Crimes comuns, corrupção e Democracia*

Publicado em
27 de Janeiro de 2017
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Fernão Lara Mesquita, em texto publicado pelo Estadão de 06.12.16 (“Como por o Brasil sob nova direção”), entende que “Prender ladrões é preciso. Sempre. Mas pretender ocultar, com isso, a existência das corporações que controlam o Congresso para cavar e manter privilégios legalizados, entre as quais as do Judiciário e do Ministério Público (grifos meus), têm lugar de destaque e a devastação que esses privilégios produzem nas contas nacionais está longe de ser um procedimento honesto (grifos meus) ou mesmo razoável, pois é esse o rombo que está levando o País ao naufrágio”.

E a desonestidade, segundo André Lara Resende (1), “no grau que se vê hoje no Brasil, reflete perda generalizada de confiança e de espírito público, ativos de difícil recuperação” (grifos meus). “Ao contrário da ciência e da tecnologia, em que ocorrem momentos de ruptura, verdadeiras revoluções que pautaram a humanidade, não existe tal coisa na ética. Não há um momento súbito de regeneração em que padrões de comportamento ou de aderência a certas normas sejam mudados da noite para o dia” (grifos meus), disse o economista e filósofo Eduardo Giannetti da Fonseca, no seminário “A revolução do novo”, promovido pelas revistas Exame e Veja, ocorrido dia 17 último em São Paulo. 

O que se sabe é que ainda impera, no Brasil, a arcaica visão patrimonialista, pela qual dirigentes de altas patentes (políticos, executivos públicos e também privados) administram o patrimônio público como se fosse privado e, acima dos direitos da sociedade como um todo, protegem e defendem seus interesses particulares, assim como daqueles que os mantêm no poder.

No último dia 10, em texto escrito para O Globo, o historiador Marco Antônio Villa comenta que o crime organizado tem progredido no Brasil, diante do fato de que “em boa parte dos estados, Executivo, Legislativo e Judiciário são territórios controlados com mão de ferro por poderosas famílias” (grifos meus). E conclui, “em muitas unidades da Federação, não há mais dissociação entre a elite política e os chefes das organizações criminosas. Eles estão presentes no Executivo, elegem deputados e têm influência no Judiciário — neste poder teriam, inclusive, comprado benesses (2), como a recente denúncia de que no Amazonas o preço de uma decisão sobre a concessão de prisão domiciliar custaria R$ 200 mil”.

“O prenúncio do caos” foi a matéria escrita pelo jornalista Diogo Schelp e publicada na revista Veja do último dia 11. Analisando a ‘imagem da semana’ (três cidadãos de bem espancando um ladrão, pego por eles mesmos, em flagrante ao tentar roubar banhistas nas praias do Rio de Janeiro), Schelp comentou: “dá para entender que os cidadãos estejam indignados, fartos e revoltados. Mas quando eles assumem o papel simultâneo de polícia e Justiça, é o prenúncio de que a sociedade caminha para o caos”. Grifos meus. 

É comum ouvir, diante dos massacres ocorridos nos presídios brasileiros, mesmo da boca de gente boa, que “bandido bom é bandido morto”, que “nessas rebeliões só morreram bandidos”, que “se estavam nas prisões é porque mereciam” etc. etc.

Ainda na mesma revista Veja, também aqui citada, como que para ilustrar o atual espírito dos brasileiros, reproduziu-se a frase dita pelo ex-primeiro ministro britânico, Winston Churcill, em 1910: “A moderação e o estado de espírito do povo quanto ao tratamento dado ao crime e aos criminosos são uma das provas mais irrefutáveis da civilidade de uma nação” (grifos meus).

Diante dessas manchetes, o que se nota é que o Brasil, se de um lado tem uma parte considerável da classe dirigente (empresários e governantes dos três poderes) envolvida com a corrupção e trabalhando só para si, de outro tem um grande contingente da população cada vez mais dependente do poder público, mas, crescentemente, intolerante e ressentida com tudo o que aí está (3). E não só com relação à falta de progresso e ao desemprego, mas também com a desordem e a violência, que imperam num País no qual, ao que parece, está valendo a lei do mais forte. Ou, como disse Marco Antônio Villa, em texto já citado: “Os cidadãos não passam de reféns dos oligarcas que transformaram os estados em fontes de riqueza privada”.

Roberto Pompeu de Toledo (revista Veja desta semana) simplifica: “quem juntar os pontos, entre um grupo e o outro (grupos de criminosos que controlam as penitenciárias de um lado e grupos de políticos que comandam a corrupção no Estado brasileiro de outro), poderá concluir que à esbórnia em Brasília corresponde a esbórnia nas prisões. Na mesma linha pode achar que os baixos escalões da sociedade refletem os altos, ou vice-versa”. E, “afinando”, ele escreve: ”a conclusão seria que, se não existisse a esbórnia de Brasília, não haveria sequer como começar a esbórnia nas prisões”.

Portanto, essa insatisfação generalizada e a própria dificuldade de se aceitar uma sociedade que, se nada for feito, tende a ser cada vez mais desigual e injusta (4) – pelo menos essas são as percepções de uma grande maioria da população brasileira atual – criam ambientes férteis para a ocorrência de conflitos que, em algum momento, poderão se tornar insolúveis, a não ser pela ‘via revolucionária’ (5), posto que são cada vez mais radicais e violentos. 

Lamentavelmente, este momento difícil não é exclusividade apenas do Brasil, vale salientar, pois não é à toa que em grande parte do mundo, e como característica do início deste século, as chamadas classes dirigentes têm enfrentando movimentos crescentes de rebeldia e contestação que, invariavelmente, tem colocado as autoridades constituídas em questionamento.

Zygmunt Bauman, sociólogo francês, recentemente falecido e considerado um dos mais respeitados intelectuais em todo o mundo, em seu livro “Estado de Crise” (Zahar, março/16), resume o atual momento mundial: “os governos estão cada vez mais impotentes para gerenciar crises e, os cidadãos mais insatisfeitos com os governantes” (grifos meus). Em outro livro, “Babel”, também lançado pela Zahar, em setembro do ano passado, Bauman tratando do tempo em que vivemos, escreve: “um tempo entre o que não é mais e o que ainda não é”. É isso que estamos perdendo. Não sabemos como prosseguir (6), embora saibamos que não serão os movimentos radicais, xenófobos, racistas ou populistas, os responsáveis por quaisquer tipos de solução que nos tire desse momento extremamente ruim pelo qual passa o mundo atual.

O Brexit (7) e a eleição de Donald Trump são exemplos concretos e recentes desse “novo estado de ânimo”, refletindo, de forma clara e indiscutível, que as atuais classes dominantes não mais conseguem defender e representar os reais interesses da maioria das populações em seus respectivos países, desafiando, sem dúvida, a ordem mundial atual (8), posto que a Globalização, uma de suas principais características, também passa a ser fortemente ameaçada (9).

Diante disso, soluções simplistas não deixam de surgir. E, perigosamente, como sugere a maioria das propostas apresentadas, pois aceita-se, em troca desse triste “status quo”, até o sacrifício da liberdade. Aliás, como concluiu J. R. Guzzo, em artigo aqui já citado: “as pessoas querem o que não têm – e estão com medo de perder o que têm. É a melhor estrada para o tráfego das posturas contra a liberdade” (grifos meus). Os exemplos no Brasil são diversos e sobre eles não pairam dúvidas, pois são comuns movimentos e discursos a favor da intervenção militar, da volta da ditadura, do fechamento do Congresso ou da instalação de governos ‘nada-democráticos’. Da realização de novas eleições, passando pela implantação do parlamentarismo e até a volta da monarquia, tudo parece ser possível (10).

Aproveitando-se do momento, muitos movimentos têm foco no combate ao crime, inclusive com a instalação da pena de morte e de combate às organizações que defendem os direitos humanos. E há outros que, mais radicais e autoritários, na defesa da manutenção da lei, da ordem e dos “bons” costumes, pregam governos fortes e que combatam, de forma rigorosa, todos aqueles que não pensam de forma igual.

Enfim, o Brasil “não pode e não deve correr esse risco e nem, tampouco, criar condições para que o ambiente de insatisfação popular seja ainda maior, no qual os movimentos contrários à Democracia e que se caracterizam ‘pelo cerceamento do pluralismo e pela intolerância ao contraditório’ (11) prosperem”, foi minha conclusão ao escrever artigo (12) sobre a falta de emprego no Brasil e o risco, que isso poderá causar à nossa Democracia. 

“Na árida e crua realidade, o progresso verdadeiro resulta do esforço compartilhado e deve estar sempre atrelado ao avanço da liberdade e dos direitos humanos – sem os quais não é o paraíso, mas o inferno que se instala neste mundo que nos coube”. Mario Vargas Llosa, prêmio Nobel de Literatura, para o Estadão de 11/12/16.

(1)    “Há quem escolha não levar vantagem mesmo na ausência de punição para o comportamento incorreto. Referências culturais contam. Há algo na cultura de certos povos que se poderia chamar de capital cívico e que faz a diferença”. Capital cívico, segundo Lara Resende, é estoque de crenças e valores que estimulam a cooperação entre as pessoas.Ainda, segundo esse artigo, “quem faz da desonestidade, um meio de vida, leva em conta os riscos associados à atividade, mas para a maioria das pessoas, que se percebem como honestas, não se trata de um cálculo racional. Queremos ser honestos, mas a propensão para a desonestidade está em todos nós”. (grifos meus). “Mais do que cálculos de custos e benefícios, são os valores da comunidade que restringem, ou não, nossa propensão às práticas desonestas. A impressão de que a desonestidade impera, ajuda a racionalização do comportamento desonesto. Se todos são, ninguém é. A construção do capital cívico é um longo percurso”. Artigo de André Lara Resende – “Corrupção e Capital Cívico”, publicado no jornal O Valor em 31/07/15.

(2)    Como se sabe, comprar medidas provisórias, benesses ou opiniões, não são ‘coisas’ novas. Ralph Waldo Emerson (1803-1882), escritor, ensaísta, poeta e filósofo norte-americano, identificou isso lá pelos ‘idos do século XIX, quando afirmou que “a nossa política cai em mãos erradas, e clérigos e homens refinados, segundo consta, não são pessoas adequadas para servir no Congresso. A política é profissão perniciosa, à semelhança de certos artefatos venenosos. Os homens que estão no poder não têm opiniões, e sua opinião pode ser facilmente comprada, seja qual for o propósito” (grifos meus).

(3)    “Um mundo de angústias” é o nome de excelente artigo do J.R. Guzzo para a revista Veja desta semana, quando resume o fato de que “a perplexidade e a ansiedade dos perdedores da atual ‘sociedade da inteligência (*)’, a multidão de gente que, por mais que se esforce e estude, já sabe que nunca vai chegar lá”. (*) ‘Sociedade da inteligência’, segundo Guzzo, é o momento atualmente vivido pelo ser humano, no qual ele “encontra (através da tecnologia e do desenvolvimento científico) cada vez menos limites para transformar em realidade praticamente tudo aquilo que é capaz de conceber”.

(4)    No caso brasileiro a frase da socióloga Fátima Pacheco Jordão, transcrita pelo economista e jornalista Celso Ming, no Estadão de 25/09/2016 (“Novo foco na corrupção”) vem bem a calhar: “Antes era o rouba, mas faz. Agora é rouba e me nega serviços que paguei a duras penas com impostos”. Ou seja, não há nada para comemorar. Tudo só piorou!

(5)    “Revoluções vêm à tona quando vários ressentimentos diferentes se combinam para tomar de assalto um regime despreparado. Quanto mais ampla for a coalizão revolucionária, maior sua capacidade de destruir padrões da autoridade em vigor. Quanto mais extensa for a mudança, maior será a violência necessária para reconstruir a autoridade, sem a qual a sociedade acabará por se desintegrar”. Ordem Mundial, de Henry Kissinger, publicado em 2015 pela Editora Objetiva.

(6)    Segundo o sociólogo polonês e professor da Londo School of Economics and Politica Science, “o século XXI está caracterizado, até agora, pelo que chamo de “interregno”. É quando percebemos que tudo o que aprendemos, para lidar com os desafios da realidade não funciona mais. As instituições de ação coletiva, o sistema político, o sistema partidário, a forma de organizar a própria vida, as relações com as outras pessoas, ou seja, todas as formas aprendidas de sobrevivência no mundo não funcionam direito mais. E as novas formas, que substituíram as antigas, ainda estão engatinhando”. “Não temos uma visão de longo prazo e nossas ações consistem, principalmente, em reagir às crises mais recentes. Mas as crises também estão mudando”. “As novas manchetes apagam as antigas da memória e, portanto, temos uma total desordem”. (Entrevista realizada em setembro de 2015 pelo Globo Milênio). 

(7)    “A saída britânica da Comunidade Europeia sinaliza que a classe média dos países desenvolvidos está furiosa com a globalização e que o fosso entre gerações nunca foi tão grande”, comenta Nathalia Watkins (“A Decepção dos Ricos”) para a revista Veja de 06.07.16.

(8)    Em artigo escrito para o jornal Bild am Sonntag, neste último domingo, o ministro do Exterior da Alemanha, Sr. Frank-Walter Steinmeier, afirmou que “com a eleição de Donald Trump, o velho mundo do século 20 ficou definitivamente para trás” (grifos meus). E que “o mundo deve se preparar para tempos agitados, pois nestes tempos de desordem mundial, muito mais está em jogo”. "Qual ordem vai se impor no século 21, como será o mundo de amanhã, isso não está definido, é algo que está totalmente em aberto." Steinmeier reiterou que o governo alemão buscará o diálogo com o novo presidente dos Estados Unidos e deixará claro seus interesses, posições e valores, tais como o "livre-comércio, intercâmbio e um mundo aberto, união contra o extremismo e terrorismo, uma cooperação transatlântica estreita e com confiança, baseada em valores comuns, fazem parte das prioridades da nossa agenda".

Já no último sábado, Angela Merkel, chanceler alemã, foi mais cautelosa: "A relação transatlântica não será menos importante nos próximos anos do que foi no passado. Isso vale para a ordem econômica internacional e o comércio e também para a defesa. Vou trabalhar para isso" (Notícias UOL.com.br) 

(9)    Com base em pesquisas realizadas, entre os dias 15/05 a 15/06/16, junto a mais de 20 mil pessoas de 18 diferentes países, o Instituto Latinobarômetro constatou que apenas 32% dos brasileiros se mostraram de acordo com a democracia, diante da afirmação de que “a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo”. Uma, das outras opções, era que “em algumas circunstâncias, um governo autoritário pode ser preferível”. Ainda, segundo o relatório, o apoio à democracia no Brasil teve queda de 22 pontos percentuais no último ano, alcançado a segunda maior queda entre os países pesquisados. E que 75% dos brasileiros não confiam ou confiam pouco no Congresso Nacional. E resumiu: “As percepções sobre economia são de agitação na América Latina, não nos níveis vistos na primeira metade da última década, mas com tendência crescente. Dados de 2016 refletem uma baixa em satisfação econômica, em ingresso de renda e em otimismo econômico, bem como um aumento na insegurança no trabalho, a falta de comida e pessimismo econômico. Esses fatores, somados à queda de apoio à democracia, à manutenção, sem grandes alterações, do autoritarismo político, bem como o surgimento da corrupção como problema principal em vários países e o aumento da violência e a sua conscientização, em suas múltiplas formas, levam à conclusão de que o ano de 2016 combina elementos negativos que se fortalecem em matéria política e econômica”. (Informe 2016, publicação da Corporação Latinobarômetro, instituto de pesquisa chileno).   

(10)    Albert Fishlow, economista e cientista político, para o Estadão de 17.07.2016: “O que está ameaçado em todas essas questões e em outras mais, é o futuro da globalização econômica e política (grifos meus) como objetivo central nos últimos 70 anos, desde a fundação de instituições internacionais como ONU, Banco Mundial e FMI. O mundo voltará a ser construído por unidades nacionais competitivas e divididas, ou será que a integração global sobreviverá e ganhará mais vigor?”.

(11)    “Eles (os movimentos populistas) desprezam as instituições democráticas, nem pensam em conciliar interesses contrários aos seus e se apresentam como únicos representantes do ‘povo real’”. “O Risco Populista”, texto escrito pelo jornalista Rodrigo Burgarelli, para o Caderno Aliás do Estadão de 08/11/17.

(12)    “Democracia e Emprego”, artigo de Paulo Roberto Guedes, publicado no Portal Guia do TRC do último dia 18.

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