O estômago não pensa*

Publicado em
06 de Outubro de 2018
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Uma vez um chefe me disse, sobre uma pessoa que eu ia conhecer: eu não quero que você tenha a minha opinião sobre ele. Vá conhecê-lo e forme a sua opinião. Esse domingo, vote com a sua opinião, não a da internet

Essa semana eu vi um tweet que me fez pensar novamente nessa era da distração contínua em que vivemos. Não sei quem era a pessoa e nem se eu seguia a pessoa ou se foi um retweet, mas dizia algo assim:

Hoje eu peguei um jornal para ler. Era bem escrito, tinha fotos coloridas, eu mudei de assunto todas as vezes que quis e nenhuma mensagem inesperada apareceu. Não vi nenhuma pesquisa sobre quantos tratores eu tenho e não faço ideia do que outras pessoas pensaram sobre o que eu estava lendo. Foi muito pacífico.

Não precisa ser um gênio para perceber que o autor estava se referindo ao uso de plataformas na internet para ler notícias. Eu confesso que, apesar de todo o meu amor pela internet, me senti como se alguém tivesse lido a minha mente.

Ando sentindo bastante dificuldade de me concentrar quando tento ler uma matéria em sites de notícias ou quando preciso responder um email mais longo e que requeira mais reflexão quando estou usando um webmail.

Percebi claramente os sintomas essa semana quando o New York Times publicou um trabalho fenomenal de repórteres que passaram um ano estudando as finanças da família Trump. Não conseguia ler no site, sempre um alerta me incomodava, uma mensagem publicitária tirava meu foco. Acabei salvado como PDF para poder ler depois, com o Wi-Fi desligado.

O mesmo aconteceu quando tive que responder a dois longos emails. Novos emails apareciam a toda hora. Para piorar, agora o Gmail deu pra querer adivinhar o que eu vou escrever e isso me distrai horrores, porque eu fico testando pra ver se o software é assim tão inteligente quanto parece.

O fato é que estamos desaprendendo a habilidade de concentração. A minha sorte é que eu gosto de ler e gosto de ler livros de papel – nada como o cheiro do papel e da tinta e da sensação de virar uma página, as árvores que me desculpem. Por conta disso, ainda treino meu cérebro e minha paciência a prestar atenção em apenas um assunto por algumas horas seguidas.

Vejo meus amigos que têm filhos sofrendo para garantir que as crianças criem o hábito de leitura e torço que elas aprendam e, por que não, gostem de ler, já que eu acho que poucas coisas no mundo são tão gostosas quanto ler. Mas imagino que na era dos videogames, dos iTudos e das telas que nos abrem mundos enormes de conteúdo, os livros sofram uma competição quase desleal.

A verdade é que não são apenas os livros que perdem com essa nossa dificuldade de concentração. Hobbies diversos, pequenas tarefas como arrumar o armário e organizar papeis e até mesmo planejar uma viagem sofrem com isso. Tudo que requer não mudar de assunto por horas seguidas acaba perdendo e, com isso, acho que quem se dá mal somos nós.

Tenho notado que sento com grupos de pessoas para conversar e mudamos de assunto diversas vezes, em algumas ocasiões sem nem voltar ao assunto inicial.

No meio das conversas, informações desnecessárias, piadas bobas e até assuntos nada relacionados ocupam espaços, como pop-ups ou notificações de novos emails, novos likes, novos inbox em nossos computadores.

Talvez seja por conta disso que as fake news se propagam com tanta facilidade. Talvez seja por isso que muita gente compartilha notícias sem ler o conteúdo. Talvez seja por isso que é mais fácil manda um GIF ou um emoji ao invés de uma frase com sujeito e verbo.

Porque nos está faltando a habilidade de entrar profundamente nos assuntos. De iniciar, engajar e terminar uma conversa. De entender outros lados. De tolerar opiniões diferentes das nossas. De aceitar pessoas que não se parecem conosco, não se vestem e não falam como nós.

Fiquei pensando nessa crescente falta de capacidade nossa de refletir. Talvez seja por isso que tanta gente está falando direto do estômago, postando direto do estômago e reagindo com o mesmo. Acho que essa falta de capacidade de parar pra pensar pode nos custar muito caro esse domingo. Acho que pode fazer com que tenhamos todos uma surpresa. Eu espero que não.

Uma vez um chefe me disse, sobre uma pessoa que eu ia conhecer: eu não quero que você tenha a minha opinião sobre ele. Vá conhecê-lo e forme a sua opinião. Mas vá conhecê-lo.

Eu só posso fazer minhas as suas palavras. Conheça-os antes de formar uma opinião. Não vote com a opinião da internet. Reflita. Pense. Muito. Desligue o celular. Concentre-se. E, então, forme a sua opinião.

Nosso futuro agradece.

*Fernanda Romano é sócia da Malagueta, mora em NY, mas está estudando ir morar em Marte e acredita que a Alexa tem a resposta para 76% de suas perguntas. Ela escreve às sextas-feiras.

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