O enfraquecimento do ministro da Economia ao meio da pandemia é ruim para todos. O mercado não precificou uma troca na economia
Por Thomas Traumann - Atualizado em 25 maio 2020,
O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem o pior emprego do mundo e nesses dois meses o seu cargo virou um poço sem fundo de más notícias. Não bastasse a pandemia do coronavírus, a abordagem do governo federal no combate à doença é irracional, irascível e irreparável. Não bastasse a recessão global, a barafunda entre governo federal e governadores desorganiza as quarentenas e torna mais arriscada a volta ao trabalho, aprofundando os efeitos da recessão. Não bastasse o presidente Jair Bolsonaro arranjar uma briga por dia, ele está sendo investigado pelo Supremo Tribunal Federal por tentar interferir na Polícia Federal para proteger seus filhos. Não bastasse o mau humor dos mercados, o Brasil virou sinônimo de instabilidade: o real se tornou uma das moedas mais desvalorizadas do ano, a saída de capital estrangeiro é recorde e o risco Brasil dobrou de janeiro para cá. Não bastasse o déficit previsto de R$ 500 bilhões para este ano, o Congresso ameaça cavar um rombo mais fundo com projetos populistas enquanto os generais articulam a substituição do ministro da Economia por um gastador. Não bastasse tudo isso, Paulo Guedes tem errado muito.
Como informou reportagem do jornal O Estado de S.Paulo, o vice-presidente da Câmara, deputado Marcos Pereira, um dos principais articuladores da incorporação do Centrão à base do governo no Congresso, relatou em live a investidores que existe uma divisão entre os militares e Guedes. Segundo Pereira, o ministro da Casa Civil, general Braga Netto, lhe disse: “Daqui a alguns meses o governo terá de enfrentar a intransigência do ministro Paulo Guedes”. Esse duelo deve ocorrer depois de julho, quando saírem os números explosivos do desemprego. Na primeira quinzena de maio, os pedido de seguro-desemprego saltaram 76% em comparação com o mesmo período de 2019.
A recessão vem acompanhada de um gigantesco desequilíbrio fiscal. De acordo com o IFI (Instituto Fiscal Independente), o déficit primário deve ultrapassar os R$ 500 bilhões previstos pelo governo e serem agravados pela agenda do Congresso no pós-Covid19. São nulas as chances de reequilíbrio fiscal no mandato Bolsonaro. No mercado, há uma preocupação séria com a possibilidade de o governo perder a ancoragem fiscal, o que implicaria numa subida drástica dos juros, a maior conquista financeira dos últimos anos. Com uma diferença enorme: o Banco Central voltaria a subir juros num ambiente de recessão e dívida pública em explosão.
Nesse cenário de guerra é inevitável que, em algum momento, os dedos acusadores busquem um culpado e – declaração equivocada sobre declaração equivocada, avaliação política míope sobre avaliação política míope, pedantismo sobre pedantismo – Paulo Guedes parece estar se colocando em frente ao pelotão de fuzilamento. É hora de parar. O Brasil já tem problemas demais para ter que debater a substituição do comandante da economia no meio de uma pandemia.
Olhando para frente, sem entrar neste momento nos erros de condução dos últimos meses, o pacote econômico conseguiu impedir a explosão da panela de pressão social na pandemia. O auxílio emergencial de R$ 600 chegou ao bolso de 51,6 milhões de desamparados, o adiamento na cobrança de impostos deu fôlego no caixa das empresas e a possibilidade de redução salarial durante a quarentena impediu -ao menos por enquanto – demissões em massa.
As promessas de crédito, no entanto, são um fracasso. Dos R$ 40 bilhões previstos para financiar o pagamento das folhas salariais, apenas R$ 1,6 bilhão foram liberados. Parte é resultado da insistência dos bancos em emprestar apenas a quem não precisa de empréstimo. Segundo dados do Sebrae, 86% das pequenas empresas em busca de financiamento ou tiveram seus pedidos negados ou ainda esperam resposta.
Levantamento do colunista Matheus Leitão, com base em dados do Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi), mostra que dos R$ 255,8 bilhões anunciados pelo governo federal para atenuar os efeitos do coronavírus, apenas 43% foram efetivamente liberados. É um problema de gestão escandaloso. O presidente Bolsonaro demorou 24 dias (sim, você leu certo, 24 dias!) para sancionar a lei de empréstimos a micro e pequenas empresas aprovada pelo Congresso e que ainda precisa de regulamentação do Ministério da Economia. É a associação da inoperância com o descaso.
Em tempos de crise, soluções fáceis para problemas complexos nascem no Congresso feito ervas daninhas em dias de chuva. Com a negligência da articulação política do governo, se multiplicaram os projetos de lei com anistias de dívidas, congelamento de preços, isenção de impostos e interferências em contratos estabelecidos. Uma dessas curas milagrosas, o tabelamento das taxas de juros dos cartões de crédito, teria sida aprovada dias atrás pelo Senado não fosse a pauta de votação ser mudada cinco antes do início da sessão. O Congresso, assim como o inferno, está cheio de boas intenções.
O grande desejo dos parlamentares nas próximas semanas será renovar o auxílio emergencial de R$ 600. Segundo a estimativa oficial, o auxílio custará R$ 124 bilhões até junho – quatro vezes o tamanho do orçamento anual do Bolsa Família. O programa tornou-se, no entanto, tão vital para a sobrevivência de tanta gente que certamente será prorrogado para além de junho. Há no Congresso propostas de extensão que vão até setembro até março de 2021, com viés para uma renovação de três meses prorrogáveis por outros três.
Guedes entrou no debate com um argumento correto (aceitaria a renovação do auxílio em troca da incorporação de benefícios como o seguro defeso e o abono salarial), uma oferta baixa para ter espaço de negociação (a redução da mensalidade de R$ 600 para R$ 200) e a arrogância de coronel de engenho. “Se falarmos que vai ter mais três meses, mais três meses, mais três meses, aí ninguém trabalha. Ninguém sai de casa e o isolamento vai ser de oito anos porque a vida está boa, está tudo tranquilo”, declarou, reproduzindo em uma frase séculos de estigma de pobres indolentes.
Falar tolices não é monopólio de Guedes, mas é preocupante a regularidade com a que o ministro atravessa a rua para pisar em cascas de banana. Um ano atrás, era apenas engraçado ouvi-lo falar que iria zerar o déficit público (o resultado foi de R$ 90 bilhões negativos) ou que arrecadar R$ 1 trilhão em privatizações (deu menos R$ 100 bilhões). Com o tempo, no entanto esses exageros cruzaram a linha entre a fanfarronice e a manipulação. Um exemplo: ainda hoje, Guedes diz que a pandemia chegou quando o Brasil “estava decolando”. Coisa nenhuma. Mesmo sem o coronavírus, a economia ia andar de lado neste ano.
O problema é que quando o ministro da economia faz afirmações tão obviamente falsas, compromete toda a sua credibilidade. Ninguém ao certo sabe quão fundo será a recessão e como se dará a recuperação, mas quando Guedes afirma categoricamente que será em formato de V (com queda e subida rápidas) ninguém o leva a sério. Por quê? Porque se ele não traz uma apresentação honesta sobre o passado recente, fica difícil confiar nas suas previsões. Guido Mantega sofreu isso no passado e teve um triste fim.
Guedes tem, ainda, demonstrado uma inigualável capacidade de gerar atritos desnecessários. Ele tem uma predileção em atacar servidores públicos, ora chamados de “parasitas”, ora de privilegiados que “estão com a geladeira cheia quando o resto da população passa fome”. Ok, todo mundo entendeu que para o ministro tudo que é estatal é intrinsecamente ruim. Repetir esse argumento ad nausem apenas mostra traços obsessivos.
O mesmo vale com o Congresso. Antes da posse, Guedes dizia que o governo deveria “dar uma prensa” para fazer com que o Congresso aprovasse a reforma da previdência. À época disse ter sido mal interpretado. Dias atrás, ele pediu a empresários, “que sempre financiaram campanhas eleitorais”, a usar o acesso aos parlamentares para forçar apoio o governo em votações.
Guedes conseguiu ainda romper com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, numa decisão onde só ele perdeu. Sem acesso ao dono da pauta das votações na Câmara, Guedes fica dependente dos articuladores políticos do governo, o mesmo que nada.
Com o governo Bolsonaro em modo Survival, com o desastre na condução da pandemia e as demissões dos ministros Luiz Mandetta e Sergio Moro, Paulo Guedes está em um ambiente inóspito. No mês passado, o ministro da Casa Civil, general Braga Neto, anunciou um plano de obras federais que custaria R$30 bilhões por ano sem consultar o Ministério da Economia. Foi o sinal público de semanas de queixas dos militares à falta de projetos de Guedes para retomada do crescimento para além do manual de privatizações e ajuste fiscal.
No vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, Guedes mostra que sentiu o golpe. Chama o plano do general Braga de “um desastre”. “Está cheio de gente pensando nessa eleição agora, e botando coisa na cabeça de todo mundo aqui dentro, que são governadores querendo fazer a festa, são às vezes ministros querendo aparecer, tem de tudo. E todo mundo vem aqui: ‘vamos crescer, agora temos que crescer, tem que ter a resposta imediata, porque o governo vai gastar’. O governo quebrou! O governo quebrou! Em todos os níveis. Prefeitura, governador e governo federal”, disse Guedes. Ao final da fala, Guedes ataca ex-assessor Rogério Marinho, hoje ministro de Desenvolvimento Regional: “Marinho, claro, está lá, são as digitais dele”.
Enfraquecido no jogo político, Guedes passou a incorporar o papel do bolsonarista que sabe usar talheres certos. Semana sim, semana também, o ministrou traz dirigentes das corporações empresariais para ouvir Bolsonaro. O resultado foi queimar pontes com governadores e constranger empresários ao mesmo tempo. Na primeira reunião, no Palácio do Planalto, os empresários caíram na armadilha de serem levados ao Supremo Tribunal Federal como claque da defesa do presidente pelo fim da quarentena. Na segunda, via internet, os empresários ouviram do presidente que deveriam “jogar pesado” contra os governadores.
No Brasil que não vive em Brasília, a situação do ministro também é desconfortável. Pesquisa XP/Ipespe divulgada nesta semana que a quantidade de brasileiros que economia está no caminho errado subiu de 52% para 57%, enquanto os que veem a economia no caminho certo passaram de 32% para 28%. Questionados sobre os impactos da crise causada pelo novo coronavírus, 68% acreditam que o pior ainda está por vir. E estão certo.
É um Guedes, portanto, encolhido que comanda a economia brasileira na pior crise do século. É, no entanto, ingênuo achar que o mercado já tenha precificado uma troca na economia. Para o mercado, a saída de Guedes simbolizaria o abandono da agenda liberal (por mais que, na prática, esta pauta já seja ilusão), a perda de um interlocutor com capacidade de influenciar o instável Bolsonaro e a possível nomeação de um substituto fantoche de uma agenda de crescimento via Estado.
Nesses 17 meses como ministro, Paulo Guedes tem mostrado traços messiânicos como Dílson Funaro (ministro da Fazenda entre 1985-87) e panglossianos como Guido Mantega (ministro entre 2007-2014). É hora de ser focado como um Henrique Meirelles (ministro entre 2016-18) e comedido como um Pedro Malan (ministro entre 1995-2002). Caso contrário, Guedes poderá reviver a meteórica passagem de seu ídolo Mario Henrique Simonsen no governo Figueiredo. Depois de deixar o governo em 1979, após apenas cinco meses no cargo, Simonsen foi perguntado como se sentia: “Como aquele tenor de ópera que cantou, desafinou o tempo todo e levou uma bruta vaia do público do teatro. Na saída, ele se voltou para a plateia e disse: Vocês estão me vaiando porque ainda não ouviram o barítono”.