Entrevista com Geraldo Viana

Publicado em
29 de Setembro de 2015
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Em fins de julho último, concedi uma longa entrevista à tradicional revista TRANSNOTÍCIAS (tradicional mesmo, afinal ela está no seu 29º ano de circulação), do SETCERGS – Sindicato das Empresas de Transporte e Logística no Estado do Rio Grande do Sul, publicada no nº 319 (Julho/2015), págs. 27 a 29, daquele periódico.

Hoje, dois meses passados, relendo-a, não encontrei motivos para recuar de qualquer palavra do que disse. Há apenas um pequeno trecho, que coloquei entre colchetes e com caracteres diferentes, que tratava de matéria datada, hoje já resolvida, felizmente da melhor maneira possível para o TRC. Assim, por versar temas da maior atualidade, decidi reproduzir neste blog, na íntegra, as reflexões que fiz naquela ocasião, aguardando, com o mesmo interesse, eventuais manifestações de apoio ou de crítica.

Transnotícias – Em seu artigo “Entendendo a bolha rodoviária”, o senhor classifica  o TRC como um paradoxo ambulante. A “bolha” seria evitável, num ambiente de livre mercado como o nosso?

Geraldo Vianna - O que me pareceu paradoxal foi o TRC ter conseguido investir, num cálculo muito conservador, cerca de US$ 10,4 bilhões por ano, nos últimos 3 anos (2012 a 2014) – sendo 60% disso pelas empresas de transporte e os restantes 40% pelos transportadores autônomos –, só com a compra de caminhões e implementos rodoviários. Como foi possível um setor tão cheio de problemas e carências, e com o nível de informalidade que o caracteriza, ter tido disposição, fôlego e, sobretudo, crédito para realizar tal proeza? Eu mesmo demorei para acreditar nesses números, achei que tinha errado nas contas. Mas, a partir dos dados divulgados pela ANFAVEA (de caminhões licenciados, ano a ano) e pela ANTT (de veículos incluídos na frota registrada no RNTRC), não pode haver dúvida; é isso mesmo, por incrível que pareça. Um setor que raramente freqüenta o espaço nobre do jornalismo econômico, de repente é flagrado fazendo um investimento que é quase o triplo do que foi realizado pela própria Indústria Automobilística e quatro vezes maior do que o que foi feito pelo conjunto das Concessionárias de Rodovias, no mesmo período, segundo dados divulgados pelas próprias entidades representativas desses setores. Quanto à “bolha” é preciso lembrar que ela tem duas dimensões, ambas muito impactantes: de um lado, há um enorme excesso de oferta de transporte, que empurra os fretes para baixo e, de outro, uma “bolha de crédito”, que se conta em muitos bilhões de reais, que dificilmente poderá ser honrada, nas atuais condições de mercado. Você me pergunta se esta situação poderia ter sido evitada. Acho que sim, se tivesse havido mais cuidado na concessão de crédito nas linhas do tipo FINAME, PSI, Procaminhoneiro etc. E se todo esse estímulo à expansão das vendas da Indústria Automobilística, de olho na manutenção dos empregos de trabalhadores metalúrgicos, tivesse sido acompanhado de um programa de reciclagem da frota muito antiga, com mais de 25 ou 30 anos, como sempre foi defendido pelas entidades do setor.  

 

 

Transnotícias – O TRC sempre foi considerado o termômetro da economia. Nosso medidor de temperatura está frio?

G.V. - De fato, o TRC sempre foi um termômetro da atividade econômica e, como tal, ele apenas registra a temperatura ambiente, que realmente está muito baixa. Já não há mais dúvida de que o PIB de 2015 será negativo. O próprio Governo já admite um recuo de 1,5%. Acho que o tombo será bem maior do que 2%. O Decope da NTC realizou uma pesquisa junto a 343 empresas de transporte, de diversos portes, segmentos e regiões. Entre inúmeras outras revelações, 79,6% dos empresários consultados afirmam que o desempenho de suas empresas no 1º semestre deste ano foi pior do que o de 2014 (sendo certo que 51,6% informaram que o ano passado já tinha sido pior que 2013); 81,1% acham que o mercado deverá diminuir até o final de 2015 e 71,1% apostam numa piora do mercado interno. Outros indicadores, como o da ABCR, que mede o tráfego de caminhões nas rodovias concedidas, e a venda de diesel, confirmam uma queda significativa na atividade de transporte. 

 

 

Transnotícias -  Por que não se consegue precisar a participação do transporte no PIB brasileiro?

G.V. - A extrema pulverização (mais de 1 milhão de operadores em todo o país) e a grande informalidade ainda reinante no TRC impedem que se conheça a sua receita efetiva e, portanto, a sua correlação com o PIB brasileiro. Mas é possível estimá-la com uma margem de erro relativamente pequena. Abordei este assunto num outro artigo recente, no meu blog (v. Blog do Geraldo, em www.portalntc.org.br), sob o título “O tamanho do gigante”. Nele, a partir dos dados da frota de veículos chego a uma estimativa dos empregos diretos e indiretos gerados pelo setor e, portanto, das despesas com pessoal. Em seguida, com base no consumo aparente de diesel pelo TRC, chego às despesas com combustível. Considero, por fim, que, somadas, as despesas de pessoal e combustível devam representar 60% do custo total dos diversos segmentos de transporte, em média. Ora, quem chega a 60% chega também a 100%, com uma simples regra de três. “Concluo que a receita bruta do setor, mesmo operando a preço de custo, não pode ser inferior a R$ 370 bilhões/ano, o que equivale a cerca de 6,7% do PIB de 2014 (R$ 5,521 trilhões, segundo o IBGE)”. E digo, também, que fico com esta estimativa, até prova em contrário, pelo menos enquanto não tivermos número melhor, a partir da implantação compulsória do Conhecimento de Transporte Eletrônico e do Manifesto Eletrônico de Cargas, o que deverá ser potencializado com o “tagueamento”da frota de caminhões, por ocasião do recadastramento no RNTRC, que deverá ter início em breve.      

 

 

Transnotícias – Nesse cenário de incertezas, como deve ser o comportamento dos empresários do setor?

G.V. - O que a gente faz quando é surpreendido, no meio da rua, por uma súbita tempestade? A primeira coisa é buscar um abrigo, é procurar um lugar seguro. E esperar a tempestade passar para, então, retomar a caminhada. Penso que o empresário do TRC deveria adotar uma postura low profile, ficar um pouco quieto no seu canto, cortar custos, principalmente os custos fixos, tentar vender ativos ociosos (o que é difícil num momento como este), não agredir o mercado em busca da carga que não existe ou que já está com o concorrente (porque, se tiver êxito, será a um preço que provavelmente aumentará o buraco, ao invés de tapá-lo), nem fazer novos investimentos. Quem estiver vivo quando a crise passar terá chance de recuperar o tempo perdido. É claro que quem adotar uma linha agressiva poderá sair da crise muito maior do que entrou, mas também correrá o risco de não estar mais no jogo quando o mercado se reequilibrar. Como é sabido, e vive sendo repetido, os momentos de crise representam também excelentes oportunidades para quem, por ser empresário, está acostumado a enfrentar riscos. Portanto, cada um que exercite o seu “instinto animal” e decida o que fazer, munindo-se, claro, de todas as informações possíveis sobre o que pode vir pela frente.

 

 

Transnotícias – Há como apontar “culpados” pelo Brasil ter chegado nesta situação?

G.V. - Acho que não há dúvidas de que o primeiro mandato da presidente Dilma foi desastroso, sob muitos aspectos. Os dois mandatos do presidente Lula foram ancorados numa política – acertada, a meu ver – de distribuição de renda, que gerou um mercado interno como nunca tivemos. E também num bônus representado por um cenário externo muito favorável. Seja por miopia, seja por um cálculo político muito ousado (que não deu certo), o governo, sob Dilma, não percebeu – ou melhor, não quis perceber – que  modelo baseado no consumo estava se esgotando rapidamente e que o panorama externo estava mudando. Foram adiando as mudanças que eram necessárias para não passarem recibo do erro, até que entramos no 4º ano do mandato, tempo de cuidar da reeleição. Aí vira guerra e, como se sabe, “na guerra a primeira vítima é a verdade”. A campanha de 2014 foi uma dos piores momentos da história política brasileira. O resultado desastroso da Copa do Mundo e a baixaria que marcou a campanha eleitoral já eram um alerta de que o país estava entrando no seu “inferno astral”. Agora estamos nele e, segundo me parece, apenas iniciando a nossa “travessia do deserto”...

 

 

Transnotícias – Quais seriam as consequências do eventual impeachment da presidente Dilma ?

G.V. - Acho que não devemos assumir como certo um processo de impeachment, sem que tenhamos, até agora, o tal “fato determinado” que justifique a sua instauração. Os erros que eu mencionei na resposta anterior, e tantos outros que podem ser atribuídos ao atual governo, são, por enquanto, apenas fatos que merecem o julgamento político, ou seja, aquele que se manifesta nas urnas, no momento determinado pelo calendário eleitoral. Vivemos num sistema presidencialista (de péssima qualidade, porque baseado num multipartidarismo quase suicida). E vivemos porque o povo quis assim, quando consultado em dois plebiscitos, com intervalo de 30 anos entre eles. Não podemos querer presidencialismo e, quando a coisa aperta, lançar mão de um recurso típico do parlamentarismo, que é a possibilidade de derrubada do governo que perdeu o apoio no Congresso e o apoio popular, ou ambos, como é o caso agora. Mas supondo que, com a evolução dos acontecimentos, a presidente Dilma venha a ser acusada formalmente de crime eleitoral ou de qualquer outro crime que a inabilite para o exercício do cargo, e que, após o devido processo legal, ela venha a ser condenada, aí sim o seu afastamento poderá acontecer. E o que resultaria disso? Bem, aí vai depender da natureza do crime cometido. Se for crime de responsabilidade atribuível apenas à presidente, ela perderá o cargo e será sucedida pelo vice-presidente Michel Temer, que cumprirá o restante do mandato. Se for de natureza eleitoral, a presidente e seu vice perderão os mandatos simultaneamente (já que foram eleitos juntos, na mesma chapa) e assumirá o poder, transitoriamente, o presidente da Câmara dos Deputados, que deverá convocar novas eleições no prazo de 90 dias. Estas serão diretas, se o afastamento acontecer até a metade do mandato, ou indiretas (com o novo presidente sendo escolhido pelos membros do Congresso Nacional), se ocorrer do terceiro ano em diante. Tudo isso está perfeitamente previsto na Constituição, em seus artigos 80 e seguintes. Agora, se a sua pergunta for: o que acontecerá com o país e com a nossa economia caso cheguemos a um processo dessa natureza? Aí a minha resposta seria outra. Acho que este seria o pior cenário que poderíamos desejar. Penso que o processo seria longo e doloroso, muito mais complicado do que o do impeachment do Collor, e poderia levar a crise econômica a um nível muito mais grave do que o que experimentamos atualmente. Mas às vezes as circunstâncias políticas são inelutáveis. Elas podem nos empurrar para este caminho, queiramos ou não.      

 

 

Transnotícias – Até meados do ano passado, o setor estava em alta,  efetivando  grandes investimentos, principalmente,  na renovação da frota. Como tudo mudou tão rapidamente?

G.V. - Acho que, indiretamente, já respondi a esta pergunta. O setor entrou em crise junto com a economia, quando esta começou a dar sinais de esgotamento do ciclo de desenvolvimento baseado no consumo e quando o governo começou a errar muito, por ação e por omissão. O mercado foi ficando confuso e, por conseqüência, começou a frear os investimentos, em quase todas as áreas. Se olharmos bem, as coisas não mudaram tão rapidamente. Elas vieram se deteriorando aos poucos, desde meados de 2013 e ao longo do primeiro semestre de 2014. A Copa do Mundo ajudou o Governo a empurrar a crise com a barriga. O desastre da Copa e o início do processo eleitoral adiaram qualquer possibilidade de atuação racional no campo econômico. A prioridade era ganhar as eleições. Passado o pleito, “a ficha caiu”. Começaram as medidas amargas. O resto foi decorrência da crise da Petrobrás e da Operação Lava Jato.

 

 

Transnotícias – A desoneração da folha de pagamento pode contribuir para amenizar esse momento delicado que vive o TRC?

G.V. - Já contribuiu. Talvez tenha sido a única notícia boa que tivemos nos últimos tempos. Diante da ameaça do pacote fiscal, que propôs passar a contribuição previdenciária do TRC de 1% da receita bruta para 2,5% (um aumento de 150% de um item muito significativo do custo de qualquer empresa), as nossas entidades de classe, neste caso sob coordenação nacional da NTC, atuaram de forma muita competente e conseguiram que, no substitutivo do relator, o setor fosse, junto com outros, reclassificado para um patamar intermediário de 1,5%. Ainda assim, um aumento de 50%. Mas foi o melhor que se conseguiu. E nenhum dos outros 56 setores obteve coisa melhor. [O problema é que este resultado, obtido na votação do projeto na Câmara, ainda não foi confirmado pelo Senado, onde o assunto vem sendo submetido a novas e desgastantes negociações. O Governo, que havia concordado com a solução da Câmara, agora parece ter perdido a pressa e está buscando uma homogeneização das alíquotas entre os diversos setores, o que pode ser muito desinteressante para o TRC. A ordem é continuar lutando, no Senado e junto ao Executivo (para prevenir eventual veto futuro), com a mesma competência com que o fizemos na Câmara. No momento, esta é uma das principais bandeiras a serem defendidas pelo setor empresarial do TRC]

 

 

Transnotícias – Em junho o Governo Federal anunciou o Programa de Investimentos Logísticos que prevê a concessões de rodovias . Até que ponto os desdobramentos da Operação Lava Jato poderão prejudicar esse programa?

G.V. - É fato público e notório que as grandes construtoras que são alvo daquela operação estão entre as maiores investidoras na concessão de rodovias até aqui. Tudo indica que elas não terão o mesmo apetite e as mesmas condições objetivas de investimento nas próximas licitações. A grande incógnita é se o espaço que deixarem será ocupado por novos players, nacionais ou estrangeiros. E esta é uma variável muito importante porque determinará o nível de competitividade dos processos licitatórios e, portanto, o nível das tarifas resultantes. Portanto, considero que há um prejuízo. O que não sei (e acho que ninguém pode saber com certeza, a esta altura) é se este prejuízo será tão grande a ponto de condenar todo o PIL a um fracasso inevitável. Torço para que não seja assim.  

 

 

Transnotícias – Na sua opinião, o Ministro Levy está demonstrando a competência necessária para reverter o atual quadro econômico?

G.V. - Acho que o problema não é a pessoa do ministro Joaquim Levy, que é reconhecido como um bom técnico. Mas tenho sérias dúvidas a respeito da consistência, coerência, oportunidade e viabilidade da política econômica adotada pela presidente Dilma, neste seu segundo mandato, primeiro porque representou o abandono abrupto e até agora não justificado dos compromissos assumidos durante a campanha política. Além disso, não consigo entender esta taxa de juros absurda, sob a justificativa de que é para combater a inflação, quando grande parte da inflação é causada por medidas do próprio Governo (forte realinhamento dos preços administrados que estavam artificialmente baixos). É esquizofrênico provocar recessão, portanto derrubar o PIB e ficar assustado quando cai a arrecadação de impostos. Queriam o quê, que a arrecadação subisse? Mais esquizofrênico ainda é derrubar o PIB com uma mão e turbinar a dívida pública com a outra, inflando-a com essas taxas de juros obscenas, e proclamar que o principal objetivo do Governo, para evitar a perda do grau de investimentos pelas agências de rating, é reduzir a relação dívida/PIB. Como assim, se tudo o que fazem aponta exatamente para o resultado oposto? Todo o esforço feito para reduzir gastos foi anulado pelo crescimento da dívida. A economia real sofre, trabalhadores perdem empregos e só os banqueiros e rentistas ganham. Até quando? Enfim, parece que essas contradições já começam a ser reconhecidas dentro do Governo. A recente decisão de praticamente zerar a meta de superávit primário é uma prova disso. Se houver nova inflexão de rumos, não sei se o ministro Levy terá condições ou mesmo se terá interesse em continuar à frente da equipe.    

 

     

Transnotícias – Por sua experiência como líder nacional do TRC, é possível ser otimista que os tempos melhores retornarão?

G.V.- Não tenho pretensão de ser, e de fato não sou, líder de coisa nenhuma desde que deixei a presidência da NTC&Logística, no final de 2007. Quando muito, posso concordar que, pelos 45 anos de atuação no setor e em suas entidades, tenho alguma experiência em conviver com crises. Umas das coisas que eu aprendi em todos esses anos é que as crises passam. Elas podem ser maiores ou menores, podem ser mais ou menos prolongadas, mas invariavelmente passam. Cumprem o seu papel saneador e transformador e, depois, se vão, abrindo caminho para um novo ciclo de crescimento. Além disso, o Brasil deixou de ser, há algum tempo, um país subdesenvolvido. Somos a 7ª ou 8ª economia do mundo, o 5º país em extensão territorial e em população, o 7º maior produtor mundial de veículos, o 4º ou 5º maior em frota de veículos rodoviários, a 4ª maior frota de helicópteros etc. Temos ainda alguns vergonhosos indicadores sociais, é verdade, mas já galgamos muitas posições no ranking do IDH. Sobretudo, somos uma das maiores democracias do mundo. Acho que toda esta turbulência provocada pela Lava Jato e por tantas outras denúncias de corrupção tende a provocar uma grande e benéfica revolução nos nossos hábitos políticos. Não acho realmente que a corrupção está aumentando. Pelo contrário, penso que ela está sendo revelada e combatida como nunca. E que está se tornando um péssimo negócio para quem a pratica. Isso é uma mudança importantíssima. Acredito que a corrupção, com o tempo, tenderá a se tornar, aqui, cada vez mais um acontecimento acidental e isolado, como nos melhores países do mundo, e não mais uma prática necessária e indissociável da atividade política e econômica, como sempre foi entre nós. Sou muito otimista quanto a isso. [OBS.-  vide, a respeito, o meu artigo “É tempo de compliance”, neste blog]. O importante é não desistir da democracia. Ao contrário, a solução é cada vez mais democracia, transparência, independência e autonomia do Ministério Público, liberdade de opinião e de informação, controle social etc. Apesar de toda a crise econômica e política, as nossas instituições estão funcionando. Esta é uma grande notícia.  

 

 

Geraldo Vianna é advogado, consultor em Transportes, ex-presidente da NTC&Logística e Diretor da CNT.

 

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