (entrevista publicada pela Folha de São Paulo, dia 16 último). Nessa mesma reportagem, com base na opinião de diversos outros especialistas, conclui: “esse problema é fruto de fatores históricos e estruturais mas, também, do patrimonialismo que se apodera de recursos estatais e empregos públicos, políticas sociais voltadas a grupos que menos precisam e uma estrutura tributária regressiva, que cobra proporcionalmente mais impostos de quem ganha menos” (grifos meus).
6. Em artigo publicado no Estadão do último dia 2, o cientista político e historiador José Murilo de Carvalho, membro da ABL, não titubeia a dizer que o atual caminho pode ser a ruptura política. Escreveu Murilo: “Desde 2015, com anúncio em 2013, já me parecia que o País tinha entrado em uma crise econômica e social que apontava para sua inviabilização como nação capaz de prover vida decente para toda a população. A sensação de fracasso acentua-se hoje com mais duas calamidades, a da eleição de 2018 e a pandemia do coronavírus. Grandes crises exigem liderança nacional sensata, competente, confiável e patriótica. Não é o que temos visto. A se manter o cenário atual, não vejo como se possa evitar um desastre econômico, social e humanitário. É um caminho que pode levar à ruptura política;
7. Diante do crescimento do desmatamento e dos incêndios que vem devastando grande parte da floresta Amazônica, e consequentemente dificultando suas negociações internacionais, trinta presidentes de grandes empresas privadas se mobilizaram e criaram o “Concertação pela Amazônia”, movimento para pressionar que se tomem medidas efetivas e concretas no sentido de ajudar o desenvolvimento sustentável, isto é, reduzir suas emissões de carbono e eliminar o desmatamento das suas cadeias logísticas. Está cada vez mais comum as empresas se comprometerem com padrões de governança corporativa, sociais e ambientais.
Diversos fundos estrangeiros tem pressionado o governo brasileiro para adotar medidas concretas de proteção ambiental, notadamente para a região Amazônica. “Sem compromisso significativo do governo brasileiro e das empresas para enfrentar as mudanças climáticas e o desmatamento, investir no País ficará cada vez mais difícil”, disse o presidente do Fundo Norueguês Storebrand, Jan Erik Saugestad. Saugestad, em julho do ano passado, junto com outros empresários, assinou carta cobrando do governo do Brasil, medidas de proteção à Amazônia.
Segundo pesquisa da Consultoria Mazars, bancos em todo o mundo tem focado suas atuações às questões ambientais, sociais e de governança (ESG). Matéria de Fernanda Guimarães (Estadão de 20.03.21) dá conta que “87% das instituições financeiras agora oferecem produtos com características “responsáveis” a seus clientes, ante uma média de 47% no ano passado” (Itaú Unibanco e Bradesco fazem parte desse grupo). “O levantamento mostrou que, neste ano, em média, 74% dos bancos globais contam com medidas que fomentam a cultura de sustentabilidade e adaptaram suas estruturas de governança. Na pesquisa conduzida no ano passado esse porcentual era de 49%.
“Com o agravamento do número de casos da pandemia e o aumento da taxa de ocupação dos leitos de UTI nos estados brasileiros, a empresa adota esta medida a fim de preservar a saúde de seus empregados e familiares” é um trecho do comunicado da Volkswagen (19.03.21) para paralisar, entre 24/03 e 04/04, suas atividades produtivas no País.
Diversas indústrias ofereceram as instalações de suas fábricas, além de todo o suporte necessário, para aplicação da vacina de prevenção ao Covid-19.