Num dos piores momentos da história brasileira, com crises em todos os setores e segmentos que caracterizam as atividades humanas, da política à economia, da justiça à segurança pública e da ciência às artes, grande parte do nosso governo (em todas as esferas e poderes), das classes empresariais e da sociedade civil, de uma forma geral, ou é suspeita ou já está comprovadamente envolvida nos diversos escândalos de corrupção divulgados diariamente. Direta ou indiretamente, de forma passiva ou ativa, sozinho ou pertencente a uma das diversas organizações criminosas existentes no Brasil atualmente, parece que todos resolveram se aproveitar do Estado brasileiro, da paciência e, até certo ponto, da passividade do povo brasileiro.
Mas o abuso não se limita apenas aos crimes de corrupção ou de desvios de recursos, oriundos da má fé, da imoralidade, da falta de decência ou da falta de ética, pecados que, sem dúvida e de forma intransigente, devem sempre ser combatidos.
O que mais tem levado o Brasil ao subdesenvolvimento, ao descrédito e ao distanciamento das economias mais evoluídas, é um conjunto extraordinário de erros cometidos na definição e na gestão da macro política, por essa mesma classe, enquanto responsável mais direto pela condução do País. Em face da ignorância, da mediocridade e da incompetência, quando não de uma fé cega e burra, nossa classe dirigente tem conseguido manter o Brasil no atraso. Infeliz e lamentavelmente!
Decisões equivocadas na política, na economia e no trato da administração pública, a falta de planejamento e a adoção de medidas ‘midiáticas’ e sem quaisquer suporte técnico ou científico (ou até de ‘bom senso’), estão comprometendo o futuro próximo do Brasil. São erros (ou crimes?) que, sem dúvida, foram cometidos contra os reais interesses da população brasileira, contra a República e contra a própria Democracia.
O Brasil, com certeza, é o único país do mundo que, ao mesmo tempo, alcança o absurdo de ter presidentes da república e das casas legislativas, representantes do judiciário, ministros, governadores, secretários, deputados, senadores, prefeitos, dirigentes das estatais e dezenas de outras lideranças políticas, partidárias, sindicais e empresariais, envolvidos em casos de corrução, de prevaricação e de má gestão da ‘coisa pública’. Em muitos casos já julgados e condenados. E que, para piorar ainda mais a situação, e diante das acusações que lhes são imputadas, deixam de lado suas reais obrigações para poderem se dedicar às suas defesas. Preocupados única e exclusivamente com a manutenção de seus privilégios e ainda buscando a reeleição, transformam toda e qualquer crise brasileira em oportunidades políticas para eles mesmos. O Brasil fica para depois. Quem sabe na próxima legislatura! E assim nosso futuro fica cada vez mais distante.
Está claro que isto não aconteceu por ‘encanto’, posto que se reconhece, há muito, duas lamentáveis características enraizadas na política nacional: inapetência de grande parte de nossa classe dirigente para o trabalho sério e a aliança entre interesses públicos e privados, que se apropriou do Estado brasileiro. A criação de políticas protecionistas e de privilégios, por exemplo, além de fecharem a economia, criam barreiras para que se realizem reformas de estímulo à livre competição, à inovação, à igualdade, ao aumento da produtividade e ao próprio desenvolvimento nacional. É quando os detentores do poder econômico se aproveitam para aumentarem suas influências, seja através da pressão para que decisões políticas lhes favoreçam ou, simplesmente, via corrupção.
Parece não haver dúvidas que muitos daqueles que estão no comando da nação, já há algumas décadas, apenas trabalham para que sejam proteladas ou interrompidas as discussões de temas que interessam à maioria da população. Dedicam-se, sim, à uma agenda específica e voltada tão somente aos interesses corporativos ou de setores ‘escolhidos’. A ineficácia desse tipo de política faz com que as próprias instituições existentes, por mais nobres que sejam seus objetivos, também se tornem ineficazes, impedindo que se realizem reformas que não sejam do interesse desses grupos. Os resultados não poderiam ser diferentes: dificuldade para o normal desenvolvimento do processo democrático, desrespeito aos preceitos da isonomia, aumento da desigualdade e recrudescimento das tensões sociais e políticas! Viva, portanto, o Brasil atual!
Até a pouco tempo a reforma da Previdência era imprescindível para se combater o déficit público e a retomada do crescimento econômico. Mas qual a importância que “os donos do poder” deram a ela, a não ser utilizá-la como instrumento de chantagem? Muitos diziam que o Brasil não corria o risco de não votar as reformas necessárias para o desenvolvimento do País, pois isso seria questão de sobrevivência política. Considerando que esse era o desejo da população, muitos políticos argumentavam, independentemente de estarem a favor ou contra, que estariam cometendo suicídio político caso o Congresso não aprovasse essas reformas. E também havia aqueles que diziam que a governabilidade e o sucesso nas próximas eleições, dependeria muito da aprovação dessas reformas, uma vez que isso era essencial para a estabilidade do Brasil. Ora, o Congresso não colocou a reforma da Previdência em votação, o governo não insistiu e nem a opinião pública reclamou como deveria.
O fato é que o governo trocou de ‘bandeira política’ de um dia para outro, como num passe de mágica e a busca do equilíbrio das finanças públicas cedeu espaço para a busca de soluções de segurança pública no Rio de Janeiro. Ora, a segurança pública, sem dúvida assunto de fundamental importância para todos os brasileiros, é atribuição das autoridades estaduais, exceto nas atividades específicas do governo federal, como são os casos de controle de fronteiras e o combate ao contrabando. Considere-se, também, que as Forças Nacionais e as Forças Armadas, já há algum tempo, estão colaborando diretamente para resolver os problemas de segurança pública em várias cidades do País, notadamente no Rio de Janeiro.
Pois é, segurança pública é a bandeira do momento, quando deveria ser uma delas. Ou nossos governantes não sabem lidar com mais de um problema ao mesmo tempo ou essa brusca mudança de rumos ocorreu por outros motivos.
Outra impressão que se tem é a de que, por não saber exatamente o que fazer em determinados momentos, e este é um deles, os poderes constituídos buscam soluções em ambientes externos: busca-se o judiciário (judicialização da política), busca-se o legislativo (politização da justiça) e, agora, embora do mesmo poder executivo, um assunto que deveria ser tratado pelo poder executivo estadual, mais precisamente a Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, foi transferido para a responsabilidade do Governo Federal, mais especificamente o poder militar. Seria essa uma forma que os políticos encontraram para fazer uso do Exército brasileiro?
Considerando a disciplina, a obrigação do ‘dever cumprido’ e a indiscutível disposição cívica dos militares, mais o fato de que uma grande parte da população brasileira acredita nessa forma de resolver o problema da violência no Estado do Rio, é possível, no curto prazo, que o presidente Temer, ou quem for o “pai” da criança, já que há muitos disputando essa paternidade, obtenha alguns dividendos políticos. No médio e longo prazos é que os problemas ficarão muito mais difíceis de serem resolvidos, pois, como se sabe, problemas de violência no Brasil, como de resto na grande maioria dos países democráticos, são muito mais complexos do que uma intervenção militar. De qualquer forma, como já salientado e desde que os militares não se sintam “usados” e colocados numa “sinuca de bico”, esperamos que essa decisão não seja mais um erro ou apenas um lance de marketing. Nossa esperança é de que tudo dê certo, pois, volto a repetir, “depois do Exército Brasileiro, não saberemos mais a quem recorrer!”.
O importante é que não percamos foco com relação ao nosso maior problema atualmente: o ‘enviesado’ sistema político brasileiro, que enquanto não for mudado, jamais conseguirá romper com esse verdadeiro “conluio entre interesses privados, públicos e corporativistas”. A política brasileira precisa estar à disposição e à favor dos interesses da maioria e, jamais, em detrimento dela. Não há dúvidas que nossos sistemas político e constitucional, consolidados na Constituinte de 1988, já se mostram superados e ineficazes diante da nova realidade que se apresenta. As crises são de outro tipo, de outra forma e com outras causas, sendo cada vez mais difícil resolvê-las. A falta de segurança é apenas uma delas.
A percepção geral é a de que somos impotentes e vivemos uma “certa anarquia”, pois enquanto a maioria da população não consegue sobreviver de forma digna e ainda se sujeita a suportar todo o peso da ineficácia do Estado brasileiro, burocrático, obsoleto, corporativista e cartorial, grupos que se apoderaram desse mesmo Estado aproveitam para continuar legislando em causa própria. Aliados ao que há de ‘pior’ na classe dirigente nacional e ao estabelecer agendas que apenas incluem seus próprios interesses, não hesitam em ignorar os valores da ética e da moral.
Isto tudo tem levado a maioria da população brasileira a não acreditar na política, nos políticos e, até mesmo, na democracia. Todos os poderes constituídos são questionados e até o judiciário, considerado o último obstáculo antes de se chegar à desorganização total, vem perdendo credibilidade e se mostrando cooptado pelos poderes econômico e político vigentes. “O direito de votar e o acesso à informação sofrem um ‘deságio’ quando a Justiça não é capaz de coibir práticas inaceitáveis”, escreveu Bolívar Lamounier.
Alguém já disse que a “mãe” de todas as reformas é a reforma Política. Fazer as reformas que o Brasil precisa, implica mexer com muitos interesses envolvidos. Todos eles muito bem representados nas Casas Legislativas, no Executivo e no Judiciário. E, até mesmo, na sociedade civil organizada. Com certeza, mesmo considerando que o Brasil vive sob o regime democrático, o menos representado nesse caótico e viciado sistema é o povo. A imensa maioria da população brasileira apenas consegue, a cada quatro anos, votar em seus representantes, mas quase nada pode fazer para alterar o que precisa ser alterado. E mesmo quando alguém ‘bom’ é eleito, o sistema impede maiores progressos. Na verdade, o sistema político brasileiro atual não contribui para que os brasileiros exerçam, na sua plenitude, a cidadania.
Os partidos políticos, único caminho para que se viabilize uma candidatura, também se transformaram em grupos específicos de defesa de seus próprios interesses. Distantes da população (ah essas visitas às ‘bases’) e apenas próximos de suas militâncias, geralmente pagas, esses partidos pouco se importam com os reais problemas da vida do brasileiro comum. Mas nada os impede, de forma hipócrita e demagógica, de se autoproclamarem únicos e dignos representantes da população.
No artigo “Manifesto à Nação” os advogados Modesto Carvalhosa, Júlio Bierrambach e José Carlos Dias, defendem a necessidade de uma verdadeira e efetiva mobilização da sociedade para a realização de uma Constituinte, originária e independente (Estadão de 09.04.17), posto que “a Constituição de 1988 transformou a burocracia num obstáculo perverso ao exercício da cidadania. Ela é fruto de um momento histórico bastante peculiar, o fim de um regime de exceção, que não corresponde mais à realidade do Brasil; representa um conjunto de interesses e modelos que já em 1988 estavam em franca deterioração no mundo civilizado”. O Estadão, neste último sábado, também retoma o assunto ao publicar o artigo “A reconstrução do Brasil”, pois, ainda segundo esse editorial, “as quase três décadas da Constituição de 1988 devem ser ocasião para uma reflexão madura sobre a sua aplicação, pondo freio às aventuras realizadas em seu nome”
Eu também já escrevi que o Brasil, para sair da crise, principalmente considerando nossa classe dirigente, teria que contar com ampla mobilização popular. As democracias só sobreviverão se as pessoas assim quiserem e estiverem dispostas a defende-las. Continuo acreditando na mobilização e, agora, com um objetivo muito bem definido, que é a realização de uma nova Assembleia Nacional Constituinte. Independentemente do Congresso atual e daquele a ser eleito nas próximas eleições e através de eleição específica e direta, essa Constituinte, com datas para iniciar e terminar seus trabalhos, deveria redigir uma nova Carta Magna. E para ser independente, como se precisa, essa Assembleia Constituinte contaria com pessoas da sociedade civil, sem mandato e proibidas de disputar, concorrer ou exercer quaisquer cargos públicos durante os 15 anos seguintes após o seu término.
E por que uma Constituinte? Porque o Brasil precisa voltar à racionalidade do direito e não apenas do poder, transformado em poder absoluto pelos grupos que se apropriaram do Estado. Para que se evite o arbítrio e se retome o respeito às leis, para que, ao limitar o poder do Estado, se resgate a isonomia e à subordinação de todos às leis estabelecidas. Está muito claro que, mesmo considerando alguma melhora na economia, a incerteza política continuará, gerando mais dúvidas do que certezas, pois se sabe que será impossível maiores avanços – inclusive econômicos - enquanto o poder político estiver centralizado nas mãos de uma classe corrupta, incapaz e que controla, através de uma burocracia obediente e conivente, toda a máquina pública e a maioria dos recursos governamentais disponíveis.
Mesmo no cenário catastrófico no qual nos encontramos é possível aproveitar o momento, pois se está claro que o atual modelo político-eleitoral brasileiro, de fisiologismo, de falta de ética e práticas ultrapassadas de se fazer política exauriu-se, oportunidades concretas para se construir outros modelos estão se fazendo presentes.
Se o trabalho já se inicia nestas próximas eleições, nas quais a separação do “joio-do-trigo” é imprescindível e inadiável, a continuidade desse processo de recuperação exige uma nova Constituição que reflita, de verdade, a soberania do povo brasileiro, sem discriminações, sem privilégios e sem corporativismos.
Votar em novos e bons nomes é necessário, sempre, mas isso não resolverá os problemas maiores do Brasil, enquanto não tivermos um sistema político modernizado. A decisão de não se votar em ‘ficha-suja’ é do eleitor, mas a racionalidade do direito e o governo das leis deveria, antes de mais nada, proibir que ele fosse candidato! São as leis e o rigoroso cumprimento do direito que, antes de tudo, deve coibir casuísmos, decisões arbitrárias e prepotência.