Com respeito à aprovação da PEC Kamikaze (1), aproveito e repito alguns trechos, devidamente atualizados, de artigo que publiquei no Portal do Guia do TRC em 31.05.2018 (“Brasil: da boleia do caminhão à nau dos insensatos”) para fazer alguns pequenos comentários.
São diversos os motivos pelos quais o Brasil tem operações logísticas, notadamente o transporte de cargas, realizadas com alguns indesejáveis graus de deficiência, baixa produtividade e alto custo. Todas as pesquisas a respeito indicam que o país conta com uma logística muito aquém de suas reais necessidades. E muito inferior a tudo aquilo que se encontra na maioria dos países emergentes e desenvolvidos. O Brasil, em 2018, ocupou a 56ª posição entre 160 países avaliados em desempenho logístico pelo Banco Mundial (LPI – Logístics Performance Index).
Com relação especificamente ao custo dessa logística (que inclui transporte, estoque, armazenagem e administração), e segundo estudos do ILOS (Instituto de Logística), em 2020 ele representava 12,6% do PIB brasileiro, sendo o transporte, sozinho, responsável por quase 66% desse total. Entre os diversos modais, a participação do custo do transporte rodoviário equivale a 86,6% do total. Em tonelada por quilômetro útil (TKU) o modal rodoviário de cargas é responsável por 61,4%.
E se diversos também são os motivos pelos quais se constata que o Brasil realiza operações de transporte com preços maiores do que os desejáveis, e em condições discutíveis, quando se analisam qualidade e pontualidade, não se pode esquecer a falta de investimentos no setor. De acordo com a Carta de Infraestrutura da Inter.B Consultoria Internacional de Negócios, de maio deste ano, as quedas nas taxas de investimentos em transporte, em todos os modais e bastante significativas, tem sido regra nos últimos anos: de 2,36% do PIB na década de setenta e entre os anos de 2011 e 2015, para 0,47% em 2019, 0,50% em 2020, 0,55% em 2021 e com perspectiva de 0,55% em 2022. É muito pouco e não recupera, inclusive, a própria depreciação.
As consequências são conhecidas por todos: pequena quantidade de estradas asfaltadas (entre 13% e 15% do total), considerando os volumes e as dimensões do País; baixa qualidade das estradas, mesmo das asfaltadas (2); altíssimos índices no roubo de cargas e de acidentes que geram, além de enormes prejuízos, a necessidade de se gastar muito com gerenciamento de riscos e seguro; pressão de parte das transportadoras e/ou embarcadores para que se cumpram prazos, às vezes, impossíveis de serem atendidos, aumentando ainda mais a ‘insegurança’; perdas desnecessárias de tempo no carregamento ou no descarregamento das mercadorias, em virtude, dentre outros, da falta de espaços para armazenagem, da falta de equipamentos de carga e descarga ou diante do excesso de burocracia documental; exagerado número de órgãos intervenientes, onde ‘todos mandam’; movimentos grevistas ou instalação de “operações padrão” de auditores da receita, do fisco ou das aduanas; irresponsabilidade de alguns motoristas que tomam remédios (o chamado “rebite”) para se manterem acordados; frota demasiadamente velha e em precárias condições (3); etc. A lista é grande.
Motivos para justificar porque o Brasil tem uma matriz de transporte de cargas dependente do rodoviário também não faltam. Enquanto no Brasil 61,4% das cargas são transportadas no modal rodoviário, nos EUA são 30%, no Canadá 43%, na Rússia 8% e na Índia 50%. O aquaviário nos EUA é equivalente a 24%, enquanto no Brasil é de apenas 14,6%. O ferroviário na Rússia é 81%, enquanto no Brasil é de apenas 20,2%.
Embora possa haver alguma discrepância entre essas estatísticas, muito mais por causa dos critérios, metodologias ou períodos de análise, do que erros de interpretação, o fato é que o Brasil conta com uma matriz de transporte dependente exageradamente do rodoviário. Observação importante: mesmo assim, o Brasil ainda é carente nesse modal, posto que, quando comparamos o quanto de estradas asfaltadas se tem por área territorial (km de estradas asfaltadas por 1000 km² de território), o país também deixa a desejar: enquanto o Brasil tem cerca de 186 km de estradas asfaltadas por 1000 km² de extensão territorial, o Japão tem mais de 3,2 mil, a França, mais de 1,8 mil, a Espanha supera os 1,3 mil, a Índia mais de 1 mil, os EUA, quase 700 e a China cerca de 400 km (dados do Anuário Exame de Infraestrutura).
Há que se constatar, também, que as empresas de transporte, operadores logísticos e embarcadores, ao longo do tempo, para diminuírem seus custos fixos (equipamentos e motoristas na folha de pagamento) e ficarem menos vulneráveis às oscilações de mercado e da sazonalidade, utilizam, sempre que possível, motoristas autônomos em suas operações (4).
Outra justificativa para a “terceirização” da frota no transporte de cargas está, sem dúvida, na alta produtividade dos autônomos quando comparados com os motoristas CLT. Quem estuda ou trabalha no setor sabe bem quais as diferenças entre um e outro. Aliás, foi essa alta produtividade do autônomo que deu, ao transporte rodoviário de cargas, merecido lugar de destaque. Para algumas atividades, setores ou regiões, e até por falta de outros modais, o transporte rodoviário de cargas tornou-se imbatível.
Por outro lado, enquanto os volumes transportados eram suficientes para toda a frota disponível (de autônomos e empresas) e todos “rodavam” com cargas, as reclamações eram pontuais, ficavam menos intensas e por conta de alguns setores específicos. E quando os custos aumentavam, a alternativa era sempre repassá-los para o contratante, através do aumento do preço do frete. Como a demanda por transporte era maior que a oferta, esses problemas não eram devidamente percebidos.
Porém, como é de se presumir, na medida em que os volumes de cargas para transporte rodoviário começaram a diminuir, principalmente diante das crises que se sucederam à partir de 2013, as empresas, como primeira providência, deixaram de utilizar os autônomos e privilegiaram a frota própria. Até certo ponto, uma medida administrativa aceitável. A ociosidade e todos os custos fixos decorrentes, portanto, ficaram apenas nas contas dos autônomos. Até onde se pode. Tudo se modifica, entretanto, quando essa ociosidade e seus custos fixos correspondentes começam a afetar também as empresas contratantes e já não mais se consegue transferir custos.
Segundo estudos realizados pelo ILOS, entre 2014 e 2020 (7 anos), enquanto o PIB decrescia o equivalente a 7,91%, o transporte de cargas aumentava 6,67%. Mas, enquanto os demais modais de transporte de carga aumentavam seus volumes nesse período (ferroviário, + 18,9%, aquaviário, + 30,7% e dutoviário, + 25,9%), o transporte rodoviária amargava queda de 1,9%. Como se vê, os impactos foram maiores para o TRC e, como consequência, a participação do transporte rodoviário de cargas, de 66,7% em 2014, passou para 61,4% em 2020 e estima-se ter ficado em 62% em 2021.
Além dessas características próprias do setor de transporte de cargas, os custos também são pressionados pelas variações dos preços dos demais insumos, tais como mão-de-obra, combustível, pneus, custos de aquisição dos equipamentos de transporte, depreciação, manutenção, seguros, pedágios, documentações e licenças diversas. Nos últimos 12 meses, calculados até maio, de acordo com as planilhas da NTC&L (especificamente no INCT – Índice Nacional do Custo do Transporte), os preços dos veículos aumentaram 32%, a carreta 30%, o seguro do casco 31%, pneus e recapagem 15%, óleos lubrificantes 21% e os salários dos motoristas 10%.
Com relação ao diesel, principal combustível do setor de transporte rodoviário de cargas, vale à pena ressaltar alguns pontos. Entre junho de 2018 e junho de 2022, o preço médio do barril do petróleo (Brent) variou, em dólar, 40,43% (de US$ 77,64 para US$ 109,03). Nesse mesmo período o valor do dólar, com relação ao real, variou 35,85%, saindo de R$ 3,8552 para R$ 5,2374, de acordo com tabela do BCB. Portanto, e apenas sintetizando, o valor de um barril de petróleo, adquirido pelo Brasil, em reais, teve aumento de 90,8%, enquanto o valor do óleo diesel, na bomba dos postos de combustível, variou, 83,8%, saindo de R$ 3,863 o litro, na média brasileira de 2018, para R$ 7,100 no último dia 29. O preço do diesel no Brasil, portanto, mesmo considerando os preços atuais, está sendo reajustado em “consonância” com os preços do barril de petróleo no mercado internacional. Segundo a Global Petro Prices, exatamente no dia 27 último, em dólar, o valor médio do litro do óleo diesel no Brasil valia US$ 1,437 e ocupava a 89ª posição dos países com preços mais caros.
Não é por outro motivo que, segundo o ILOS, a participação do diesel, no transporte rodoviário de cargas, que era de 35,7% em 2006, 26,2% em 2016 e 27% em 2020, pode ser estimado em cerca de 30% no ano passado.
De fato e com toda a certeza, o Brasil precisa melhorar muito em quase todas as diversas atividades que caracterizam a vida em sociedade. A desonestidade, a corrupção, a falta de ética, o descaso, a desfaçatez, a incompetência e a falta de compromissos com a nação, tomaram conta do cenário brasileiro, no qual parte significativa das chamadas ‘classes dirigentes’ pouco tem se importando com os reais problemas nacionais. Eleger a Petrobrás (5) e o diesel como principais inimigos do País, portanto, é enganação e uso eleitoreiro do tema.
A precária situação do transporte rodoviário de cargas, a pressão sobre a Petrobrás e do preço do diesel, infelizmente, apenas refletem a “total desorganização” que tomou conta do País na atualidade. O aumento das crises nacional e mundial, e o aproveitamento político da situação, tornou tudo mais difícil de se compreender. Imagine-se o quão difícil será para resolver.
É óbvio que a culpa pelos problemas atuais do transporte rodoviário de cargas não é somente do atual (des) governo, embora ele tenha contribuído, e muito, para isso. São problemas que existem há décadas, mas sempre frutos da incompetência, inação, desconhecimento e até de má-fé de muitos que, ao setor, jamais deram a devida importância.
Embora o discurso de combate à carestia seja justo, em qualquer momento, é preciso fazer um diagnóstico correto da atual situação. A PEC Kamikaze é um embuste eleitoreiro, assim como outros textos que, apesar de pareceres contrários das consultorias da Câmara e do Senado, também foram aprovados. Editorial do Estadão (“Textos aprovados ignoraram relatório”) do último dia 14 trata do assunto de forma correta. Vale a pena dar uma lida (6).
Juntamente com os altos índices de desempregos e subutilizados, famintos e miseráveis, o déficit das contas públicas se transformou em um dos maiores problemas do Brasil atual e qualquer descuido nesse tema, como a criação de benefícios eleitoreiros, implicará em maiores rombos fiscais e maiores instabilidades na economia e, consequentemente, na política, pois como escreveu o jornalista William Waack (“É a miséria, estúpido” – Estadão de 14.07.22), aprovar a PEC Kamikaze não é somente indisciplina fiscal, mas também “o desrespeito claro à institucionalidade (muda-se a Constituição ao sabor do momento político imediato) e a burla às normas eleitorais”.
É por isso que, por mais justa que sejam as reivindicações do setor de transportes de cargas, fica difícil entender as recentes providências do atual (des) governo brasileiro, incluindo-se aí o poder legislativo. Criar “estado de emergência”, desrespeitar as instituições e a legislação eleitoral, atentar contra a Petrobrás e a política de preços de paridade internacional (PPI) e a própria Lei das Estatais é um desserviço ao Brasil. Há três meses antes das eleições, então, é crime. Somente interesses políticos particulares, populismo e má-fé podem justificar tamanho absurdo.
(1) A PEC aprova, inclusive, decretação de estado de emergência como forma de viabilizar a concessão de R$ 41 bilhões em benefícios, apenas três meses antes das eleições de outubro próximo. Esse valor está fora do teto de gastos. Benefícios concedidos: aumenta de R$ 400,00 para R$ 600,00 o valor do Auxílio Brasil; bolsa-taxista de R$ 200,00 mensais e bolsa-caminhoneiro de R$ 1 mil. Importante: esses benefícios vigem somente até 31.12.22. Como se acompanhou pelo noticiário, a aprovação na Câmara somente ocorreu após diversas ‘manobras’ regimentais engendradas pelo próprio presidente da Câmara, uma vez que as férias legislativas se iniciam nesta semana e era urgente que esses benefícios precisavam ter vigência ainda antes das eleições. E para garantir que tudo ocorra como esperado, o governo federal deverá emitir uma MP que provisione esses gastos extras.
(2) Pesquisa da CNT com relação ao ano de 2020 indica isso claramente: apenas 12,4% das estradas brasileiras estão asfaltadas (213,452 km) e dentre estas, 61,9% tem problemas, 52,2% no pavimento, 58,9% na sinalização e 62,1% na geometria. E são diversos os motivos: falta de manutenção, erros de projeto e de construção; utilização de material discutível; falta de locais de apoio a motoristas enquanto em viagens etc.
(3) Dados da ANTT – Agência Nacional de Transporte Terrestre, indicam que a idade média da frota total (equipamentos com tração própria, reboques e semirreboques) é de 14,6 anos, sendo que a frota “nas mãos” de motoristas autônomos, que representa 36,6% do total, tem idade média de 21,5 anos de idade). A ANTT registra atualmente, 2,571 milhão de equipamentos, dos quais cerca de 64,5% são de veículos com tração e os 35,5% restantes são reboques ou semirreboques, isto é, dependem de estar acoplados aos veículos com tração. Da frota com tração, os autônomos tem cerca de 45,7%, ainda segundo os dados da ANTT.
(4) Em muitos casos contratando os autônomos e todos os seus equipamentos de transporte, fossem eles com tração ou sem tração. Em outros casos, essas empresas contratam os autônomos mas apenas com seus cavalos-mecânicos (equipamento com tração que “puxa” uma carreta – reboque ou semirreboque), colocando à disposição dos autônomos suas próprias carretas. Até porque em muitas operações há a necessidade de se utilizar carretas especiais, em operações específicas e que só podem ser utilizadas nessas operações. Isso explica porque nas mãos das empresas e das cooperativas de transporte estão 79,9% da quantidade total de equipamentos sem tração e apenas 20,1% nas mãos dos autônomos.
(5) Algumas observações sobre a Petrobrás, empresa da qual todos os brasileiros são sócios: 1ª) Segundo a U.S. Energy Information Administration, embora o Brasil seja o 9º ou 10º maior produtor de petróleo em todo o mundo, é preciso importar petróleo (ele tem qualidades diferentes de outros e, por ser mais ‘pesado’, dificulta e encarece o refino para a produção de combustíveis) e gasolina (nossa capacidade para a transformação de petróleo em combustível é limitada e não atende toda a demanda); 2ª) A partir do “alinhamento” do preço da Petrobrás aos preços internacionais – sem interferência política – a concorrência aumentou, fazendo com que as demais distribuidoras (Raízen e Ipiranga) busquem alternativas, inclusive no mercado exterior; 3ª) Além de precisar se recuperar dos estragos feitos pelos últimos governos a empresa ainda precisa comprar insumos mais caros, em dólar, e ter que pagar com reais mais desvalorizados; 4ª) O governo, e consequentemente nós brasileiros, tem apenas 37,5% das ações e o restante está nas mãos de acionistas.
É preciso reconhecer que a administração da Petrobrás pós Dilma fez um trabalho correto e a recuperou. Apenas entre 2014 e 2022 o aumento de eficiência da empresa foi notável: queda de 51% na extração de petróleo, queda de 29% no custo do refino e queda de 62% no custo de administração. O comentário de que a Petrobrás, com ações na bolsa de valores e milhares de acionistas, deva exercer política econômica, é um erro. Ou ela é totalmente estatizada e passa a ser instrumento de política econômica e todos os brasileiros, através dos impostos, custeiam suas atividades, ou é uma empresa privada e vai atrás do lucro, mesmo com as limitações que possam ser impostas pelas agências reguladoras.
Um dos maiores erros cometidos contra a Petrobrás, foi a atuação do (des) governo Dilma que, quase levando-a à falência (pela corrupção e por uma política equivocada), impossibilitou-a de realizar investimentos importantes e comprometeu seu futuro. Entre 2010 e 2014 a política de “segurar preços” gerou um prejuízo à empresa equivalente a US$ 40 bilhões (mais de R$ 208 bilhões em moeda de hoje). A administração da Petrobrás é realizada pelo poder público e quando os prejuízos da empresa são oriundos de má administração, inclusive para uso político ou corrupção, tem que ser cobertos com dinheiro do Tesouro Nacional.
(6) O Estado de S. Paulo de 14 de julho del 2022: “O projeto aprovado pelo Congresso permite ao governo mudar, de um ano para o outro, o município e até mesmo o fornecedor de uma obra que já teve o recurso empenhado, ou seja, garantido no Orçamento. A prática contraria a Constituição. O pacote aprovado autoriza, ainda, o governo federal a fazer doações de cestas básicas e de veículos como tratores e até a transferir emendas para entidades privadas no meio da campanha eleitoral. A prática contraria a legislação, que proíbe esse tipo de repasse no período de campanha. O Congresso também aumentou o grau de segredo do orçamento secreto, ao permitir que recursos das chamadas emendas RP-9 sejam alocados nos ministérios sem a identificação dos parlamentares beneficiados e até do relator-geral do Orçamento.