“Não é possível acreditar que em um País como o Brasil, no qual os índices de concentração de renda e de desigualdade só tem aumentado, o desequilíbrio fiscal e a consequente destruição da capacidade de investimentos do governo se deu por conta dos mais pobres ou desempregados. Ou por causa dos benefícios sociais existentes”, escrevia eu em setembro do ano passado ao publicar, aqui mesmo, artigo a respeito (“Saída da crise econômica exige criatividade e receita diferentes”).
Sem se discutir as raízes que caracterizam o País como aqueles que sustentam os maiores índices de desigualdade (1) e de concentração de renda em todo o mundo, parece-me ser importante destacar que, mais nos últimos seis ou sete anos, o agravamento desses índices se deu pela diminuição (queda vertiginosa do PIB) e distorção do mercado de trabalho instalado (2), responsável pelo aumento do desemprego, principalmente das pessoas menos capacitadas, com menor índice de escolaridade e menos preparadas para os desafios dos ‘novos tempos’ (3). Aliás a educação, essencial para contribuir na minimização desse problema, há muito não é tratada com seriedade exigida.
É óbvio que os problemas atuais não foram gerados somente pelo governo atual. Não há dúvida quanto a isso. Mas a receita preconizada pela equipe econômica do governo atual, jamais se empenhou para dar solução a problemas desse tipo. Mantendo uma sociedade que beneficia alguns poucos privilegiados, continuou a propor e a realizar políticas que, ao favorecer o “deus mercado”, não só diminuía ainda mais as oportunidades para a maioria da população brasileira, como mantinha graus de miséria crescentes (4). Triste cenário, resultado da maior crise econômica, política e social brasileira desde o seu descobrimento.
Portanto, parece não haver qualquer dúvida que o Brasil, nessas condições, terá problemas ainda maiores para enfrentar a crise gerada pela pandemia do Coronavírus, pois a variável “saúde pública”, também não tratada com razoável seriedade, agora faz parte da lista de problemas. Consequentemente, e com toda a certeza, o custo da pandemia, para o País, será maior do que deveria. O descaso de nossos governantes com relação às políticas sociais voltadas à educação, à saúde pública (5) e ao saneamento básico (6) é, inevitavelmente, um fator complicador.
E se considerarmos ainda, com as exceções ministeriais de sempre, o desgoverno atual, a “coisa” ficará muito mais complicada (7) e um desastre maior não está descartado (8).
Como tenho defendido, e continua sendo meu entendimento, não desenvolver políticas que estimulem a geração de empregos foi um erro, pois é claro que as populações sem renda, e portanto mais pobres, são muito mais vulneráveis a quaisquer tipos de doença. Mas isso “são águas passadas” e as políticas voltadas ao crescimento e desenvolvimento econômicos deram vez às políticas de saúde pública, já que agora proteger a vida de todos os brasileiros parece ser prioridade. Infelizmente, e para desespero ainda maior dos economistas que só entendem de finanças, o País terá que gastar muito mais! Para o governo federal um tremendo golpe, posto que defendia, a qualquer custo, o controle das finanças públicas como única e exclusiva prioridade. E agora, com os governos estaduais e municipais tomando providências independentemente dos planos do governo federal, o impasse é ainda maior, pois não há dúvida que essa conta, em algum momento, chegará no Tesouro Nacional. Há quem diga que governadores estão “dando esmolas com o chapéu alheio”.
Mas vale lembrar que as providências – e respectivos gastos - para diminuir os impactos do Coronavírus, ao contrário do que muitos pensam, também ajudará na solução do problema econômico e das finanças do Estado, pois não há dúvida que quanto mais rápido forem as ações, menores serão os impactos negativos da epidemia. Somente pessoas saudáveis (e vivas!) poderão sair às ruas para fazer compras, e consequentemente aumentar a demanda agregada, e trabalhar, colaborando diretamente para o aumento da produção de bens econômicos e serviços e aumento da oferta agregada. Diante de um plano bem elaborado e bem gerido, e sem que se corram riscos de uma “segunda onda”, mais rápido poder-se-á retomar às questões econômicos e de finanças públicas. É impossível prever quando e como terminará a pandemia, mas estudos de diversas instituições acadêmicas e empresariais, tendem a indicar que caso o combate ao Covid-19 não se faça com eficácia, a economia ficará de tal forma desorganizada (9), que levará o PIB de 2020 e ter uma queda que poderá superar os 5%!
Portanto, parece que há uma certa convergência, inclusive no âmbito mundial (10) – felizmente – entre a maioria dos políticos, empresários, executivos, economistas e especialistas da saúde, que a solução exige o atendimento de pelo menos quatro demandas simultaneamente: a) combate à epidemia, com consequente manutenção das pessoas em casa (distanciamento social), b) manutenção de renda mínima de sobrevivência para as pessoas mais pobres, desempregadas ou que trabalhavam na informalidade (11), c) amparo às empresas, notadamente às pequenas e médias, para pagarem suas folhas salariais e manterem os postos de trabalho, e d) estratégia para retorno paulatino ao trabalho.
E se o Estado moderno é aquele que, no momento adequado e preciso, consegue criar oportunidades para todos, busca a justiça social e se ocupa do bem-estar de toda a população, o sistema democrático exige que quaisquer e eventuais ônus de uma sociedade, sejam divididos entre todos. E se isso é inerente à Democracia, pagar mais, quem tem mais, é necessário, pagar menos que tem menos é fundamental, e não pagar nada, e se necessário até receber, quem nada tem, é essencial.
Quero acreditar que as últimas atitudes do governo federal, meio contrariado é verdade, e um pouco atrasadas, estão a indicar que se está aproveitando o momento para aprender e fazer o Brasil sair da crise mais digno. Dizem que quando não se aprende no amor, aprende-se na dor. Assim seja!
(1) Comentário do coordenador de Trabalho e Rendimento do IBGE, Cimar Azeredo: “O Brasil tem um histórico de desigualdade bastante elevado e a pesquisa mostra que o problema persiste” (entrevista publicada pela Folha de São Paulo, dia 16 último). Nessa mesma reportagem, com base na opinião de diversos outros especialistas, conclui: “esse problema é fruto de fatores históricos e estruturais mas, também, do patrimonialismo que se apodera de recursos estatais e empregos públicos, políticas sociais voltadas a grupos que menos precisam e uma estrutura tributária regressiva, que cobra proporcionalmente mais impostos de quem ganha menos” (grifos meus).
(2) A forma como se administrou o Brasil, principalmente a partir dos últimos governos, fortaleceu quatro características indesejáveis: (i) aumento exagerado do déficit público, (ii) aumento da desigualdade e da concentração de renda, (iii) oferta de empregos muito menor do que a demanda e (iv) serviços públicos precários e insatisfatórios.
(3) Dados da Pesquisa Nacional para Amostra de Domicílio Continuada (PNADC), realizada pelo IBGE, indicam que em 2019 o Brasil tinha 12,6 milhões de desempregados, 7 milhões de subocupados, 8 milhões que não trabalhavam por diversos motivos (força potencial) e 4,8 milhões de desalentados. Esse contingente, de 32,3 milhões de pessoas, é 91,3% maior do que o de 2014!
A pesquisa também mostrou que a diferença de rendimentos entre pobres e ricos, no Brasil, é cada vez maior. O índice de desigualdade tem aumentado, sendo que a população 1% mais rica ganha cerca de 34 vezes mais do que ganham os 50% mais pobres. Somente em 2018, ainda segundo a pesquisa, os 10% mais pobres tiveram uma queda de 3,2% em seus rendimentos, enquanto o 1% mais rico teve sua renda aumentada em 8,4%. Importante ressaltar que a falta de instrução tem contribuído para que as pessoas ganhem menos. Enquanto os assalariados com formação Superior Completa recebem em média, R$ 4.997,00 por mês, assalariados sem instrução recebem apenas R$ 856,00. Quase 83% menos! A desigualdade, medido pelo Índice GINI em 2018 (quanto mais próximo de 1, mais desigual) foi de 0,625. No 2º trimestre de 2019 aumentou para 0,627 (Brasil é o 10º país, no mundo, em desigualdade social);
Dos 27,3 milhões de brasileiros vivendo com menos de um salário mínimo (R$ 998,00) em 2019, 41,4% não tinham qualquer nível de instrução e 18,7% apenas tinham concluído o ensino fundamental (dados do IBGE).
(4) Segundo dados do IBGE (SIS-Síntese dos Indicadores Sociais), em 2014 o Brasil tinha 45,8 milhões de pessoas (22% da população) vivendo “abaixo da linha de pobreza” e 9,0 milhões (4,4% da população) vivendo em “extrema pobreza”. Em 2018 esses percentuais, respectivamente, aumentaram para 25,3% e 6,5% do total da população brasileira. São 52,5 milhões vivendo abaixo da linha de pobreza e 13,5 milhões em extrema pobreza. Estudos do IBGE indicam que, caso o Brasil consiga crescer 2,5% aa, e desde que o processo de concentração de renda não se deteriore ainda mais, somente em 2.030 o contingente de miseráveis (aqueles que vivem abaixo da linha de pobreza) ficará no mesmo nível de 2.014.
Abaixo da linha de pobreza estão as pessoas que vivem com R$ 440,00 por mês, segundo critérios do Banco Mundial, cuja conversão da moeda se dá pelo método ‘paridade de poder de compra’. Vivendo em extrema pobreza são as pessoas que vivem com US$ 1,90 por dia (ou R$ 145,00 mensais), incluindo aqui, o recebimento do Bolsa Família. Os critérios são os mesmos descritos anteriormente;
(5) Dados publicados no Panorama de Saúde 2019, pelo OCDE, dão conta que o Brasil, entre os 44 países desenvolvidos e emergentes pesquisados, está na 37ª, quando se analisam os gastos ‘per-capita’ em saúde. Enquanto o Brasil gasta em média, cerca de US$ 1.282 per capita ao ano, a média nos países da OCDE é de US$ 4.000 (Estadão de 21.11.19);
(6) Segundo o Ranking do Saneamento Básico de 2020 (Instituto Trata Brasil e GO Associados), cerca de 16,4% dos brasileiros não tem acesso ao abastecimento de água (mais ou menos 35 milhões de pessoas) e 46,9% não dispõem de cobertura de coleta de esgoto (cerca de 100 milhões de pessoas).
(7) Após o governo petista, que conseguiu desestruturar a economia e a sociedade, colocando em risco todas as conquistas obtidas desde a redemocratização do Brasil, o País anda teve o “azar” (ou a incompetência) de eleger um governo de extrema direita, excessivamente conservador e obscurantista. Se antes tínhamos o “nós contra eles”, agora temos o “eles contra nós”, numa interminável gangorra cujo equilíbrio está longe de ser alcançado. Parece ser obrigatório alinhar-se a um ou a outro.
(8) Em artigo publicado no Estadão do último dia 2, o cientista político e historiador José Murilo de Carvalho, membro da ABL, ele não titubeia a dizer que o atual ‘Caminho pode ser a ruptura política’. Escreveu Murilo: “Desde 2015, com anúncio em 2013, já me parecia que o País tinha entrado em uma crise econômica e social que apontava para sua inviabilização como nação capaz de prover vida decente para toda a população. A sensação de fracasso acentua-se hoje com mais duas calamidades, a da eleição de 2018 e a pandemia do coronavírus. Grandes crises exigem liderança nacional sensata, competente, confiável e patriótica. Não é o que temos visto. A se manter o cenário atual, não vejo como se possa evitar um desastre econômico, social e humanitário. É um caminho que pode levar à ruptura política.”
(9) Informações do Instituto de Finanças Internacionais indicam que no mês de Março passado, investidores de todo o mundo transferiram cerca de US$ 83,3 bilhões dos países emergentes, o Brasil entre eles, para os mercados considerados mais seguros. O motivo? Principalmente o tratamento dado ao ‘coronavírus’. Especificamente no Brasil, a fuga líquida de dólares, no mês de março último, mesmo sem considerar os dois últimos dias do mês, já é recorde: cerca de US$ 13,4 bilhões segundo dados do BCB.
(10) Representantes da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Fundo Monetário Internacional (FMI), neste último dia 03, respectivamente o diretor geral Tedros Ghebreyesus e a diretora gerente Kristina Georgieva, emitiram pronunciamentos nos quais salientaram a fundamental importância, no momento atual e para todos os países, de se adotar medidas que contemplem a proteção da vida das pessoas e de apoio financeiro às populações mais pobres.
(11) Segundo dados de 2019, produzidos pelo PNAD, a informalidade já atinge 20,3 milhões de pessoas (19,2% da população com mais de14 anos inserida na força de trabalho), enquanto a quantidade de trabalhadores não contribuintes do sistema previdenciário alcançam os 34,7 milhões (32,8%).