Em vez de enxergar os aplicativos como concorrentes, empresas de setores tradicionais aprenderam a se aliar aos modelos de negócios disruptivos e lucrar com as parcerias
Empresas como Uber, iFood, Rappi e Gympass trazem receita incremental para companhias tradicionais, como McDonald’s, Localiza e Cia Athletica
Até meados do ano passado, quem quisesse comer um lanche do McDonald’s precisaria se deslocar a uma das 968 lojas no Brasil. Depois de considerar que os custos de manter uma equipe de motoboys e fazer entregas por conta própria eram muito altos, a Arcos Dorados, a administradora da marca e master franquada na América Latina, decidiu descontinuar o serviço no começo desta década. Foi apenas há um ano que a companhia voltou com o serviço de delivery, inicialmente em 200 unidades da rede. Hoje, já são 600 pontos atendidos pela entrega. E esse número deve continuar aumentando. Apenas os restaurantes muito próximos de outros devem ficar de fora. O que mudou para que a empresa, tão reticente com a viabilidade econômica do delivery, mudar a estratégia: tudo.
A novíssima economia dos modelos de negócios baseados em aplicativos explodiu no Brasil no último ano. “Não podíamos ficar de fora”, afirma Paulo Camargo, presidente da Arcos Dorados. “Especialmente com a chegada de parceiros de tecnologia de entregas, como o iFood, a Rappi e a Uber Eats.” Com essa onda, surgiu uma grande oportunidade de receita incremental para setores tradicionais da economia. Por exemplo: o setor de alimentação fora do lar tem registrado crescimento modesto nos últimos anos. Em 2018, foi 3,5%, segundo a empresa de pesquisas Euromonitor. Ao mesmo tempo, as vendas por delivery cresceram 20%. Segundo Camargo, a expansão de vendas do McDonald’s no canal está bem acima da média do setor e ajuda a trazer mais pedidos, tanto de clientes fieis quanto de consumidores que não se dirigiriam às lojas. “Devido ao nosso tamanho, o delivery ainda representa uma parte pequena do faturamento, mas crescemos acima dos 10% em entregas a cada mês.”
Duas rodas: entregadores de aplicativos como o iFood e Rappi se espalham pelas grandes cidades
Além de ter como parceiros os três principais aplicativos do mercado, o McDonald’s também lançou uma ferramenta própria. Mas, mesmo quando o pedido é feito pelo aplicativo da empresa, a rede usa a logística dos operadores parceiros. “Eles são os especialistas. O nosso negócio é outro: vender alimentos e atender bem o cliente”, afirma o executivo. O que poderia ser uma ameaça passou a ser visto como oportunidade. Para aproveitar melhor a parceria, o McDonald’s resolveu um problema descoberto na tentativa de delivery próprio. As suas famosas batatas fritas em forma de palito chegavam frias e sem consistência na casa do cliente. A solução foi criar a batata rústica, que viaja melhor.
São muitas as histórias que comprovam a revolução do mercado de alimentação a partir dos aplicativos. Com uma trajetória de duas décadas, a brasileira iFood foi uma pioneira no movimento. “Há uma década o mercado de entregas de comida vivia apenas da venda de pizzas no fim de semana”, diz Carlos Eduardo Moyses, CEO da iFood. “Agora os nossos 80 mil restaurantes ampliaram as vendas 50%, em média, após seis meses de uso do aplicativo.” Por sua vez, a empresa de logística dobra de tamanho a cada ano desde 2012. Líder do setor, ela conta com um exército de 120 mil entregadores. Uma frota desse tamanho dá uma idéia de como os aplicativos podem trazer mais negócios para setores tradicionais.
Se o mercado de alimentação é o exemplo mais óbvio, ele está longe de ser o único. As vendas de motos e de bicicletas têm crescido no Brasil acima do esperado. As academias de ginástica ganham mais clientes com modelos de negócios como o do Gympass, que vende passes de uso para as empresas entregarem a seus funcionários. As locadoras de automóveis ampliam a sua clientela com pessoas que, como forma de driblar a falta de emprego ou buscar renda adicional, dirigem para os aplicativos da Uber e da 99. E até o tradicionalíssimo setor de incorporação busca negócios com as novas tecnologias.
Maior alcance
A Vitacon, empresa paulista focada em apartamentos de tamanho pequeno, é um exemplo. Parte representativa de seus lançamentos são vendidos a investidores de imóveis. E muito deles utilizavam o aplicativo do Airbnb para alugar as unidades. Como forma de ganhar mais receita com a tendência, a incorporada criou uma plataforma que conecta donos e interessados nos apartamentos da empresa, a Housi. A ideia é aproveitar melhor a tendência de tratar a moradia como um serviço, e até conectar parceiros de diversos aplicativos, como a Grow de empréstimo de bicicletas e patinetes elétricos. “Queremos que o cliente possa fechar o aluguel de um apartamento em até três minutos”, diz o fundador Alexandre Lafer Frankel.
Os casos de empresas de setores tradicionais que descobriram formas de buscar receita adicional com a chamada nova economia são variados. A rede de conveniências AM/PM, dos postos Ipiranga, por exemplo, criou kits para motoristas de Uber. O projeto começou a funcionar há dois meses, em parceria com a empresa Cargo. O funcionamento é bastante simples. O motorista de Uber pode parar numa unidade da AM/PM, instalar uma Cargo Box no carro e gratuitamente retirar um kit de bomboniere da loja. Os produtos, então, são vendidos aos passageiros. O motorista ganha 25% da venda, que é fechada pelo próprio aplicativo do Uber e o restante dividido entre a rede de conveniência e a Cargo. “O carro passa a ter um serviço de bordo”, diz Marcello Farrel, diretor da AM/PM. “E é uma forma de expandir a rede além da nossa presença nos postos.”
Na indústria, há quem deseje até vender mais panelas utilizando apps. Numa época em que pedir comida se tornou tão fácil, a Tramontina pretende atingir jovens interessados em cozinhar. Em projeto com a agência JWT, o aplicativo de músicas em streaming Spotify criou um algoritmo que transforma músicas em receitas. O consumidor escolhe uma música e o aplicativo sugere uma receita de comida, cruzando sentidos, explorando o conceito de sinestesia. É difícil prever se a estratégia, que tem um componente de trabalho de marca bastante forte, trará de fato incremento das vendas da Tramontina. Mas em outras áreas da indústria o crescimento de faturamento é uma realidade.
No primeiro semestre, as vendas de motos subiram 8,4% em comparação com o mesmo período do ano passado, atingindo 537 mil unidades, de acordo com dados da Abraciclo, a associação das fabricantes de motos e bicicletas. Já o mercado de bicicletas vendeu 58 mil unidades, um crescimento de 14,8% no período. São expansões bastante consideráveis num momento em que a economia cresce a um ritmo abaixo de 1%. A volta do crédito ajuda a explicar o resultado do setor. E a economia das aplicativos é apontado como uma fonte potencial de negócios. Segundo Marcos Fermanian, presidente da Abraciclo e principal executivo da Honda Serviços Financeiros, o impacto dos motociclistas de entregas por aplicativos ainda não foi plenamente sentido. “Ainda se vê nas grandes cidades muitos entregadores com motos antigas”, afirma. “Defendemos que as empresas de aplicativos deem mais segurança aos motociclistas, avaliem se eles possuem experiência e incentivem o uso de motos mais novas.”
Esses profissionais, no entanto, fazem parte de uma importante tendência. Com a forte crise sentida pela construção civil nos últimos anos, os empregos informais criados pelos aplicativos se tornaram uma forma de renda para uma parcela da população. “Muitos deles começam fazendo entregas com bicicletas e depois economizam para trocar por uma moto, assim podem ser mais rápidos e trabalhar para restaurantes com estruturas mais complexas”, diz Georgia Sanches, diretora de contas da Rappi. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o número de pessoas que fazem entregas mais do que dobrou do primeiro trimestre de 2018 para o mesmo período deste ano, para um total de 400 mil pessoas. Mas, dentro dessa forte tendência, não estão só os serviços de entregas.
Em vez de enxergar os aplicativos como concorrentes, empresas de setores tradicionais aprenderam a se aliar aos modelos de negócios disruptivos
Também os aplicativos de caronas representam uma forma de contornar a crise do desemprego. E isso serve até mesmo para quem não possui carro. Esse fenômeno trouxe um novo perfil de clientes para as locadoras de veículos. Atualmente estima-se que há 600 mil motoristas de aplicativos no Brasil. “A maioria deles faz alugueis informais”, afirma Bruno Lazanski, diretor de operações da Localiza, a maior locadora do País. A empresa não revela a porcentagem dos clientes que trabalham com aplicativos. A empresa de origem mineira tem todo o interesse em conquistar e manter esse profissional informal entre os clientes.
Malhação digital Uma solução foi criada especificamente para dar mais agilidade a esse público. Por meio de um aplicativo próprio, os motoristas conseguem fazer o aluguel de forma totalmente digital. Para retirar o carro numa agência, basta enviar uma selfie para a empresa. O objetivo é facilitar a vida de quem aluga com frequência. “O motorista pode trocar de veículo quando quiser, não precisa se preocupar com custos de manutenção, tempo parado para consertos e a desvalorização do ativo”, diz Lazanski.
Assim como acontece com as locadoras, a chegada de um parceiro tecnológico movimentou o setor de academias. A Gympass permite aos seus assinantes utilizar diferentes redes. Fundada em 2012, a empresa já chegou a 14 países e recebeu, em junho, um aporte de US$ 300 milhões do fundo japonês Softbank. “Conseguimos levar mais gente para as academias”, afirma Rafael Sobral, vice-presidente de pequenas e médias empresas da Gympass. Isso acontece porque ela vende para empresas um passe para que seus funcionários possam frequentar quase 22 mil academias no Brasil. A empresa subsidia parte dos custos e incentiva os seus funcionários s melhorar a saúde e os índices de produtividade. “Hoje, apenas 5% dos brasileiros possuem planos de academia, mas dentre os funcionários dos nossos clientes o índice chega a 30%”, diz Sobral. “Na nossa base de frequentadores, 70% das pessoas não tinham inscrição em academias antes.”
A Cia Athletica, dona de 16 academias e de um faturamento de R$ 140 milhões, foi a primeira das grandes redes a aderir ao Gympass. “Essas pessoas não tinham incentivos para frequentar as academias”, afirma Richard Bilton, CEO da Cia Athletica. “Com o patrocínio da empresa em que trabalham e como o Gympass como catalisador, eles passam a ser nossos clientes.” A busca por interessados dentro das empresas seria impossível para qualquer rede. “Com a sua estrutura, a Gympass passou a funcionar como uma espécie de equipe de vendas nossa dentro das empresas”, afirma. É esse o papel que os aplicativos assumem na esteira de modelos da economia tradicional. Um elo que já beneficia empresas tão diversas quanto Cia Athletica, Localiza, Honda, Vitacon, Tramontina e McDonald’s.