Artigo publicado por João Grandino Rodas
A instituição da política de preços mínimos do transporte rodoviário de cargas pela Medida Provisória 832, de 27 de maio de 2018, para superar a greve dos caminhoneiros, iniciou movimentação político-jurídica, até o momento não solucionada. A despeito da ilegalidade e da inviabilidade do controle prévio de preços, que fere a Constituição (princípios da livre-iniciativa e da concorrência[1]):
as dezenas de ações judiciais interpostas, nos quatro cantos do país, encontram-se suspensas, por decisão do ministro Luiz Fux, relator no STF da ADI 5.956/2018;
foram recebidas as informações requisitadas, e realizadas, no STF, audiências preliminares e audiências públicas;
a referida MP foi, celeremente, convertida na Lei 13.703/2018 e publicada no DOU, de 9 de agosto de 2018, com a seguinte ementa: “instituiu a política nacional de pisos mínimos do transporte rodoviário de cargas”.
O Centro de Direito Econômico e Social (Cedes) realizou no último dia 25 mesa científica sobre tabelamento de preço e impactos nos negócios, de que participaram o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (STJ); os professores José Inácio Gonzaga Franceschini, Luiz Fernando do Vale de Almeida Guilherme e Rodrigo Dufloth; Helcio Honda (diretor jurídico da Fiesp), Erika Scaffa (Whilrpool), Alberto Nobre Mendes (CNI) e André Nassar (presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Óleo Vegetal – Abiove).
Das exposições desse grupo, diferenciado em suas origens e em seus objetivos, extraíram-se os pontos a seguir:
1. Origem do movimento
A origem remota do problema data da interiorização do país pela via terrestre, iniciada em 1930, com o progressivo abandono de outros modais. A origem próxima foi a crise econômica, com a perda de empregos, o incentivo para compra de caminhões, com créditos subsidiados pelo BNDES, que gerou desequilíbrio entre oferta e procura; e a política de preços de combustíveis, com o intuito de recuperar a Petrobras.
O movimento dos caminhoneiros corporificou-se pelas redes e pelo WhatsApp, praticamente sem liderança definida; e sem que houvesse reivindicação de tabelamento, bandeira essa adotada pelo governo. Órgãos como a CNI e a Fiesp nunca apoiaram essa via. Foi intensa a mobilização de federações, sindicatos, indústrias e associações contra a tentativa do estabelecimento da política pública em tela, que resultou, inclusive, em dezenas de ações judiciais, embasadas na inconstitucionalidade do tabelamento.
2. A manifestação do Cade ao STF
A manifestação do Cade, em atendimento a determinação do ministro Luiz Fux, foi mais consistente do que a da AGU, que, por dever de ofício, teve de defender a MP. Aquela manifestação, além de tocar pontos específicos da questão, apresentou razões abstratas de problemas concorrenciais causados pelo tabelamento, compreendidas no item abaixo: “Aspectos negativos da legislação”.
3. Cartelização tipificada como crime
A MP, no processo de fixação de preços, prevê o concurso de segmentos interessados, estimulando cultura de tabelamento, que houve no Brasil há décadas e da qual foi difícil se desvencilhar. Entretanto, não pode olvidado ser o cartel crime contra a ordem econômica (Lei 8.137/1990, artigo 4º, incisos I e II).
4. Interpretação da Constituição
Duas interpretações não convergentes de artigos da Constituição foram apresentadas:
o princípio da livre-iniciativa, cláusula pétrea da Constituição (artigo 1º), instrumentaliza-se por meio da livre concorrência (artigo 170). Tais dispositivos, da Constituição de 1988, foram fruto do intervencionismo do Estado, na forma de controle de preços e experimentos heterodoxos, havido nos anos anteriores. A intervenção estatal somente foi constitucionalmente permitida para as funções de fiscalização, incentivo e planejamento (artigo 174);
a Constituição, inobstante o título VII - Da Ordem Econômica e Financeira e seu capítulo I - Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica, não se constitui em remédio insofismável contra os males do tabelamento. Mais importante que a norma literal do artigo 170 é o conjunto de costumes e regras práticas, implantadas ao longo do tempo.
Assim como os EUA criaram prática institucional à margem da Constituição, o Brasil tem importante legislação infraconstitucional concorrencial, que vem funcionando e propiciando boas práticas, que merecem ser consideradas. A leitura da Constituição nesse tocante feita à luz de análises do artigo 170, pelo STF, não pode ser esquecida. Na ADI 319/1993[2], relatada pelo ministro Moreira Alves, entendeu-se que a educação, como um bem maior, poderia ensejar controle de preço. Na ADI 2.163[3], relatada pelo ministro Nelson Jobim, a cultura foi tida como bem maior e admitiu-se a meia-entrada.
Ademais, é relevante o pensamento do ministro Luís Roberto Barroso[4], que considera inadmissível, pelo ordenamento constitucional, o tabelamento de preço como política regular; que, entretanto, pode ser justificada em situação de anormalidade, de grave deterioração do mercado, com ausência de livre concorrência e colapso da própria livre-iniciativa. Nesse contexto, o tabelamento sujeitar-se-ia aos pressupostos constitucionais e a três limitações: proporcionalidade em sentido estrito, limitação no tempo e vedação de imposição de venda de bens ou serviços por preço inferior ao preço de custo, acrescido de lucro e retorno do investimento.
Ademais, estudos da OCDE parecem referendar a posição acima ao aceitar que o Poder Executivo possa conceder imunidade antitruste e controle de preços a setores como o de fármacos; em havendo aparato adequado de fiscalização e punição do ente regulador, para aqueles que deveriam cumprir regras de controle de preços e de controle de qualidade.
5. Audiências públicas no STF
Foi lembrado que audiências públicas nos tribunais superiores são louváveis por possibilitar transparência, pela ampliação do contraditório e pela apresentação de variados prismas. Audiências determinadas pelo ministro Luiz Fux foram tidas, por alguns, mais como tentativas de mediação. Contudo, a insegurança jurídica perdura até o momento.
6. Aspectos negativos da legislação
- indesejada intervenção na liberdade de contratar;
- estímulo para futuras condutas governamentais cartelizantes;
- prejuízo, a médio prazo, para o setor que se desejava beneficiar, devido à proteção dada à margem de lucro;
- desinvestimento em vários setores, cuja conta será paga pelos consumidores e gerações futuras;
- prejuízo, mormente, ao setor de agronegócio, cuja margem de lucro internacional é pequena;
- possibilidade de queda da qualidade do produto e serviço;
- criação de mercado paralelo de frete, distinguindo os caminhoneiros que seguem a lei daqueles que não seguem;
- contingência sobre valores contratados de fretes anteriores à MP, cujo delta de diferença é estimado em US$ 4 bilhões;
- diminuição de competitividade entre concorrentes;
- risco de redução de incentivos à inovação;
- possibilidade de desvio da demanda a outros serviços;
- aumento dos custos na cadeia produtiva, prejudicando o próprio transportador, em razão da alta geral de preços, obviamente, repassada ao consumidor final;
- nivelamento por baixo da eficiência;
os preços cartelizados, disciplinados pela ANTT, resgatam o conceito das câmaras do Conselho Interministerial de Preços (CIP).
7. Aspecto positivo da legislação
Com a ressalva de que a legislação aprovada institucionaliza um cartel, seu único aspecto positivo é incentivar a verticalização e propiciar a revivescência de novos modais: transporte ferroviário e aéreo, além da cabotagem.
À guisa de conclusão, ressalte-se que a insegurança jurídica se mantém após seis meses da submissão da problemática ao Poder Judiciário. Como já foi dito anteriormente, houve “inusitada harmonização coreográfica [...] de que vem fazendo parte os três poderes, incomum na histórica brasileira”[5]. O Executivo imaginou ter escolhido o tabelamento como caminho mais célere para resolver a crise. O Legislativo converteu a MP em lei de maneira rápida e praticamente sem discussões. Finalmente, por seu turno, a mais alta corte do Judiciário “congelou” a questão e nada decidiu até o momento. Acontece que 31 de dezembro é o último dia de vigência da MP 838/2018, que estabeleceu subvenção econômica para o óleo diesel. No dia seguinte, assume nova Presidência. Por último, mas não menos importante, ainda em dezembro inicia-se o recesso do STF.
A contraparte do poder, concedida ao Judiciário pelo artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal[6], indubitavelmente, é que sejam resolvidas, tempestivamente, as contendas que lhe são apresentadas. A presente controvérsia, pelas suas características, precisa ser dirimida em “tempo econômico”. Em se tratando do STF, que, usando de competência própria, suspendeu o andamento dos processos, mas manteve a vigência da legislação, é de se esperar que proceda, sem mais delongas, ao julgamento da questão.
[1] Rodas, João Grandino, “Tabela de preço mínimo do frete é ineficaz, ilegal e deletéria” e “Tabela de preços de frete só é legal se servir apenas de referencial”, respectivamente em Revista Eletrônica Conjur de 14 de junho e 28 de junho de 2018.
[2] STF - ADI: 319 DF, Relator: Min. MOREIRA ALVES, Data de Julgamento: 03/03/1993, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 30-04-1993.
[3] STF – “O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Ministro Ricardo Lewandowski, que redigirá o acórdão, julgou improcedente a ação. Vencidos os Ministros Marco Aurélio, Eros Grau (Relator), Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Cezar Peluso. Ausente, neste julgamento, o Ministro Gilmar Mendes. Presidiu o julgamento a Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 12.4.2018”. www.stf.jus.br, acessado em 31.10.2018.
[4] Barroso, Luís Roberto, "A ORDEM ECONÔMICA CONSTITUCIONAL E OS LIMITES À ATUAÇÃO ESTATAL NO CONTROLE DE PREÇOS" Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, 226: p. 187-212, outhttp://www.guiadotrc.com.br/dez. 2001.
[5]Rodas, João Grandino, “Tabela de frete: a caminho de precedente em gestão legislativa”. Revista Eletrônica Conjur de 12 de julho de 2018.
[6] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
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