Artigo escrito por Paulo Roberto Guedes*
Ainda em dezembro de 2019, portanto antes da pandemia, escrevi um artigo (“Para não continuar errando”) cuja primeira parte (“Mais economia e menos finanças”) teve como objetivo criticar o “liberalismo econômico” defendido pelo ministro Paulo Guedes que, segundo ele, uma vez praticado, estabeleceria totais condições para que o “deus mercado” solucionasse todos os problemas econômicos do País. Formado em Chicago, nosso ministro da economia acreditava (e ainda acredita, até por conveniência) apenas “nas virtudes” do mercado totalmente livre.
Ao finalizar o artigo procurei demonstrar que essa “burrice” somente prosperava porque o (des) governo Bolsonaro, e a quase totalidade de todos aqueles que o apoiavam, sem quaisquer compromissos com a qualidade de vida dos brasileiros, aceitavam como justificáveis os cortes nos gastos com saúde, educação, segurança pública, programas sociais e de geração de empregos, por exemplo, desde que fosse alcançado o equilíbrio das contas públicas.
Em síntese: num “trade-off” perverso, admitia-se ser possível (e viável) aguardar, por mais cinco ou dez anos, a volta dos empregos, a disponibilidade de recursos para os hospitais, para as escolas públicas, para a segurança pública ou para a realização de investimentos imprescindíveis. Esse culto à ‘ditadura financeira’, com concordância de grande parte das classes política e empresarial, de economistas e da imprensa, apenas tem servido para, em detrimento da qualidade de vida da população, notadamente os mais pobres, privilegiar o controle do caixa e aqueles diretamente beneficiados por isso. É a crença ultrapassada de que para se realizar um bom governo, não é necessário um plano consistente (1), bastando “tomar conta do caixa”. Quanto engano!
Depois de diversos outros artigos defendendo que para o Brasil as políticas de geração de empregos e de diminuição da desigualdade eram essenciais, e agora já com a “pandemia em andamento”, escrevi um outro texto (“Estamos todos na mesma tempestade, mas não no mesmo barco”) para alertar sobre as reais e iminentes possibilidades de se ter um desastre ainda maior, e mostrar que a dicotomia “Economia x Pandemia”, além de uma grande falácia e de prejudicar as discussões a respeito, ainda inibia a tomada de providências corretas de combate ao Coronavírus. Jamais considerei como possível, a retomada da “normalidade” das atividades econômicas brasileiras, sem antes encaminhar soluções reais para o problema pandêmico.
Portanto, à medida em que se desenrolavam os acontecimentos, consolidava-se a certeza de que, ademais da instabilidade política e institucional (2), causada diariamente pelo Presidente da República, e desde sua posse, a falta de rumo e de liderança, tanto para o enfrentamento dos reais problemas nacionais como aqueles causados pela pandemia, aumentariam, em número, tamanho e complexidade.
Não é novidade que os países que obtiveram mais rápidos os resultados de combate à pandemia, conseguiram mais rapidamente iniciar seus processos de retomada do crescimento econômico. Ainda recentemente, dia 19 pp, em artigo publicado no Estadão (“Má resposta à Covid elevou custo para o Brasil”), a jornalista Idiana Tomazelli comenta levantamento feito pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) no qual se constata o fato de que as nações que não manejaram corretamente a crise sanitária, tiveram que gastar mais do que as outras para diminuir seus danos econômicos e ainda “sofreram as maiores perdas da atividade”. Obrigou esses países, incluindo-se o Brasil, a “lançar mão de pacotes fiscais mais generosos para mitigar os impactos econômicos e sociais da pandemia”. Com respeito a isso, afirmou o economista Rodrigo Orair, responsável pelo estudo do IPEA: “Aqueles que não conseguiram controlar a crise sanitária tiveram muitas mortes, tiveram mais perdas econômicas e sociais”. E concluiu Orair: “Quem fez a lição de casa, fez a estratégia de achatamento (da curva de casos e mortes) bem feita, informou a população, tomou medidas de precaução, conseguiu evitar a crise sanitária, evitou os danos econômicos e sai com o sistema econômico social mais resiliente”. Inclusive retomando níveis mínimos de investimentos (3) que, como todos sabemos, não tem sido o caso do Brasil nos últimos anos. O Brasil não fez a lição de casa, como demonstram a CPI da Covid e as estatísticas a respeito: quase 600 mil mortos, mais de 20 milhões de infectados e um índice de vacinação muito aquém ao exigido.
Aliás, o mercado tem total consciência disso e compreende a elevação do risco no Brasil como uma realidade. A Bolsa brasileira vem tendo problemas, as empresas que planejavam fazer seu IPO (oferta inicial de ações) estão ‘reprogramando’ e o dólar vem subindo, mantendo-se em níveis significativamente altos. Enquanto a Bolsa alcançou seu menor índice desde 1ºde abril e mais de vinte empresas reprogramaram o lançamento inicial de suas ações (IPO), o dólar tem se mantido acima dos R$ 5,30, quando todos aceitam que a taxa mais conveniente para o Brasil estaria próximo dos R$ 4,90.
Complementando esse triste cenário, alguns dos principais indicadores macroeconômicos para 2021 estão ficando muito piores se comparados com aqueles projetados inicialmente: taxa de crescimento de apenas 4,5%, inflação em crescimento (já está em 9% ao ano) e alto desemprego (entre 14,5% e 15,0%). Mesmo para 2022 as projeções vem piorando, posto que não há condições concretas para maiores expectativas. Acrescente-se a isso o fato de que tanto Bolsonaro como o Congresso não são confiáveis em época de eleição.
Com relação ao desemprego, um dos maiores flagelos a ser suportado pelos menos favorecidos, o que por si só deveria receber atendimento especial por qualquer governo de plantão, outra observação precisa ser feita. Quanto maior o tempo de desemprego das pessoas, pior é o cenário para elas, pois inevitavelmente elas começam a perder parte de suas habilidades, ficam ‘desatualizadas’ profissionalmente e, até certo ponto, desinteressadas para voltar ao trabalho anterior. Segundo dados publicados pelo jornal O Estado de São Paulo (“O desemprego longo, as vítimas e seus efeitos” – 20.08.21), os principais afetados são os profissionais jovens, de baixa qualificação e baixa escolaridade. E na maioria mulheres. “De cada três pessoas desempregadas há muito tempo, duas são mulheres. Metade tem idade entre 17 e 29 anos. Do total, 80% têm baixa qualificação, tendo, no máximo, o nível médio de ensino; 38% do total não possuem nem esse nível”. Conclui o artigo: “Medidas de socorro a empregados e empregadores tomadas pelo governo no ano passado reverteram essa tendência, mas dados atualizados talvez mostrem que o efeito foi temporário. A saída de muitas pessoas da força de trabalho justamente por não encontrarem ocupação evitou o aumento mais expressivo da taxa de desemprego. Mas os efeitos da crise serão longos, de quase dez anos, advertiu recente estudo do Banco Mundial”.
Querendo se reeleger a qualquer custo, o presidente Bolsonaro, populista e inconsequente, não só poderá aumentar os gastos públicos, como poderá dar ao teto dos gastos “limites mais flexíveis”, deteriorando ainda mais o ambiente econômico. Não foi à toa que o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, ao perceber que o governo pode ser levado à gastar mais do que o possível, enfatizou: “é impossível para qualquer BC do mundo fazer um trabalho de segurar as expectativas (de inflação) com o fiscal descontrolado”. E ainda alertou: para controlar a inflação será preciso diminuir ainda mais o crescimento da economia brasileira. Lembrete: mesmo para alcançar os 4,5% em 2021, será fundamental uma forte reação no segundo semestre, posto que a expectativa para o segundo trimestre, segundo o Índice de Atividade do Bando Central (IBCBR) é de crescimento baixo: cerca 0,2%.
Recentemente o BC reconheceu que a alta dos preços ao consumidor, notadamente das camadas mais pobres da população, tem resistido à política monetária. Tanto que na última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) estabeleceu a taxa Selic em 5,25% ao ano (1% de aumento!). Uma intervenção significativa e que não interessa a governos menos cautelosos. Observação importante a respeito: nesta última quinta-feira, o presidente Jair Bolsonaro, ao se mostrar irritado com a “nova autonomia do Banco Central”, disse lamentar ter assinado, em fevereiro deste ano, o projeto de lei que concedeu a autonomia bancária ao BC. Se não bastassem as atuais, mais “incertezas” pela frente.
O economista e ex-presidente do Banco Central, Affonso Celso Pastore, no Estadão do último dia 19 (‘A euforia acabou’ – matéria de Adriana Fernandes) não tem dúvidas ao afirmar que os “indicadores já refletem, em parte, efeito da agenda populista do governo”. Pastore, inclusive, vê risco de uma ruptura institucional. Já o economista Bráulio Borges, da consultoria LCA, acredita que, diante das incertezas políticas oriundas das ameaças institucionais feitas por Jair Bolsonaro e a situação fiscal, o crescimento em 2022 chegará ao máximo nos 2%. Incertezas políticas inibem as decisões de investimento e consumo, arremata Bráulio Borges.
Em resumo, enquanto o combate à pandemia tem sido feito de forma equivocada, sem a eficácia necessária e com suspeita de crimes (de prevaricação seria um deles?), tampouco a economia está funcionando de forma razoável, levando a imensa maioria dos brasileiros a um estágio de cansaço e irritação significativo. A pandemia “não vai embora”, a economia não deslancha e os empregos não são gerados. Lamentavelmente, aumenta-se a pressão para que as medidas de combate à pandemia sejam mais ‘flexíveis’, com consequências terríveis, seja na criação de novas ‘cepas’, no aumento da contaminação ou aumentando desnecessariamente os riscos com relação à saúde pública.
Para muitos, tudo o que (não) vem sendo feito por este (des) governo – desde à piora do ambiente institucional à mania de querer privilegiar a classe militar, do precário combate à pandemia ao descontrole fiscal, da falta de políticas de proteção ao meio ambiente ao armamento da população, do não pagamento dos precatórios à irresponsável proposta de reforma tributária, por exemplo (4), da falta de política educacional à inexistência de um programa de industrialização (5) – tem contribuído para que se perca a confiança na administração atual, incluindo-se aí a quase totalidade dos ministros (6), e aumentando a crença de que o ano de 2022 poderá ser tão ruim ou pior do que este.
Felizmente, como parece estar refletido na pesquisa da XP / IPESPE publicada esta semana, grande parte da população brasileira percebeu, assim como já havia percebido no desastroso governo lulopetismo, o quão danoso é e está sendo, para o Brasil, a Democracia e a população brasileira, este (des) governo. Chega de extremismos e radicalismos. Vamos acompanhar.
(1) “Fim das ilusões”, artigo do economista Luis Eduardo Assis, publicado no Estadão dia 16.08.21: “Não há um projeto para o País, e, se houvesse, faltaria capacidade gerencial de implementá-lo. Sobretudo, não há mais tempo. A única artimanha que pode ser tentada é a compra de votos com o mais reles assistencialismo populista.
• A inflação bateu em 9% ao ano, a maior desde maio de 2016.
• A previsão de crescimento do PIB para 2022 vem declinando sistematicamente.
• As ameaças ao teto de gastos provocam siricutico no mercado, elevando as taxas de juros de longo prazo. Os juros de cinco anos pularam de 6% no começo do ano para 9,3% agora.
• O estímulo fiscal de 2021 não se repetirá no ano que vem. A previsão é de que o déficit primário atinja R$ 183 bilhões neste ano, mais do que o dobro do déficit de 2019, antes da pandemia.
• Qual é o plano liberal que o governo tem na manga para retomar o crescimento e o emprego? Não há nenhum
• Menor estímulo fiscal significa maior dificuldade de manter o crescimento, o que é particularmente nefasto com 14,8 milhões de pessoas desocupadas. Qual é o plano liberal que o governo tem na manga para retomar o crescimento e o emprego? Não há”.
(2) “Porém e infelizmente, os exemplos que demonstram o ‘quanto’ o Brasil vem trilhando um caminho indesejável, principalmente para quem quer viver, sem quaisquer adjetivos, em pleno Estado Democrático de Direito, são muitos, não se limitando às formas desastrosas de se combater a pandemia ou preservar o meio ambiente”, escrevi em artigo (“As aparências, às vezes, não enganam”) publicado no site do Guia do TRC dia 04/06/21. “Fortalecer as instituições e fazer com que elas funcionem em sua plenitude é essencial. Desencorajar os mais resistentes e obrigar a todos – civis e militares, públicos e privados – para que respeitem o que estabelece a Constituição e o Estado Democrático de Direito, é imprescindível”, concluí.
(3) Segundo a Fundação Getúlio Vargas (FGV), o volume de investimentos no primeiro trimestre deste ano representou apenas 17,1% do PIB. Para que se tenha ideia, esse percentual é insuficiente para repor o capital gasto (depreciação). Impossível acreditar em crescimento econômico com esse percentual.
Em 2020 houve uma contração de 62% no fluxo de Investimentos Diretos no Brasil, que caiu da 6.ª posição entre os maiores receptores do mundo para a 11.ª. Neste caso, os investimentos dependem dos ‘estrangeiros’ que, como se sabe, não querem correr riscos desnecessários quando se pode investir em mercados mais estáveis, rentáveis e seguros. São claros os exemplos de saída de empresas que mantinham instalações e operações no Brasil. Embora possa ser mais profundamente discutido este assunto, está claro que o País vem perdendo espaços importantes nas cadeias globais de valor.
(4) O economista e cientista político, Albert Fishlow, ao escrever artigo no qual compara Joe Biden a Bolsonaro (“Um teste comparativo” - Estado – 15/08/21), fez a seguinte síntese com relação a nosso País: o “Brasil tem mostrado incapacidade de liderança para compreender o que é democracia” e “está mostrando como seu novo “centrão” parlamentar falha em funcionar. E, como executivo incompetente, (Bolsonaro) com o objetivo de homenagear as Forças Armadas, falha em administrar tudo. Insistir no privilégio pessoal e em posição de liderança para os militares não funciona no século 21”.
Aliás, parece ser quase unânime a opinião, de especialistas, de que a Proposta de IR do governo, além de resolver ‘nada’, ainda eleva as distorções já existentes, na medida em que insiste no desequilíbrio na distribuição da carga tributária. Ainda em recente entrevista, Bernard Appy, especialista no assunto confirma: “pelo texto, enquanto um trabalhador com carteira assinada pagará 37,8% de imposto, um profissional liberal que optou pelo regime de lucro presumido terá carga reduzida de 11,9% para 7,9%!”
A falta de apoio do governo federal, em especial o ministro Paulo Guedes, foi tão grande, que permitiu que os congressistas alterassem completamente a proposta de reforma do Imposto de Renda inicialmente apresentada. Concessão de benefícios e privilégios a alguns grupos, inconsistências técnicas, excesso de “pejotização” e até negociações sobre temas que nada tinham a ver com o assunto (pisos salariais maiores para os professores), transformaram o projeto inicial, que já era ruim, em algo ainda pior. Como disse o Secretário da Receita Federal, José Tostes: “É um desvirtuamento. Não há como argumentar e defender que uma única pessoa prestadora de serviço seja equiparada a uma sociedade empresária normal”.
Enquanto isso, a PEC (Projeto de Emenda Constitucional) de reforma ampla dos tributos de consumo, que propõe a criação de um imposto dual (IBS para Estados e municípios e a CBS para o governo federal, unindo PIS e Cofins), está em discussão no Senado Federal. Mas aqui também, e infelizmente, não se sabe se o Ministro da Economia irá apoiar ou deixar como está.
(5) Dados fornecidos pela Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (Unido) indicam que entre 2005 e 2020 a indústria brasileira recuou da 9.ª posição para a 14ª, entre as maiores do mundo. Nesse período a participação da indústria brasileira na indústria mundial saiu de 2,2% para 1,3%. E para que o Brasil não seja dependente eterno dos setores primário e terciário, exige-se uma agenda que promova a modernização industrial.
(6) A economista e advogada Elena Landau, no Estadão do último dia 20 (“Clima terrível”), ao relembrar o vídeo da reunião de governo, de 22 de abril, escreveu um artigo que tem minha total concordância: Objetiva e clara, escreveu Elena: “Foram reveladas as entranhas do governo Bolsonaro e seu modus operandi. Em qualquer democracia, o que se viu e ouviu ali seria motivo mais do que suficiente para o impeachment do presidente e a responsabilização de vários de seus ministros”. E enfatizou: “A reunião mostrou que ninguém está neste governo por acaso. Não existe isso de ministro técnico, são todos apoiadores da agenda bolsonarista. Só saem, demitidos, quando começam a atrapalhar o projeto do chefe. Mesmo de fora, mantêm o discurso golpista. O negacionismo os une e identifica. Não usam máscaras e não permitem que ninguém as use em seus gabinetes. A marca da seita. São responsáveis pela agenda política e econômica, enquanto Bolsonaro só pensa naquilo: a reeleição”. “De lá para cá, tudo piorou”.