Em meu último artigo, ainda antes das eleições (“Eleições para confirmar nossos compromissos com a Democracia e o Estado de Direito”, publicado no site do Guia do TRC dia 29 pp), eu comentava sobre a imprescindibilidade que tem o novo governo de interromper “processos contínuos de concentração de renda e de aumento da desigualdade”, pois estes “geram desesperança com a política, desconfiança com relação às instituições existentes, deterioração do contrato social e do próprio regime democrático”.
Como conclusão, escrevi que as eleições do último dia 30, acima de tudo, “irão definir se o Brasil quer ou não trilhar o caminho da democracia, da liberdade, da independência, da justiça social, do combate às desigualdades e da proteção ao meio ambiente”. Preocupações que me acompanham desde antes do início deste governo, quando “forças de extrema direita” começaram a se apresentar de forma muito mais contundente, por razoável parte da sociedade brasileira.
O vídeo que mostrou uma das reuniões ministeriais, a de abril de 2020, as diversas providências tomadas pelo Governo Federal durante o mandato do Sr. Bolsonaro, das quais cito apenas como um dos exemplos a ‘liberação de armas’, a ‘apropriação’ dos festejos de 7 de setembro, o desfile de tanques na frente do Palácio da Alvorada e a presença física em movimentos anti-democráticos, a crítica incorreta e injusta com relação ao sistema eleitoral brasileiro, o comportamento e as centenas de falas do próprio presidente da República e de grande parte dos membros que compõem o governo federal, com agressões gratuítas e diretas ao Congresso e à Justiça, e mais recentemente, episódios que envolveram políticos bolsonaristas (atirando contra policiais federais ou perseguindo algum desafeto com arma na mão, em lugar movimentado e em dia no qual o porte de arma estava proibido), confirmavam, a cada dia, meus temores, aumentando ainda mais minha apreensão: a Democracia e o Estado de Direito estiveram, de fato, em perigo nos últimos quatro anos.
Felizmente a sociedade brasileira, em sua grande maioria, e as instituições nacionais, por maiores que sejam as críticas direciondas a elas, reagiram prontamente e em todo momento que foi necessário, impedindo que o País começasse a trilhar o caminho do autoritarismo. Apesar de todas as ameaças, as eleições foram realizadas e a urna eletrônica consagrada como uma das formas mais eficientes e corretas de se “contar votos” e evitar fraudes.
Terminadas as apurações eleitorais, o presidente da República e candidato derrotado, somente depois de 45 horas de silêncio faz um discurso, dúbio para dizer o mínimo, gerando ainda mais dúvidas e incertezas, de tal forma que tem estimulado grupos de pessoas, de forma ilegal e anti-democrática, a realizarem atos que, se não são criminosos, estão muito próximos disso. Reverter os resultados de uma eleição limpa, transparente e honesta, ou defender ‘intervenção federal já’, são atos inconstitucionais, subversivos e objetivos de quem não quer viver em um regime democrático, no qual o respeito às leis e à Constituição são mandamentos inquestionáveis.
Pelo menos até agora, momento em que escrevo este artigo, esse movimento ilegal continua. Para desespero de todos aqueles que estão sendo prejudicados de forma direta, isto é, no transito de diversas rodovias pelo País, e para desespero daqueles que, como eu, talvez até de forma demasiada, ainda vêem perigo para a Democracia Brasileira.
Em diversos artigos por mim publicados, fui extremamente crítico ao que chamava de desgoverno Dilma, pois de fato, sua política econômica foi ‘desastrosa’ e levou o Brasil para a sua maior crise, posto que abrangeu aspectos políticos, econômicos e sociais. Infelizmente nem Lula e muito menos o PT, reconheceram os erros cometidos na condução econômica pelo desgoverno Dilma.
Entretanto, não sabíamos que o pior estava por vir. Depois de dois anos razoáveis com Temer, assumiu o senhor Jair Bolsonaro. Desnecessário refazer comentários sobre um desgoverno ainda maior. O senhor Bolsonaro conseguiu, o que muitos não imaginavam, isto é, ser o pior presidente que esta República já teve desde a sua proclamação. Um dos motivos, sem dúvida, para que ele, de forma inédita e desde que a reeleição foi aprovada, se consagrasse no único presidente da República a não conseguir reeleger-se. E mesmo tendo praticado diversos tipos de ‘pecados eleitorais’, ao simplesmente ignorar que, em épocas eleitorais, a legislação restringe a atuação de um chefe do executivo enquanto candidato. Não por outros motivos o desequilíbrio fiscal e o aumento da dívida pública já estão contratados para os próximos anos.
Como ilustração, e com base em estudos feitos pela “Tendências”, vale relembrar o que escreveu o jornalista Luiz G. Gerbelli para o Estadão neste último dia 31, ao explicar o tamanho do risco fiscal que o governo Bolsonaro está deixando para o próximo presidente. Orçamento com déficit previsto de R$ 280 bilhões (1) que, além de complicar qualquer início de um novo governo ainda eleva a dívida pública a níveis ‘delicados’ (2).
Considerando-se que algumas das despesas ‘prometidas’ na época eleitoral não estão contempladas no orçamento enviado ao Congresso Nacional (3), imagine-se o que poderá ocorrer caso haja uma consequente diminuição da arrecadação projetada em face de um crescimento econômico menor – bastante provável - do que aquele previsto?
Não há dúvidas que colocar em discussão o famoso ‘orçamento secreto’ é prioritário, pois além de se colocar em pauta uma ‘imoralidade’, ali está um dos caminhos para se viabilizar recursos (cerca de R$ 19 bilhões) para que sejam retomadas políticas públicas específicas e eminentemente sociais, tais como a Farmácia Popular, Fundo para Moradias, Programa de Construção de Escolas Infantis, Transporte Escolar, Programa Mais Médicos, Fundos para Desenvolvimento da Tecnologia e da Ciência e Programas de Combate à Violência, notadamente com relação às crianças e às mulheres. Políticas não só esquecidas, vale ressaltar, mas destruídas pelo governo atual.
Parece imprescindível também, atitudes concretas no sentido de demonstrar que o Brasil vai, de fato, estabelecer metas climáticas significativas, nas quais diminuições expressivas na emissão de gases de efeito estufa e no desmatamento ilegal sejam estipuladas e ‘perseguidas’. Não tenho dúvidas, o tema relativo à situação climática é imprescindível para fazer com que o Brasil melhore sua imagem e tenha melhores condições para realizar, de forma mais vantajosa, negociações e transações comerciais internacionais.
Nos primeiros dias após as eleições, li e ouvi diversas explicações para ‘justificar’ o fato de a maioria da população ter votado no Lula. Algumas delas, que imaginava não mais existirem no Brasil, uma vez que agridem essa camada majoritária de eleitores de forma racista e descriminatória, além de injustas e incorretas demonstram um comportamento que mistura ignorância e ódio.
Explico: ao observarmos com mais cuidado os mapas eleitorais publicados pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), percebe-se que os ‘votantes’ de Lula, distribuídos por todo o Brasil, estão quase que a sua maioria, nas regiões mais pobres do Brasil. Os estados do Nordeste, as periferias das grandes cidades e as áreas mais carentes de serviços públicos, como demonstram as estatísticas a respeito, foram os locais nos quais mais se votou em Lula.
Para que se tenha uma ideia, no estado do Piauí Lula alcançou 76,86% do total de votos, enquanto em Alagoas esse percentual – o menor do Nordeste – também ficou em nível extremamente significativo: 58,68%. E o Nordeste, como se sabe, é o segundo colégio eleitoral do País, com 42,4 milhões de eleitores, ficando atrás apenas do Sudeste, que tem 66,7 milhões de votantes. Enquanto no Nordeste Lula obteve 69,3% de todos os votos, no Sudeste, apesar de derrotado, ele também conseguiu emplacar participação importante: 45,7% dos votos.
Vale lembrar, por outro lado, que em todas as pesquisas eleitorais feitas antes da eleição, os resultados indicavam que Lula poderia obter mais de 60% dos votos dos eleitores que recebem até dois salários mínimos, isto é, da maioria absoluta da população brasileira. E isto, como também demostram as estatísticas, vem ocorrendo desde o ano 2002, quando Lula ganhou sua primeira eleição.
Ora, isso não deveria ser novidade, posto que durante todo o seu governo (oito anos) os trabalhadores brasileiros, além de terem taxas de emprego melhores (4), tiveram aumentos reais do salário mínimo em percentuais significativos. Enquanto a média anual da inflação, nesse período, foi de 5,79%, o aumento do salário mínimo, média anual, chegou a 12,41%. Aumento real significativo, portanto. Já, durante os seis anos de Dilma, o aumento médio anual do salário mínimo foi de 9,52% contra uma inflação média de 6,92%. No governo Temer e no governo Bolsonaro, foram mantidos os ganhos reais, só que bem menores. No primeiro, aumentos médios de 4,12% no salário mínimo contra uma inflação média de 3,35% e no segundo, aumentos médios de 6,17% contra uma inflação de 6,13%, já considerada a inflação de 2022 em 5,74%.
Pois é, diante de um ex-presidente que permitiu a corrupção, mas que executou políticas claras de defesa do meio ambiente, que colocou o País como protagonista nas questões internacionais e de meio-ambiente, que executava políticas públicas e sociais, bem como melhorias concretas e reais no emprego e nos salários, com resultados diretos na melhoria de vida dos mais pobres e carentes e que respeitava a Constituição e a Democracia, inclusive “prestigiando” o combate à corrupção (nunca é demais lembrar que o Mensalão começou em junho de 2005, durante o governo Lula, e a Lava Jato em 2014, no governo Dilma), comparado-se com um presidente que também permitiu a corrupção, como reconheceu seu próprio ministro da economia, que acabou com os programasde de combate à corrupção, que sempre foi contra a Democracia e as Instituições Nacionais, com pouquíssimas realizações, a não ser armar a população, negar as vacinas e destruir todos os mecanismos que, direta ou indiretamente, protegiam os mais pobres e carentes, o resultado eleitorai não poderia ser outro.
O senhor Lula será presidente da República pela terceira vez e poderá evitar os erros do passado, notadamente aqueles do segundo mandato quando, entre outros equívocos, insistiu em fazer de Dilma a nova presidente. Mas terá que trabalhar de forma conjunta com as demais forças políticas e com programas convergentes. Lembrete: em 2003, ao assumir a presidência da República, Lula, incorreta e injustamente, disse que recebeu uma “herança maldita”. Não tenho a menor ideia de qual adjetivo ele dará ao receber o governo de Bolsonaro.
Portanto, observando que o mundo e o Brasil, de uma forma bem particular, sofreram profundas mudanças nos últimos vinte anos, e que a situação atual é muito mais difícil e complexa do que aquela encontrada em 2003, assim que começar o novo governo, e antes que termine a “lua de mel”, característica de qualquer novo mandato, só que desta vez com tempo muito mais curto, será fundamental colocar em prática, um novo plano de governo.
Respeitando as diferenças, com mais tolerância, sem ódio, sem armas e sem medo, mas com muita esperança, o novo plano de governo deverá buscar o equilíbrio e a responsabilidade fiscal (5), pois sem isso a inflação poderá manter-se em níveis altos, dificultar o corte da Selic e, consequentemente, os investimentos. Deverá, também, deixar claro, até por sua obviedade, que temas como democracia (6), estado de direito, direitos humanos (incluindo aqui o combate a qualquer tipo de racismo e discriminação), liberdade de expressão e de imprensa, transparência, governança, excelência na prestação de serviços públicos (7), clima, igualdade, inclusão, desconcentração da renda, investimentos em infraestrutura e inserção no cenário mundial, são temas inegociáveis da nova pauta. O novo governo precisa compreender que o alcance desses objetivos dependerá, e muito, de um conjunto de reformas estruturantes, sendo a administrativa, a tributária, a orçamentária e a política, algumas das principais. Como se vê, a tarefa é árdua, complexa e que exigirá muita negociação política.
Lula errou ao eleger a senhora Dilma. Dilma e o PT, por erros próprios, elegeram o senhor Bolsonaro. E Bolsonaro, sem dúvida, foi o maior cabo eleitoral de Lula nesta eleição. Lula, como aqui escrevi, teve inúmeros méritos em seus primeiros quatro anos de governo, principalmente com relação às camadas mais pobres da população brasileira, mas neste terceiro mandato não pode repetir erros cometidos. Talvez não tenha nem o direito de errar, pois no momento o País está dividido, o novo Congresso Nacional é uma incógnita e 58 milhões de eleitores bolsonaristas estarão fiscalizando seu governo muito de perto. Qualquer hesitação poderá gerar incertezas e insegurança e o Brasil, além de não precisar e não querer um ‘terceiro turno’, tem urgência em sair da armadilha de ter que escolher um candidato em clima de total polarização política.
- Perdas de receita: R$ 53 bilhões com a desoneração sobre combustíveis, R$ 31 bilhões com a correção da Tabela do IR, R$ 27 bilhões com diversas desonerações setoriais e R$ 11 bilhões com cortes diversos do IPI. Aumento de Despesas: R$ 52 bilhões para manter o Auxílio Brasil em R$ 600,00, R$ 51 bilhões para quitar precatórios atrasados, R$ 39 bilhões de correção das despesas discricionárias e R$ 18 bilhões para reajuste de 15% para servidores.
- A Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG), atualmente em R$ 7,3 trilhões, representa 77,1% do Produto Interno Bruto (PIB), sendo que em outubro de 2020 chegou a 89%. Para efeitos comparativos, o mais baixo percentual, desde que foi iniciado essa medição, foi de 51,5%, em dezembro de 2013.
- No curtíssimo prazo, entretanto, algumas questões precisarão ser resolvidas e duas promessas precisarão ser atendidas: isenção do IR de até R$ 5 mil e o Auxílio Brasil de R$ 600,00. Para tanto, será preciso realizar algumas correções no Orçamento 2023, posto que é urgente que as promessas de campanha sejam “acomodadas”. Neste sentido, a participação do Congresso Nacional será essencial.
- Não bastasse o que aqui já se mencionou, é preciso também levar em conta as taxas de desocupação extremamente altas durante o governo Bolsonaro. Mesmo que ele não tenha sido o único causador desse problema, o fato é que a população recebe esses impactos diretamente. Enquanto a Taxa de Desocupação durante quase todo o governo Lula ficou em média abaixo dos 8%, o governo Bolsonaro teve que ‘amargar’ taxas de 11,1% em 2019, 14,2% em 2020, 11,1% em 2021, para somente agora, no trimestre julho/agosto/setembro chegar aos 8,7%. E mesmo assim, com uma taxa de subutilização – trabalhadores que estão abaixo de suas capacidades - de 20,1%. Essa taxa também era significativamente menor durante o governo Lula: 6,2% na média.
- O ex-secretário da Receita Federal durante o período 1995-2002, Everardo Maciel, em artigo publicado no Estadão dia 03.11.22 não tem dúvidas: “O Brasil, nos próximos anos, enfrentará grandes desafios fiscais numa conjuntura econômica internacional adversa. Foram muitas as despesas postergadas, notadamente o pagamento de precatórios por força das Emendas Constitucionais 113 e 114, de 2021, gerando uma bomba fiscal para os exercícios subsequentes (grifos meus). Em artigo anterior, defendi a adoção de um programa de reestruturação do gasto público que prestigiasse a eficiência e prevenisse o despesismo. Cuido agora de suscitar a reforma no processo orçamentário como instrumento de enfrentamento daqueles desafios”.
- O jornal “O Estado de S. Paulo”, do dia 31 pp, em artigo escrito por Claudio Adilson Gonçalez, economista e diretor-presidente da MCM Consultores (“Aviltar a democrcia prejudica o crescimento”), trata de um estudo realizado por pesquisadores da University College London (Inglaterra), Paris School of Economics (França) e Universidade de Siena. Países, que demonstra objetivamente que a democracia e os regimes políticos includentes são as principais bases para a prosperidade no longo prazo. “Se a economia política tradicional defendia que havia uma relação direta entre crescimento econômico e democracia”, ou seja, “quanto mais moderno, urbanizado e industrializado fosse um país, mais rapidamente ele se tornaria democrático”, uma vez que “a democracia seria mais consequência do que causa do desenvolvimento econômico”, agora essa visão, dominante nas décadas de 1950 e 1960 – “começou a ser revitalizada” por economistas como Daron Acemoglu e James A. Robinson que, em 2012, “publicaram o livro “Why Nations Fail”, um trabalho seminal para o entendimento das bases que estão por trás do desenvolvimento econômico sustentado”.
- Em seu livro “Guerra Civil”, a professora Bárbara F. Walter defende que as novas administrações públicas precisam manter três objetivos claros: “Estado de direito” (a aplicação igual e imparcial do processo legal); “voz e responsabilização” (o grau de participação dos cidadãos na escolha do seu governo, bem como as liberdades de expressão e associação e uma imprensa livre) e a “eficácia governamental” (a qualidade dos serviços públicos e a independência do serviço civil). Trecho extraído de artigo publicado no Estadão, dia 30 pp, por Elias T. Saliba.