O Brasil precisa e exige muito mais.

Publicado em
10 de Novembro de 2021
compartilhe em:
Artigo escrito por Paulo Roberto Guedes*
 
Ainda no mês de setembro, escrevi um artigo com o seguinte título: “Voltar somente ao “normal” não resolve. O Brasil, principalmente, precisa de muito mais caso queira alcançar o desenvolvimento”. Foi publicado no Portal do Guia do TRC dia 04.09.21, mas acredito valer à pena retomar o assunto.
 
De fato, se é necessário que todos nos ocupemos com a busca de soluções para os problemas do presente, é fundamental, também, construir os alicerces para o futuro. Resolver a crise atual, incluindo-se aqui a pandemia, e estabelecer bases concretas de desenvolvimento para o futuro são tarefas simultâneas. Para o mundo e muito mais notadamente para o Brasil.
 
Reduzir a desigualdade, erradicar a fome e a pobreza, proporcionar melhores condições de saúde, habitação, saneamento básico e educação às populações mais carentes, promover a igualdade de todos perante a justiça, estimular o desenvolvimento de energia limpa e proteger o meio-ambiente, por exemplo, são problemas que perduram há tempos sem que os dirigentes maiores do conjunto das nações, de uma forma geral, tenham real interesse em solucioná-los. Às vezes, por razões diversas, muito pelo contrário.
 
Desastres naturais, quase sempre gerados pela forma predatória como o homem explora a natureza (1), a fome e a miséria, frutos dos processos permanentes de concentração de renda e de poder (2), são exemplos por demais conhecidos de eventos que ‘atacam’ principalmente as pessoas mais pobres e de forma muito mais cruel. Também são essas populações as que mais sofrem diante de diversos outros problemas enfrentados pela humanidade diariamente, tais como inflação, violência, desemprego, falta de saneamento básico, de infraestrutura, de assistência médico-hospitalar, de vagas nas escolas ou nas creches etc. 
Natural e de forma quase imediata, na medida em que os poderes constituídos e as classes dirigentes não conseguem dar respostas adequadas a esses problemas, independentemente das causas e dos motivos, as dúvidas e a tensão aumentam e elevam o nível de incertezas com relação ao futuro. 
Não à toa, já no início deste século, portanto antes da pandemia, o mundo já vivia o que se convencionou chamar de “era das incertezas”, na qual quase todos valores anteriormente aceitos, tais como Democracia, Capitalismo ou Globalização, por exemplo, passaram a ser questionados. A pandemia, posteriormente, se encarregou de piorar tudo. 
 
Relatório da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), por exemplo, indica que os 46 países menos desenvolvidos, dentre eles o Brasil, além de serem obrigados a “suprir deficiências institucionais, econômicas e sociais” instaladas anteriormente e já a algum tempo, ainda “dependerão de ajuda internacional para investir no sistema de produção e na preparação de sua população para os desafios do crescimento e do progresso”. O relatório também indica o que fazer, mas alerta sobre a necessidade de se ter governos e lideranças competentes e direcionadas a resolver problemas concretos (“Também a recuperação é desigual”, 02/10/21 no Estadão).
 
Há que se ressalvar que às vezes os governos e as lideranças não sabem como dar soluções a problemas como esses ou não tem recursos e instrumentos adequados. Mas também é fato que muitas das vezes eles simplesmente não querem, já que estão extremamente ocupados em encaminhar soluções para seus próprios problemas. Observe-se que mesmo em momentos nos quais a “solidariedade” e a “fraternidade” aparecem como valores maiores, tem faltado vacinas contra a covid nos países mais pobres, ao mesmo tempo em que sobram nos países mais ricos (3).
 
Coincidentemente, trabalhar apenas para resolver seus problemas, em qualquer tempo ou circunstância e sem qualquer constrangimento, parece ser uma característica típica de parte significativa da classe dirigente brasileira, política e empresarial. É o que está acontecendo atualmente quando, em época de pandemia e desemprego, se discute a real e indiscutível necessidade de se auxiliar as populações mais pobres aqui do Brasil. A discussão a esse respeito está atrasada, coloca possíveis soluções em ‘interminável’ compasso de espera e, ao invés de se buscar a viabilização dos recursos dentro do próprio orçamento público (o que sem dúvida mexe com muitos interesses daqueles que mandam) é pródigo em criar soluções via contabilidade criativa, furo no teto de gastos, pedalada fiscal ou calote. Soluções que, por si sós, postergam, dificultam ainda mais o que já é difícil e colocam quaisquer alternativas sob risco. Para piorar, nenhuma proposta de corte nos super salários do serviço público (4), nas emendas parlamentares (5), nos fundos partidários e de campanhas (6) ou nos subsídios dados pela União (7) cujos retornos são discutíveis. O montante de recursos, apenas desses quatro exemplos, em 2020, significaram recursos equivalentes a R$ 368 bilhões (entre 4,7% e 5,2% do PIB e cerca de 12 vezes maior que o Bolsa Família)!
 
Não há qualquer dúvida, a retomada da estabilidade, do crescimento e do desenvolvimento econômico e social, ocorrerão em condições melhores e em tempos menores quanto mais desenvolvido, organizado e pró ativo for o País, inversamente proporcional àqueles menos desenvolvidos, mais desorganizados e que, para piorar, ainda são administrados por governos distantes dos principais anseios da população, corruptos, medíocres e praticantes de um populismo irresponsável.
 
Portanto, ao se estabelecer projetos para o futuro, não se pode, simplesmente, querer voltar ao ‘normal’, pois, como escrevi em meu artigo aqui citado, “isso apenas equivaleria a tirar o bode da sala”. É essencial compreender que apenas resolver o problema da pandemia, sem providências outras, é manter “intactos” os problemas anteriores, que tão mal tem feito à grande maioria da população do País. Segundo o IBGE, antes da pandemia, em 25% dos domicílios brasileiros nenhum morador disponha de renda do trabalho e agora no 2º trimestre de 2021, em plena pandemia, 28,5%. Voltar ao normal seria manter os mesmos 25% de residências brasileiras sem renda do trabalho? 
 
Repetir muito do que se fez e se faz até agora, além de não resolver problemas estruturais sérios e condenar nossa economia à prisão da “armadilha da renda média”, estimulará a frequência e a veemência dos movimentos populares. As reações antidemocráticas, autoritárias e de intolerância, tanto dos governos de plantão como de parte da sociedade civil mais privilegiada, também se farão presentes e, como já se sabe, preparando terreno para a atuação de demagogos, populistas e ditadores, sejam eles de esquerda ou de direita. 
 
O Brasil, portanto, não pode se limitar apenas à implantação das diversas e imprescindíveis reformas estruturais exigidas, ou da adoção de políticas que estimulem a inovação, o desenvolvimento tecnológico, a melhoria dos processos produtivos e o aumento da interconectividade. É preciso, também, iniciar um movimento que aumente o grau de conscientização de seus habitantes com respeito a tudo que envolve a sociedade, cujo principal objetivo tem que ser o próprio ser humano.
 
Antes de mais nada, governantes e governados, empresários e trabalhadores, militares e civis, precisam encarar a realidade como ela é, aceitar que nossa geração cometeu erros irreparáveis, compreender que “as coisas” aqui no Brasil não estão bem e que, individual ou coletivamente, a responsabilidade é de todos. É preciso compreender que há uma interdependência clara e objetiva entre ser humano e natureza, que não haverá um mundo melhor se o meio ambiente e a saúde das pessoas não forem protegidas, que sem políticas sérias nas áreas da saúde e da educação a diferença entre ricos e pobres somente tenderá a aumentar, e que, em um mundo cada vez mais desigual ninguém terá ‘sossego’.
 
É certo, até porque faz parte da essência do capital, que as empresas continuarão investindo para que sejam aumentadas a produtividade, a competitividade e, consequentemente, o lucro empresarial. Mas terão elas o mesmo ímpeto diante de motivos mais coletivos e nobres, nos quais o lucro talvez não seja o principal objetivo? Estará o mundo empresarial pronto para compreender, como defendido pelo movimento “Capitalismo Consciente” (8), que “os negócios são bons quando criam valores para todos, éticos porque baseados na troca voluntária, nobres porque elevam a existência, heroicos porque tiram as pessoas da pobreza e promovem a prosperidade”?
 
Grande parte do empresariado, inclusive aqui no Brasil, já vem se movimentando com relação aos problemas gerados pelas mudanças climáticas e buscando soluções que protejam o meio ambiente, mas é fundamental aumentar a abrangência dessas atitudes e compreender, por exemplo, que enquanto houver desigualdade social em níveis altos e sem perspectiva de melhora, o nível de desenvolvimento dessa sociedade será baixo e de enormes riscos.
Enfim, como defende o escritor, professor e ex-assessor do presidente francês François Miterrand, Jacques Attali, estamos preparados para passar de uma “economia da sobrevivência” para uma “economia da vida” (9), de tal forma a se “evitar que as crianças de hoje sofram com uma pandemia aos 10 anos, uma ditadura aos 20 e um desastre climático aos 30?”.
 
A tarefa não é fácil (10) mas há que se preparar as pessoas para esses novos compromissos e reforçar o entendimento de que somente através da Democracia e da Política será possível evitar a “captura” do Estado (11). É imprescindível conscientizá-las de forma que atitudes importantes, tais como o combate à desigualdade, à violência, ao racismo e à discriminação, a favor da inclusão social, de respeito à diversidade, ao meio ambiente e às leis vigentes, sejam transformadas em valores inquestionáveis.
 
O papel a ser desempenhado por cada um deverá ser mais abrangente, concreto e efetivo do que o atual, diferentemente do que se prega como volta à “normalidade”, tanto para melhor compreensão da realidade que nos cerca, como na conscientização a respeito desses “novos” valores. Diferentemente de modismos e soluções circunstanciais, é preciso trabalhar para se implantar em todo o mundo, e mais precisamente no Brasil, uma cultura que se ocupe, prioritariamente, do ser humano e da vida. E como mudanças não são somente técnicas, já dizia meu amigo e professor Sergio Rodrigues Bio, é preciso trabalhar a consciência de todos para que, de fato, haja transformações. Exige-se pensar de forma mais abrangente e holística, pois como escreveu Jacques Attali, esta crise “sem precedentes dos últimos dois séculos, revela-se múltipla: social, política, econômica, ideológica, filosófica e ecológica”.
 
(1) Relatório da Organização Meteorológica Mundial, da ONU, indica que em 50 anos, de 1970 a 2019, e em todo o mundo, os desastres naturais mataram cerca de dois milhões de pessoas e causaram prejuízos na ordem de US$ 3,4 trilhões. A matéria a respeito foi elaborada por Mayara Paixão e publicada na Folha UOL dia 02/09/21: “ressalte-se que ‘questões do clima’ contabilizaram mais de 11 mil eventos, tais como secas, enchentes, deslizamentos de terra, tempestades e incêndios. Mas enquanto na década de 1970 houve 711 eventos, na década de 2000 houve 3.536 e na década de 2010 mais de 3.165”. Inundações, 44% e tempestades tropicais, 35% foram, disparados, os eventos mais frequentes. 
 
(2) Aproveito-me de material publicado na revista Nexo, em 22/10/21, por Anna Maria de Castro, que comenta o trabalho desenvolvido pelo geógrafo brasileiro Josué de Castro, ao escrever em 1946, o livro a “Geografia da Fome”. Já, à época, Josué de Castro afirmava que a fome não era um problema natural (grifos meus), isto e?, não dependia nem era resultado dos fatos da natureza – ao contrário, era fruto de ações dos homens, de suas opções, da condução econômica que davam a seus países” (grifos meus). Josué de Castro produziu diversos trabalhos para comentar os problemas da fome e da miséria, não só no Brasil, mas em todo o mundo. Ao constatar a intensa realidade da fome e o tamanho do mal que causava, Josué, mesmo enfrentando muitos preconceitos que encobriam aquele problema, dedicou-se a estudar esse problema, ainda atual e universal (“Josué de Castro e a descoberta da fome”).
 
(3) Dados da “Our World In Data” indicam que no mundo, 48,7% das pessoas já receberam pelo menos a primeira dose da vacina. Essa média, nos países de baixa renda é de apenas 3,1%.
 
(4) O jornalista Lauriberto Pompeu (Estadão de 02/10/21), baseando-se em estudo feito pelo Centro de Liderança Pública (CLP) a respeito dos impactos gerados pelo atraso da aprovação do projeto que limita super salários no serviço público, relatou que cerca de R$ 213 milhões por mês, em média, são gastos à mais para pagar a parte dos salários que estão acima do limite vigente. E como essa quantia deixou de ser economizada desde dezembro de 2016, pois ainda se encontra em discussão na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado, a estimativa é a de que, em um governo que acumula déficits seguidos nas contas públicas, indevidamente foram gastos quase R$ 13 bilhões! 
 
(5) As Emendas Parlamentares, de acordo com o Portal da Transparência, considerando somente os valores realmente pagos foram os seguintes: 2017, R$ 2,24 bilhões; 2018, R$ 5,12 bilhões; 2019, R$ 5,74 bilhões; 2020, R$ 16,11 bilhões; e 2021, até setembro, R$ 9,71 bilhões.
 
(6) Segundo o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), os totais efetivamente distribuídos na rubrica “Fundo Especial de Financiamento de Campanha”, foram os seguintes: 2018, R$ 1,7 bilhão; e 2020, R$ 2,0 bilhões. Para 2022 foram orçados R$ 5,7 bilhões, mas vetados pelo presidente Bolsonaro. Até dezembro deste ano, até para ser colocado no orçamento, um novo valor deverá ser aprovado. Já com relação ao Fundo Partidário, os valores distribuídos em 2020 alcançaram R$ 837 milhões e em 2021, até setembro, R$ 661 milhões.
 
(7) Os subsídios dados pela União, em 2018, foram de R$ 314,2 bilhões, em 2019, R$ 359,6 bilhões e em 2020, R$ 346,6 bilhões. Cerca de 4,9% do PIB. 
 
(8) “Capitalismo Consciente” é uma forma de refletir sobre onde estamos e aonde queremos chegar em termos de evolução humana. As empresas conscientes são movidas por um propósito maior e procuram praticar uma cultura com consciência mais ética e nobre, na medida em que tira as pessoas da pobreza e cria prosperidade. O termo “Capitalismo Consciente” foi utilizado pela primeira vez por Muhammad Yunus em uma publicação no Atlantic Monthly em 1995 e se tornou popular em face da publicação do livro “Conscious Capitalism – Liberating the Heroic Spirit of Business”, de John Mackey, CEO e cofundador da Whole Foods, e do Prof. Raj Sisodia, da Universidade Bentley. (retirado do site “Conscious Capitalism”).
 
(9) “Nossas futuras vidas e meios de subsistência: sustentável e inclusivo e crescente”, artigo publicado pela McKinsey, 26 de outubro de 2021, por Bob Sternfels , Tracy Francis , Anu Madgavkar e Sven Smit. “À medida que a economia mundial começa a emergir da crise da COVID-19, em breve chegará o momento de os líderes olharem além da salvaguarda de vidas e meios de subsistência e voltem-se para um desafio mais profundo: melhorá-los. Esse desafio social pode ser dez vezes maior que a pandemia e durar dez vezes mais. Os três objetivos que temos em mente - crescimento, sustentabilidade e inclusão - sustentam-se mutuamente, mas nem sempre apontam na mesma direção; vemos laços poderosos de reforço e também de contra-ataque entre eles”. Pois é, “como é que vamos construir um futuro que proporciona crescimento e sustentabilidade e inclusão?”
 
(10) Modelo de desenvolvimento que “concentre esforços e investimentos em setores interdependentes que promovam e protejam a vida: saúde, higiene, energia limpa, alimentação, agricultura, pesquisa e inovação, reciclagem, educação, cultura, segurança e outros” (Hélio Mattar, presidente do Insituto Akatu pelo Consumo Consciente, escreveu na capa do livro de Jacques Attalil).
 
(11) “A contradição central que nos amarra é a mesma que pode nos libertar: a contradição entre a política e o capital. Do lado da política, encontramos conexões com os valores da civilização. Do lado do capital desgovernado, sem regulação só encontramos a distopia, na qual a vida humana valerá ainda menos do que vale agora”, escreveu Eugênio Bucci em “A superindústria do imaginário” – Como o capital transformou o olhar em trabalho e se apropriou de tudo que é visível” (Editôria Autêntica, 2021). Superindústriam segundo Bucci: prevalência da imagem sobre o corpo, do desejo sobre a necessidade, do “valor de gozo” sobre o “valor de uso”. A fabricação de valores e reputações que transforma o sistema capitalista, em ‘capitalismo totalitário’ (“aquele que se consuma na tecnologia sem lei, é a anticivilização”). E concluiu: “a única revolução que conta está na política e na democracia. Sem as duas a soberania popular perderá seu objetivo, o Estado terá sido capturado pela treva e não haverá anteparos contra a Superindústria”. 
Boletim Informativo Guia do TRC
Dicas, novidades e guias de transporte direto em sua caixa de entrada.