Artigo escrito por Sergio Caron*
No dia 23 de março, o Ever Given, um enorme navio porta-contêineres da classe Golden, encalhou diagonalmente no Canal de Suez, uma das vias navegáveis mais movimentadas e importantes do mundo, porta de entrada para a movimentação de mercadorias entre a Europa e a Ásia, que representa 13% do comércio mundial. A embarcação finalmente voltou a navegar depois de ficar seis dias parada, impedindo o transporte em ambas as direções através do canal e custando à cadeia de suprimentos global mais de US? 52 bilhões. A causa fundamental do incidente ainda está sob investigação, mas a situação geral provocou importantes discussões a respeito dos riscos que envolvem o transporte marítimo.
Avaria grossa: implicações
Entende-se por avaria grossa toda despesa extraordinária decorrente de dano causado ao navio ou à carga, a fim de evitar um mal considerável ao transportador marítimo e ao proprietário da carga.
As empresas proprietárias de cargas nem sempre conhecem as regras contratuais a que estão sujeitas por adesão ao documento de navegação do comércio exterior conhecido como Bill of Landing (BL). Entre seus termos, está a imposição universal de que, caso o navio passe por uma situação adversa em que for decretada e ratificada avaria grossa, o proprietário da carga está obrigado a contribuir proporcionalmente pelas despesas geradas pela ocorrência.
Se a contratação de um guincho particular para rebocar um carro quebrado é uma fábula de dinheiro, quanto custará o salvamento de um mega-navio? Tais despesas podem ser da ordem de milhões de dólares, atreladas a um processo que engloba desde a contratação de escavadeiras, rebocadores e empurradores, até o alijamento de parte da carga. Se a avaria grossa se confirma, tudo isso é rateado entre as partes envolvidas, de forma obrigatória.
Gigantismo do problema
Depois da aeronáutica, a indústria marítima é hoje a segunda mais afetada no mercado de seguros, situação agravada pela crise da covid-19 e as correções de taxas ao longo dos anos. Na carteira, o primeiro impacto é no seguro atrelado ao casco e à responsabilidade da operação do navio; depois, nos seguros de porto e terminal; e, por último, no da própria carga.
A conta final do encalhe do Ever Given ultrapassará a casa dos bilhões de dólares. Segundo a Euler Hermes, as perdas diárias para o comércio global chegam a até US? 10 bilhões. A seguradora de crédito ainda estima que cada semana de fechamento deve custar de -0,2 pp a -0,4 pp de crescimento anual do comércio.
Há custos de toda natureza envolvidos: as condições da tripulação, o tempo dilatado da navegação, o combustível necessário para mover o navio, a situação de cargas sensíveis e perecíveis, o descumprimento de contratos por conta de atrasos, entre vários outros aspectos: um "oceano" de interpretações se abre para litígios.
Essa sucessão de custos provoca uma cadeia de sub-rogação de direitos. Caso se confirme a causa fundamental do acidente como falha humana, a empresa responsável tem seus problemas agravados.
Cobertura de atrasos
A primeira reclamação dos segurados em casos como o do navio Ever Given é pelo atraso ou demora na entrega das mercadorias. No mundo todo, porém, os seguros marítimos dos embarcadores tradicionalmente contêm uma cláusula de exclusão relacionada à demora e aos atrasos, ainda que decorrentes de riscos cobertos, como é o caso do encalhe, e muitos segurados não se atentam a esse detalhe.
Existem seguros específicos, como o chamado TDI (Trade Disruption Insurance), que cobre justamente a disrupção da cadeia logística, por conta de algo extraordinário. Mas, pelo seu altíssimo custo, é um seguro raramente contratado ou oferecido pelas seguradoras.
Seguro P&I
O grande seguro por trás das operações marítimas é o P&I (Protection & Indemnity), que garante cobertura para os riscos de responsabilidade civil aos armadores, operadores e afretadores por danos causados pelo navio, e se configura como um grande rateio entre toda a indústria marítima do mundo, por meio de clubes que fornecem cobertura de proteção e indenização a seus membros associados. Já era uma linha de seguros bastante prejudicada pelos impactos da covid-19 e, com o caso do Ever Given, ganha um fator extraordinário imenso. Essa é mais uma preocupação relevante das partes envolvidas no incidente: como vai ficar o dispêndio e quanto será a contribuição desses clubes de proteção?
O futuro
Como as empresas que fazem transporte marítimo podem trabalhar para não deixar isso acontecer de novo? Existem ferramentas de gestão de risco que podem e devem ser aplicadas. Antes de realizar um transporte de carga, é essencial o bom planejamento da rota, para saber a melhor hora e a melhor forma de trafegar nos diferentes trajetos, assim como os limites em que é preciso operar para estar em segurança.
Navios fenomenais como o Ever Given, que suportam 24 mil contêineres de 20 pés (TEU), não provêm de empresas leigas, e geralmente têm toda a proteção. No entanto, na carga a bordo do navio há uma mescla de empresas de grande porte com outras que desconhecem o mecanismo jurídico do ambiente marítimo.
Para os proprietários de cargas, é importante projetar qual seria o possível impacto caso uma situação extrema aconteça. Qual o limite a que essa perda pode chegar? Qual o limite de contratação de um seguro que cobre esse tipo de evento? Por meio de análises de cenários, é possível prever o risco de uma catástrofe como essa acontecer e qual limite de seguro é ideal para cada situação.
*Sergio Caron é Diretor de Marine e Cargo da Marsh Brasil, e Paulo Guerreiro, Diretor de Portos e Terminais da Marsh Brasil.