Artigo publicado por Paulo Roberto Guedes – 07.01.2024
Em épocas de final e começo de ano são comuns artigos e textos comentando tudo o que aconteceu no ano que passou e quais são as perspectivas para o ano que começa. E isso em todos os campos da atividade humana. Acredito ser um costume de especial importância, pois, quando bem-feito, além de realizar um balanço e uma análise crítica do que se fez – ou foi deixado de fazer – ainda estabelece perspectivas mais realistas do que ‘poderá’ vir.
Como são muitos aqueles que se dedicam a isso, em todos os temas e com muito mais competência, preferi, como primeiro artigo do ano, comentar sobre um dos três temas que há muito me deixam ‘desconfortável’, pois os considero de fundamental importância para que se tenha uma sociedade mais segura, melhor e digna. Questões, sem dúvida, de sobrevivência, na medida em que, sem solução, pouco restará ao ser humano e à sociedade. Refiro-me à dificuldade, cada vez maior, de se defender o Estado Democrático de Direito, ao ‘descuido’ persistente com relação aos problemas do clima e do meio-ambiente e, infelizmente, no aumento da concentração de renda e da desigualdade. No mundo e mais especificamente no Brasil.
Já escrevi sobre esses temas algumas vezes (1), mas neste começo de ano acredito ser essencial, mesmo que superficialmente e sem quaisquer pretensões de esgotar o assunto, comentar sobre o problema da ‘desigualdade brasileira’, pois não é novidade para ninguém que o Brasil ainda figura entre os primeiros do mundo em desigualdade de renda. O índice GINI brasileiro de 2022, igual a 0,5183, está bem distante do número 1 e, portanto, indicando um alto nível de desigualdade. Vale lembrar que o Brasil já chegou a 0,6471 em 1989. Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), relativos ao ano de 2022, dão conta, inclusive, que brancos tiveram um rendimento do trabalho 87,6% maior do que negros. Essas estatísticas são divulgadas pelo IBGE desde 2012 e indicam, como se vê, uma teimosa persistência da desigualdade.
Está claro que a desigualdade somente tem aumentado desde então e são várias as explicações para isso. Mas não somente na renda (2), pois as desigualdades no mercado de trabalho, na educação (3) - incluindo-se aqui o pouco empenho com relação ao ‘ensino profissionalizante’ (4), no sistema habitacional ou nas creches, na infraestrutura geral, no saneamento básico e na água potável, na distribuição de justiça (5) e na saúde, principalmente mais recentemente quando se colocou em dúvida a importância do sistema de vacinação brasileiro (6), também se fazem presentes na realidade atual da sociedade brasileira.
Consequentemente, número cada vez maior de pessoas passaram a viver sem emprego, sem moradias dignas, sem saneamento, com saúde precária, sem segurança, sem educação, desnutrida (7) e vivendo em condições de máxima pobreza. Segundo estudos realizados pela Fundação Getúlio Vargas, 3.132 municípios brasileiros, isto é, 56% do total, têm uma população com renda média abaixo da linha da pobreza (R$ 497 mensais). Estima-se, consequentemente, que cerca de 63 milhões de brasileiros “vivam em situação de pobreza”.
Dentre as diversas explicações para esse aumento de desigualdade, vale ressaltar, está o aumento na desigualdade que ocorre na primeira infância. Estudo específico, realizado pela professora e diretora Marcia Castro, do Programa de Estudos do Brasil de Harvard, e pelo professor do Insper e da FEA-USP, Naercio Menezes, dá conta que “a primeira infância é um período crucial no ciclo da vida das pessoas, em que são constituídos os seus padrões de desenvolvimento físico, emocional, intelectual e social”. Não há qualquer dúvida que “é neste período que muitas crianças brasileiras de famílias mais vulneráveis apresentam os maiores riscos de mortalidade infantil, desnutrição crônica e atrasos de desenvolvimento, que podem levar à baixa escolaridade e gravidez na adolescência e perda de capital humano para o país”. Artigo correspondente foi publicado no Estadão de 25.05.2023 (8).
Também é óbvio que a situação política/social/econômica brasileira (“nós x eles”, legislativo extremamente conservador, voltado aos seus próprios interesses e, na maioria das vezes omisso, altíssimos índices de desemprego, queda acentuada do poder aquisitivo das populações mais pobres, e os impactos da pandemia) e a atuação ‘desastrada’ de governos incapazes, negacionistas e desinteressados nesses assuntos, e que ‘destruíram’ quase que a totalidade da estrutura de políticas sociais existentes até então, direcionadas principalmente para as camadas mais carentes da população, contribuíram muito para que a situação da desigualdade, em todos os ‘campos’ se agravasse.
E esse agravamento ocorreu até mesmo nas regiões de maior desenvolvimento, como é o caso do Centro-Oeste brasileiro, diante do sucesso gerado pelas atividades agroindustriais (9), pois “mesmo dentro de um município próspero, o fantasma da desigualdade aparece”, uma vez que, como acontece dezenas de vezes, de nada adianta destinar recursos que não contribuam, direta ou indiretamente, para que esse processo perverso deixe de avançar. De nada adianta, como exemplo, a inauguração de um hospital ou posto de saúde caso não existam médicos, equipamentos para a realização de exames ou estruturas mínimas de atendimento médico-hospitalar.
Segundo o economista Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central, o foco está errado e, muitas das vezes, não adianta obrigar o governo a investir mais (10) se isso é feito de forma incorreta ou injusta. Como exemplo ele cita o fato de que se um “governo pega um dinheiro que poderia aplicar em escola e constrói um aeroporto”, ele está aumentando a desigualdade. E conclui Loyola: “a chave para enfrentar a desigualdade é investimento na qualidade da educação e no gerenciamento do ensino”.
Muito se comenta que no Brasil não faltam recursos para se combater a desigualdade. O problema, ao que nos parece, está na falta de planejamento (11) e na forma incorreta de se utilizar os recursos disponíveis, pois infelizmente, “quem determina a aplicação do dinheiro da coletividade recolhido como impostos são os governantes que, quase sempre, se sentem proprietários do recurso público”. Além do que, aliados a uma grande parte do empresariado brasileiro retroalimentam a continuidade do processo de concentração de renda e aumento da desigualdade, na medida em que se perde “a noção dos limites do que é público e do que é privado” (12).
Como comentado, muito já se escreveu sobre o fato de que o Brasil não é um país pobre, pois com uma natureza privilegiada e um povo trabalhador, tem condições de produzir ‘muito’ do que precisa. Mesmo assim, a grande maioria de sua população vive na pobreza. “Essa realidade socioeconômica do País deve levar a um profundo realismo na vida pública. Especialmente porque as pessoas que exercem o poder, seja em que esfera for, raramente pertencem às faixas mais pobres da população. É fácil, portanto, que os problemas reais que afetam a imensa maioria dos brasileiros sejam ignorados ou relegados”, escreveu o Estadão em seu editorial de 14.10.23 (“O Brasil real, com seus problemas reais - Um Estado eficiente, nem grande nem mínimo”). Corretíssimo!
Há muito que se exige maior empenho dos governos de plantão, em todos os seus poderes e esferas, para que seja combatido, de fato e concretamente, as desigualdades que caracterizam nosso País desde sempre. A injustiça social é um fato que precisa ser discutido de forma séria, pois “a desigualdade pesa historicamente contra os anseios dos brasileiros por dignidade, oportunidade, prosperidade e crescimento econômico com justa distribuição de seus benefícios” (“Por um país menos desigual”, artigo publicado pelo Estadão dia 10.09.23).
O Estado e quaisquer de seus governos, deveriam cuidar de toda a população e trabalhar para atender todos os cidadãos, independentemente de sua cor, gênero, raça ou religião. Aliás, como prevê a Constituição em seu artigo 3º (13). Sem qualquer discriminação. Mas, sem dúvida, atendendo preferencialmente aqueles mais necessitados que, como descrevemos aqui, vivem em condições lamentáveis. Infelizmente não é o que se vê quando se analisam as políticas adotadas pelos governos brasileiros que ultimamente tem ‘governado’ o Brasil. Insisto: o poder tem servido outros interesses, que não os da maioria da população brasileira.
A agenda para a reunião anual do Fórum Econômico Mundial, que ocorrerá entre os dias 15 e 19 de janeiro deste ano, na cidade de Davos, concentra-se, principalmente, na “reconstrução da confiança numa era de mudanças rápidas e de maior fragmentação”. O que se coloca como necessário é a retomada da confiança no futuro, nas sociedades e entre as nações. E dentre alguns dos pontos a serem observados, está a necessidade de se ter mais crescimento e mais empregos (grifos meus), numa época de “instabilidade geopolítica, crise climática e evolução da inteligência artificial”. Para tanto, espera-se que governos, empresas e sociedade civil trabalhem “em conjunto e de forma criativa” para se evitar períodos de baixo crescimento e sem perspectivas de melhoras (grifos meus).
Os demais pontos de observação do Fórum são: mais segurança e cooperação, inteligência artificial como instrumento de desenvolvimento da sociedade e da economia, e o desenvolvimento de estratégias de longo prazo para o clima, a natureza e a energia. Faz parte desse conjunto de observações, a busca da “neutralidade carbônica e acesso inclusivo à energia, aos alimentos e à água”.
Pois é, como se vê, é preciso fazer a economia crescer, gerar empregos e criar perspectivas de melhoras, pois independentemente das ideologias e posições partidárias, é fundamental que todos os agentes econômicos discutam os problemas nacionais e pressionem o governo e a sociedade a realizar uma forte e séria revisão de tudo aquilo que já se fez até agora. É essencial que se elabore e se desenvolva uma proposta convergente e que tenha como objetivos maiores, o bem-estar coletivo, a proteção do meio-ambiente e a defesa da Democracia. São temas prioritários.
Mais especificamente, com relação à concentração de renda e ao aumento da desigualdade, volto a repetir: “não é possível acreditar que em um País como o Brasil, no qual os índices de concentração de renda e de desigualdade só tem aumentado, o desequilíbrio fiscal e a consequente destruição da capacidade de investimentos do governo se deram por conta dos mais pobres e desempregados. Ou por causa dos benefícios sociais existentes. Sem dúvida, a crise não foi criada por essa parcela significativa da população brasileira”.
(1) “Combate à pandemia, à desigualdade e ao desemprego ainda são nossa prioridade” (GTRC de 13.07.20); “Proteção da vida ainda é prioridade. Sem isso nada mais será resolvido satisfatoriamente no País” (GTRC de 05.11.21); “A responsabilidade social das empresas neste mundo cada vez mais incerto” (GTRC de 23.03.22); “Imprescindível e urgente, a melhoria do processo de distribuição de rendas é responsabilidade de todos nós” (GTRC de 27.09.22); “Agora, mais do que nunca, é preciso realizar mais e melhor” (GTRC de 23.10.23). GTRC é o Guia do Transporte Rodoviário de Cargas;
(2) O próprio relatório produzido pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), de 2022 (“Pobreza Multidimensional na Infância e Adolescência”), mostra quanto é grave e contínuo o processo que “priva, dos direitos fundamentais, crianças e adolescentes pobres”.
Se claro está o problema social criado, é fato que essa “omissão condena milhões de brasileiros a viverem na pobreza durante seus anos de formação e sem perspectivas para a vida adulta” (Estadão de 27.10.23, “Uma geração condenada”). Vale ressaltar que “dentre as dimensões analisadas pelo Unicef, nenhuma privação se aprofundou tão escandalosamente quanto o direito à alfabetização” (grifos meus). Os dados disponíveis indicam que “o porcentual de crianças de 7 anos sem condições de ler e escrever dobrou de 20,5%, em 2019, para 40,3%, em 2022”. Ainda, segundo o editorial do Estadão, “o estudo do Unicef retrata uma tragédia humana e social que, inevitavelmente, afetará o futuro do Brasil como um todo”.
Estudo do Observatório Brasileiro das Desigualdades reitera o consenso existente em torno do acesso à educação pela população pobre e negra como medida essencial para a correção das desigualdades. O fato de 35,7% dos jovens negros de 15 a 17 anos não frequentarem o ensino médio revela que há muito a ser feito pelo poder público (“Por um país menos desigual”, artigo publicado pelo Estadão dia 10.09.23). Não há dúvidas e só não vê quem não quer
(3) Ainda no ano passado, o Observatório Brasileiro das Desigualdades publicou um trabalho, com base na análise combinada de 42 indicadores – sociais e econômicos, quão grande é a distância entre a renda dos mais carentes e aqueles que estão no topo da pirâmide. Aponta, também, a falta de políticas públicas – notadamente no último governo - para proteger os mais carentes. Reitera o relatório, o fato de que “a população mais pobre é prejudicada pelo déficit de serviços públicos em todas as etapas de sua vida”
(4) Em oportuno artigo publicado pelo editorial do Estadão (04.01.2024), “Futuro ameaçado”, fica claro que “serão muito limitadas, para não dizer nulas, as chances de o Brasil experimentar os benefícios de um crescimento econômico mais justo e sustentável num futuro não tão distante enquanto milhões de jovens que compõem a chamada geração nem-nem, isto é, aqueles que não estudam nem trabalham, continuarem a ser negligenciados pelo Estado”. Segundo o IBGE havia, em 2022, quase 11 milhões de jovens brasileiros (entre 15 e 29 anos) sem estudar e sem trabalhar. A geração “nem-nem”. Paulo Tafner, diretor-presidente do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS) não deixa por menos: “são pessoas que vão deixar de produzir por toda uma vida.”
(5) “Os desafios do acesso à justiça no Brasil” é o título de um artigo publicado pelo Antagonista. Nele, a conclusão é clara: “apesar da grande quantidade de advogados no país, o acesso à assistência jurídica ainda é um problema para mais de 50 milhões de brasileiros”, mesmo com “o título de país com a maior proporção de advogados no mundo, com um profissional para cada 140 habitantes”. São cidadãos brasileiros que “não têm acesso à assistência jurídica fornecida pela Defensoria Pública da União (DPU), ou seja, pela própria justiça brasileira”. As causas? São diversas, mas em especial “a falta de escolaridade, baixa renda da população e uma estrutura pública insuficiente” (06/01/24).
(6) Os índices de imunização contra sarampo, caxumba e rubéola, através da vacina tríplice viral, caíram de 79,9% em 2015 para 62,8% em 2020, enquanto a imunização contra poliomielite passou de 98,3% para 76,1% no mesmo período, segundo informações do PNI - Programa Nacional de Imunizações;
(7) O relatório publicado pela FAO/ONU, agora em 2023 (“The State of Food Security and Nutrition in the World”), mostra que a população brasileira que vive em ‘regime’ de insegurança alimentar, que era de 18,3% no período 2014/2016, passou para 32,8% no período 2020/2022. Isto quer dizer que mais de 70 milhões de brasileiros não se alimentam de acordo com os níveis esperados. Além do que, a “insegurança alimentar severa” – ausência de refeição por pelo menos um dia – saiu, nesse mesmo período de análise, de 1,9% para 9,9%.
(8) “Desigualdades na primeira infância”, Naercio Menezes Filho e Marcia Castro, 25 de maio de 2023). Escreveram eles: “Aqui, as experiências na infância são marcadas por desigualdades associadas à raça/cor, gênero, local de moradia, região de origem, religião e outros fatores e contextos em que as crianças nascem e vivem. Crianças pequenas em situação de pobreza extrema estão mais expostas a fatores adversos para o seu desenvolvimento, que incluem o estresse familiar, o abuso ou negligência dos cuidadores, a insegurança alimentar e a exposição à violência. Essas desigualdades também se refletem nas diferentes condições de vida, como acesso ao saneamento básico, tipo de moradia, exposição à poluição, assim como nas oportunidades de acesso e utilização de serviços de saúde, educação e assistência social”;
(9) Percorridos 2,3 mil km, em diversas cidades das regiões do DF, GO e TO, a equipe do Estadão constatou que “a desigualdade social continua visível”. Se em 2020 nosso País assegurava o terceiro lugar dentre os 50 mais desiguais (pesquisa do Banco Mundial), em 2021, “na comparação com 18 nações, subiu para primeiro”. “Os impostos desfizeram o que o Bolsa Família fez”, afirmou Marcelo Neri, economista da FGV”, pois se em 2020 “o Bolsa Família teve uma contribuição na redução da desigualdade”, é fato que o “efeito deletério dos impostos sobre o consumo foi tão forte quanto a transferência de renda”. “Desigualdade resiste em polos atratores de investimento público - Áreas que enriqueceram têm bolsões de miséria”. O Estado de S. Paulo, 17.09.23, jornalista Daniel Weterman;
(10)“As transferências federais para municípios atingiram o recorde de R$ 322 bilhões, um crescimento de 50% em uma década. Nunca se repassou tanto dinheiro público para o interior do País”. O problema é que não se soube “transformar o investimento em capital humano, nas pessoas, numa economia mais forte e inclusiva”. “Desigualdade resiste em polos atratores de investimento público - Áreas que enriqueceram têm bolsões de miséria”. O Estado de S. Paulo, 17.09.23, jornalista Daniel Weterman;
(11)“A privatização do Orçamento público” foi o título de um excelente artigo publicado no Estadão, dia 4 pp, pelo economista Felipe Salto. Nele, Salto explica que “sob uma ótica relativamente moderna, o processo orçamentário deve orientar-se por resultados, e não pela disputa por recursos e carimbos. Contudo, a ausência de planejamento tem levado à privatização do Orçamento público, guiada por interesses cada vez menos associados ao desenvolvimento econômico integrado da Nação. Nem os programas orçamentários são avaliados e melhorados nem o espaço discricionário é usado adequadamente (grifos meus).
(12)“Fome, desigualdade e dinheiro público”, O Estado de S. Paulo, 21.08.23, Amarílio Macêdo, empresário e cofundador e conselheiro do IEDI (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial);
(13)As omissões e negligências do poder público a respeito da desigualdade, descumprem a Constituição de 1988 que, no artigo 3.º, estabelece, entre os objetivos fundamentais da República, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais.