Movimento que parou o Brasil em maio de 2018 teve respostas que duraram poucos meses e, hoje, líderes da classe apontam cenário menos favorável aos trabalhadores
Dois anos atrás o Brasil estava parado por um outro motivo. Se hoje as pessoas devem ficar em casa para evitar o contágio do coronavírus durante a pandemia, em maio de 2018 os brasileiros viveram dias de isolamento causados por bloqueios nas rodovias, falta de combustível e até desabastecimento nos supermercados. A greve dos caminhoneiros completa dois anos do pontapé inicial na próxima quinta-feira, 21. O movimento que parou o Brasil cresceu com velocidade, inflamado por um forte apoio popular e interesses políticos em um ano eleitoral.
A paralisação teve fim após 10 dias, quando o então presidente Michel Temer (MDB) assinou medidas que acalmaram os ânimos dos grevistas e autorizou o Exército a liberar as rodovias obstruídas pelos caminhoneiros. Entre as reivindicações, que em certo momento da paralisação se tornaram difusas e variaram das causas específicas a apelos políticos, dois pontos nortearam a greve e motivaram os caminhoneiros a cruzar os braços: o preço dos combustíveis e o custo dos fretes pelo Brasil. Ambos foram englobados nos decretos assinados por Temer trazendo alívios imediatos. No entanto, as mudanças duraram poucos meses e, hoje, a classe vê a situação igual – ou até pior – em relação a dois anos.
Como parte do acordo com os caminhoneiros, o preço do diesel foi reduzido em R$ 0,46 nas bombas, com garantia de manutenção do valor por 60 dias. A promessa foi cumprida, mas um ano e meio depois o combustível já havia voltado ao patamar anterior e até ficado mais caro do que antes.
Em Santa Catarina, em maio de 2018 o litro do diesel comum custava R$ 3,46 em média, segundo o histórico da Agência Nacional do Petróleo (ANP). Um ano depois, em maio de 2019, o valor seguia mais baixo: R$ 3,39. No entanto, em outubro do ano passado o preço do diesel entrou em uma série de crescimento que fez o custo atingir R$ 3,65 em janeiro de 2020. Em abril – dado mais recente da ANP – a média em SC despencou para R$ 3,23, mas motivada pela baixíssima demanda de combustível durante a pandemia do coronavírus.
A gasolina seguiu uma curva semelhante ao diesel. Em maio de 2018 a média catarinense estava em R$ 3,99, valor que na época fez grande parte da população apoiar o movimento dos caminhoneiros. O preço manteve uma tendência de queda na sequência da greve, mas voltou a subir e começou 2020 acima de R$ 4,30. No mês passado, também por causa do coronavírus, caiu para R$ 3,90 novamente, e a tendência é de queda ainda maior em maio.
A análise dos especialistas ouvidos pela reportagem é de que o governo federal e a Petrobras não conseguiram manter a política de preços prometida em 2018 por uma série de fatores externos. A alta no preço do dólar e movimentações no mercado de petróleo internacional afetaram o valor cobrado nas bombas no Brasil desde a greve.
Legislação foi feita, alterada e mal fiscalizada
Além da questão do preço dos combustíveis, o acordo feito entre o governo federal e os caminhoneiros dois anos atrás trazia três medidas provisórias. A primeira determinava que pelo menos 30% das contratações de frete feitas pela Companhia Nacional de Abastecimento seriam de caminhoneiros autônomos, a segunda estabelecia a tabela mínima de fretes e a terceira isentava caminhões vazios da cobrança de pedágio por eixos suspensos.
Caminhoneiros trabalham, em média, 11,5 horas por dia e rodam mais de 8 mil km por mês
As medidas não foram um consenso na época, mas eram o suficiente para o fim da greve. A principal delas, sobre a tabela de fretes, trouxe impactos imediatos na sequência do acordo, mas a falta de fiscalização faz caminhoneiros e empresários avaliarem que a medida não teve o efeito esperado.
Presidente do Sindicato dos Transportadores Rodoviários Autônomos de Santa Catarina (Sindicam-SC), Francisco Biazotto relata que a tabela do frete foi cumprida pela maioria das empresas nos meses seguintes ao acordo na greve dos caminhoneiros, mas com o tempo passou a ser pouco utilizada e mal fiscalizada. Isso fez os fretes voltarem ao patamar anterior ao movimento de 2018, conforme Biazotto:
– A tabela existe, a lei existe, mas quem tinha que fiscalizar não fiscaliza. Nos primeiros meses foi cumprido pela maioria, depois foi desmoronando. Hoje está na lei da oferta e da procura novamente, poucas empresas pagam a tabela mínima.
No lado dos empregadores a situação é vista da mesma forma. Presidente da Federação das Empresas de Transporte de Carga do Estado de Santa Catarina (Fetrancesc), Ari Rabaiolli afirma que a tabela do frete nasceu com distorções que tornaram o negócio caro para muitos setores. Essa questão, aliada a baixa fiscalização, fez com que muitas empresas deixassem de seguir os valores mínimos:
– A própria ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) não teve efetivo para fiscalizar. Não tem efetivo, historicamente se sabe que a ANTT consegue fiscalizar 1% dos caminhões. A maioria acabou não conseguindo cumprir a tabela. Tiveram que escolher entre ser fiscalizado e ter passivo futuro, uma multa. Tem multa, mas alguém tem que fiscalizar.
A ANTT garante que faz operações fiscalizando o cumprimento da tabela de frete nas rodovias brasileiras, especialmente nos postos de pesagem. Segundo a agência, em 2019 foram emitidas 19.842 multas por descumprimento aos preços mínimos. Em 2020, somente em janeiro o órgão divulgou que cerca de 1000 infrações foram registradas, e que as fiscalizações seriam intensificadas ao longo do ano.
"O caminhoneiro está se arrastando"
Mesmo com visões diferentes sobre os rumos do setor depois da greve, empresários e caminhoneiros autônomos têm um consenso: a situação piorou desde maio de 2018. Para Biazotto, que foi caminhoneiro por mais de 30 anos, a classe está "se arrastando":
– Tudo que foi prometido para nós, não foi cumprido. Está tudo uma baderna, muita gente transportando sem contrato, a esmo. Tem rota que não compensa nem viajar se não tiver o pedágio pago, algo que é lei e muita gente não cumpre. A categoria está cada dia mais pobre, encostando o caminhão, fazendo frete por perto porque não tem mais condições de se equipar para uma viagem.
O presidente da Fetrancesc aponta que, na visão de muitos, o movimento dos caminhoneiros foi “um tiro no pé”. Com a tabela do frete cara para os empresários, muitos decidiram comprar frotas próprias e parar de trabalhar com caminhoneiros autônomos. Além disso, o transporte marítimo cresceu e a retomada da economia brasileira pós-crise foi mais lenta que o esperado.
– Tivemos até uma redução no número de caminhoneiros (após a greve). Faltou frete, faltou volume a ser transportado. Em 2019 a economia não andou na velocidade que o governo previa. Quando assumiu, Bolsonaro previa um PIB com crescimento de até 3,5%, e acabou não acontecendo (o crescimento foi de 1,1%) – avalia Rabaiolli.
Com uma nova crise mundial motivada pelo coronavírus, a situação parece ainda mais distante do sonho de maio de 2018. O volume de cargas ficou menor e a vida dos caminhoneiros piorou.
– O diesel baixou, mas já está subindo de novo, e as transportadoras baixaram o preço do frete durante a pandemia. Não teve ganho nenhum para o caminhoneiro. E nessa crise a oferta do frete é muito pouca. O autônomo não está conseguindo dar manutenção adequada para o caminhão viajar. O caminhoneiro está se arrastando. O pessoal não entendeu lá em Brasília, mesmo com muitas e muitas reuniões, como que funciona o custo mínimo de um caminhão – lamenta o presidente do Sindicam-SC, Francisco Biazotto.