Artigo escrito por Paulo Roberto Guedes em 29.04.2020*
Em face do coronavírus não há qualquer dúvida que a economia mundial observará queda importante neste ano (com probabilidade também para o ano seguinte), sendo que muitos países ainda terão que lidar com índices significativamente negativos. Serão impactos devastadores no ritmo da produção, bem como nas diversas formas de sua organização.
Além disso é preciso considerar que a pandemia ocorre em momento no qual o mundo todo se encontra altamente endividado. Dados do IIF (Institute of International Finance) e da OCDE (Organização para a Cooperação do Desenvolvimento Econômico), publicados em excelente matéria do jornalista Fernando Canzian (1), mostram que o endividamento global, que inclui governos, bancos, famílias e empresas, atingiu o recorde neste início de ano: cerca de US$ 253 trilhões, equivalentes a 322% do PIB mundial. Explica Canzian: “enquanto o trauma da crise global de 2009 levou bancos e famílias a controlar suas dívidas nos últimos anos, os governos se endividaram rapidamente (para socorrer empresas) e as companhias ampliaram suas dívidas em um ambiente de juros extremamente baixos”. Agora o que se nota é que, com a estimativa de que o mundo não deverá crescer em 2020 e que coincide com um volume recorde de vencimento dos débitos contraídos anteriormente, as dificuldades serão maiores. Finaliza Canzian: “com a eclosão do coronavírus, no entanto, há muitas dúvidas agora se os investidores se sentirão confortáveis em refinanciar essas dívidas sem saber ao certo se as empresas terão faturamento suficiente para honrá-los no futuro”.
Por outro lado, o FMI (Fundo Monetário Internacional), em publicação recente, comentou que a pandemia do coronavírus aumentará a desigualdade em todo o mundo, adicionando à condição daqueles que vivem em situação de extrema pobreza (que vivem com menos de US$ 1,90 por dia), mais 60 milhões de pessoas (2).
Coincidentemente, no dia 28 pp, em evento Estadão/Harvard, para discutirem a desigualdade social no Brasil, compareceram o Deputado Federal Felipe Rigoni (PSB-ES), Katia Maia, da Oxfam Brasil e o apresentador de televisão Luciano Huck. Como a desigualdade social é um dos assuntos que mais tenho comentado nesses últimos 4 ou 5 anos, utilizarei apenas uma frase, que publicada pelo Estadão resume o debate: “A pandemia do novo coronavírus escancarou a desigualdade social no Brasil e combatê-la é o principal desafio pós-crise”
De fato, pesquisa da Roland Berger, realizada trinta dias após o início da crise do coronavírus, e publicada no Estadão do último dia 27, via matéria elaborada pelo jornalista Renée Pereira, mostra que: a) em média, 8% das famílias brasileiras tiveram pessoas que perderam emprego, sendo que 30% não tem qualquer reserva de emergência e apenas 16% tem provisão para mais seis meses. Analisando-se porém, a pesquisa por faixas salariais, é enorme a distância entre aquelas famílias que recebem o mínimo – salário até R$ mil – e aquelas que recebem o máximo – salário acima dos R$ 30 mil. Nas famílias cujo salário mensal é de até R$ 1 mil, 29% tiveram pessoas que perderam o emprego, 57% não tem qualquer reserva de emergência e apenas 5% tem recursos para os próximos 6 meses. Já nas famílias com salários no pico (acima de R$ 30 mil por mês), ninguém perdeu emprego, apenas 3% não tem reservas e 63% tem recursos para sobreviver por mais seis meses. As indesejadas e longas filas de pessoas, que se expõe ainda mais ao Covid-19, para receber uma pequena – mas necessária - ajuda do governo (R$ 600,00 mensais durante três meses, pelo menos), demonstram a precária situação na qual se encontra a imensa maioria da população brasileira.
Portanto, o Brasil, que já vivia seu “inferno” econômico/político/social há muito tempo antes da pandemia, se defrontará com dificuldades ainda maiores, como tenho tentado demonstrar em meus últimos artigos. Apenas para ilustrar, alguns índices macroeconômicos importantes: antes da pandemia, e considerando o novo governo e sua plataforma de reformas, era possível acreditar que o Brasil pudesse alcançar, em termos reais, o PIB equivalente ao de 2014, já agora em 2021 (sete anos de estagnação). Agora, minha estimativa, considerando a significativa queda do PIB em 2020 e suas consequências posteriores, isso somente será possível em 2025 (quatro anos mais de estagnação). O PIB per capita de 2013, o maior até agora, poderia ser alcançado em 2024, agora somente a partir de 2027. Todos ficamos muito mais pobres, pois somente em 2027 teremos, cada brasileiro, a mesma renda que tínhamos 14 anos atrás. O governo, que previa um resultado primário positivo já em 2023 (o último foi em 2013), agora com a pandemia e o “estouro” nos gastos públicos e queda acentuada na arrecadação, somente chegara a isso a partir de 2027. Consequentemente a DLSP (Dívida Líquida do Setor Público), que já foi equivalente a 30,5% do PIB em 2013 e subiria até 58% em 2023 para depois cair, terá impactos que pioram sua situação: somente deverá cair a partir de 2024, ao chegar a 80% do PIB!
Entretanto, depois de cometidos graves erros no combate à pandemia (3), propostas para minimizar os impactos imediatos e organizar o País para o futuro, e até por obrigação, começam a surgir, fazendo reaparecer diversos tipos de discussões, que vão do tamanho do Estado e seus níveis de intervenção, até os graus de estatização ou de economia de mercado mais apropriados.
E se o governo, diante dessas circunstâncias e de forma temporária, está sendo obrigado a gastar muito mais do que previa o seu orçamento inicial, restabelecer o equilíbrio das contas públicas deverá ser uma prioridade logo que tudo “voltar ao novo normal”, como dizem muitos. De qualquer forma não é momento de indecisão e, muito menos, de se adotar medidas inconsequentes e erradas. Aqui também será preciso atuar com equilíbrio e sensatez, pois fechar ou abrir totalmente o ‘caixa’ não é a questão. O âmago do problema está em como compatibilizar providências que preservem a vida do cidadão brasileiro, isto é, que priorizem o combate da pandemia (infelizmente, recrudescendo), sem que isto possa significar irresponsabilidade total com o que ocorrerá no futuro. Uma nova agenda deve ser considerada e assuntos fartamente discutidos e esquecidos momentaneamente, precisarão ser retomados, como são as reformas estruturantes (Tributária, Administrativa etc.). E com visão e foco diferentes.
Mas como não há crescimento econômico sem um nível compatível de investimentos, é preciso que se discuta em quais setores da economia brasileira deverão ser utilizados os poucos recursos que se tem à disposição. Setores de produção de automóveis ou de eletroeletrônicos ou a prestação de serviços turísticos (hotéis, companhias aéreas e de viagens) ou de lazer (restaurantes, cinemas e espetáculos que concentram um número razoavelmente grande de pessoas, por exemplo), continuarão tendo a mesma demanda que tinham antes do covid-19 (4)? E o que dizer das principais demandas – já bastante antigas e não atendidas, pelo contrário, algumas até agravadas - de um País como o Brasil, quando se analisam os altíssimos índices de desigualdade social, de pessoas vivendo abaixo da linha da miséria, de concentração de renda e de analfabetismo? Ou das condições atuais da saúde pública, da educação, da segurança e da infraestrutura?
Quando se tratar de investimentos privados, e desde que o clima de confiança retorne, a resposta deverá vir do próprio setor, pois com pragmatismo e objetividade ele saberá “onde deverá, e em qual momento, colocar seu dinheiro”. Aliás, sempre orientado pelo lucro e pela manutenção de seus direitos, é o setor privado o primeiro a se movimentar no sentido de estabelecer estratégias específicas para isso. E sempre tendo a racionalidade, a produtividade e a competitividade como principais pilares de sustentação do setor.
Já no que concerne aos investimentos públicos a discussão é bem diferente, pois enquanto ao Estado cabem responsabilidades próprias, que inclusive fazem parte da Constituição Nacional, ao Governo de plantão, além de respeito à carta constitucional, exige-se compreensão e atendimento das principais demandas da sociedade que o elegeu, assim como das ‘novas necessidades’ surgidas. Por exemplo: atividades que se prenunciavam como do futuro, mas que por causa da pandemia tiveram seus ‘momentos’ adiantados não terão que ter providências imediatas? As condições, as regras e as estruturas e infraestruturas específicas para que o trabalho em casa, o ensino à distância, o comércio eletrônico e tantos outros, transformados em realidade, não precisarão ser desenvolvidas e implementadas com urgência inesperada?
Para tantas demandas de investimento público, será necessário que o governo aumente sua dívida, caso não haja condições de aumentar a arrecadação de forma imediata. Não há outra saída, por mais que se possa contar com investimentos privados para execução dessa tarefa. Volto a repetir: a dívida pública será, ao final das contas, pagas por todos nós. O importante é que “se o Estado moderno é aquele que, no momento adequado e preciso, consegue criar oportunidades para todos, busca a justiça social e se ocupa do bem-estar de toda a população, o sistema democrático exige que quaisquer e eventuais ônus de uma sociedade, sejam divididos entre todos. E se isso é inerente à Democracia, pagar mais, quem tem mais, é necessário, pagar menos que tem menos é fundamental, e não pagar nada, e se necessário até receber, quem nada tem, é essencial” (5). Aliás como já escreveu o economista e ex-diretor de política econômica do Banco Central, Luis Eduardo Assis, “os baby boomers nasceram devendo muito, mas ainda assim viveram um longo período de prosperidade que diluiu o ônus da dívida pública emitida pela geração que os antecedeu”. Embora eu acredite que a austeridade não deveria ser nada mais do que obrigação, gastar mais quando for preciso – e com critério - não fará o mundo acabar!
Neste momento, e além da discussão de onde virão os investimentos necessários, é essencial que o Estado brasileiro - não grande, mas forte o suficiente – lidere e coordene todas as atividades de uma informa integrada e que, através da boa prática política, estimule todos a buscarem objetivos comuns.
No debate sobre o “Papel do Estado na Economia” em época de coronavírus, organizado pela “Brazil Conference at Harvard & MIT & Estadão”, realizado dia 23 pp, Ana Paula Vescovi, Flávia Piovezan e Laura Carvalho proporcionaram um excelente debate a respeito. Permito-me, a seguir, fazer um breve resumo.
Inicialmente, considerando que pandemia do covid-19 inaugurou em mundo no qual novas escolhas poderão e deverão ser feitas, o Estado, sempre utilizando-se de governos funcionais e que pratiquem as boas práticas da governança, deverá estar orientado para algumas vertentes importantes: a) proteção social e dos direitos constitucionais; b) prestação de serviços públicos, notadamente para as populações pobres que, mesmo empregadas, não tem condições de obter alguns deles junto ao setor privado; c) coordenação e regulação dos investimentos e do financiamento voltados às obras de infraestrutura; d) orientação, difusão e financiamento, quando necessário, para o desenvolvimento científico e tecnológico; e) defesa e manutenção do Estado Democrático de Direito; f) defesa do federalismo e da separação de poderes, da cooperação internacional, da abertura comercial e do multilateralismo; g) manutenção da estabilidade macroeconômica e responsável pela instalação de políticas anticíclicas; h) promoção de ambientes de negócios que protejam as reais condições da concorrência e do mercado competitivo, das quais a abertura comercial é fundamental; e i) promotor das reformas estruturais.
Pois é, a agenda do governo brasileiro é extensa e complexa, que exigirá trabalho, competência e muita negociação política. Todos os assuntos aqui listados me parecem de fundamental importância, mas a desigualdade, que já existia no Brasil de forma bastante significativa e com perspectivas de aumentar ainda mais por conta da pandemia, deverá ser um dos principais focos deste governo. Ou um caos ainda maior poderá ser observado. Haja discussão política! Haja competência!
(1) No mundo todo, à partir de 2007 governos e empresas financeiras foram os que mais se endividaram. Além disso, em 2020, cerca de 25,2% da dívida total estará vencendo, outros 3,6% vencerão em 2021 e 3,9% vencerão em 2022. Resumo: em apenas três anos, quase 1/3 do total da dívida precisaria ser renegociada (Folha de São Paulo, 08/03/20, matéria escrita pelo jornalista Fernando Canzian);
(2) Os países mais desenvolvidos (G7), deverão gastar só para enfrentamento da pandemia, cerca de 6% do PIB, mas mesmo assim não estarão livres do queda em seus respectivos PIBs. A média de gastos no Grupo dos 20 maiores do mundo (G20), do qual o Brasil faz parte, é de 3,5%. Os EUA, ao beneficiarem cerca de 150 milhões de trabalhadores, preveem gastar 10% do PIB. O Japão 20%! O fato é que todos esses países, com raríssimas exceções, poderão ter problemas em suas contas públicas, pois ao mesmo tempo em que aumentam seus gastos, terão quedas importantes em seus PIB e em arrecadação de impostos.
(3) Para resumir vou me socorrer do que escreveu o médico sanitarista Gonzalo Vecina (Estadão de 27/04/20): “O primeiro (erro) foi a ganância de empresários que resistiram em paralisar suas atividades comerciais”; “o segundo foi a presença de políticos populistas que entregaram o bem estar de seus cidadãos e aceitaram a pressão dos empresários para não propor o isolamento social”; e o terceiro, que ocorre pelos menos nos últimos 15 ou 20 anos, é a diminuição da “importância do Estado na gestão da sociedade e entregar ao mercado a tarefa de definir o que é, e como se constrói bem estar social”;
(4) Armínio Fraga tem comentado a respeito: "Alguns setores já são muito claros (no que diz respeito ao questionamento): restaurantes, serviços pessoais, hotéis, companhias aéreas e outros". "Isso é bem diferente da política de 'campeões nacionais'" (adotada pelo BNDES nos governos petistas). "A sociedade tem que se perguntar se alguns setores, que foram destroçados pelo vírus, merecem algum apoio, se isso faz sentido do ponto de vista social e econômico" (grifos meus);
(5) “Classes dirigentes também aprendem com a dor. Mas, principalmente no Brasil, somente quando são afetadas por ela”, texto de Paulo Roberto Guedes, publicada no site do Guia do TRC em 04.04.2020.
Nelson Barbosa: ao dizer que "essa crise mostrou que, quando há um risco, o espaço fiscal é gerado", finalizou: "O governo vai emitir dívida e, quando chegar a hora de pagar, espera-se que a economia já tenha se recuperado, com um PIB e uma arrecadação maior, com a qual vai se pagar parte dessa obrigação";