Classe Dirigente, Constituinte, Eleições e Sociedade Civil - Parte III*

Publicado em
27 de Julho de 2018
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Se, como concluído na Parte II deste texto, a política ainda continuará gerando mais dúvidas do que certezas, posto que é impossível maiores avanços enquanto o poder político estiver centralizado nas mãos da parte corrupta e incapaz da classe dirigente brasileira, torna-se cada vez mais importante o papel da sociedade civil organizada da qual fazem parte as entidades de classe, as associações empresariais e/ou sindicais estabelecidas. Obviamente, desde que mudem o seu comportamento.

É fato que a crise mundial, entre outras consequências importantes, gerou fortes questionamentos sobre a globalização e a democracia representativa. A dúvida quanto a real capacidade de cumprimento de seus papéis, também se dá no âmbito das diversas organizações que compõem a ‘tal’ sociedade civil organizada. Não há dúvidas que estão em “cheque”, por exemplo, entidades internacionais como ONU (Organização das Nações Unidas), OEA (Organização dos Estados Americanos), OMC (Organização Mundial do Comércio, OIT (Organização Internacional do Trabalho) ou OTAN (Organização do Atlântico Norte). Mas o mesmo pode ser dito para muitas das associações e organizações nacionais, incluindo-se aí os Partidos Políticos, uma vez que grande parte deles, fechados e voltados para si mesmos, não conseguem canalizar, correta e fielmente, os novos interesses e as novas demandas de seus representados, muito menos os interesses mais amplos da própria sociedade na qual funcionam. Outra característica, principalmente com relação ao Brasil, é a perpetuação do poder nas mãos dos mesmos de sempre. Não por serem os mesmos, mas por não alterarem suas atitudes e praticarem sempre as mesmas ineficientes e ineficazes políticas. Não criam nada de novo e apenas repetem os mesmos erros. O que vem ocorrendo nas negociações político-partidárias, às vésperas das próximas eleições brasileiras, é exemplo único e bem acabado de tudo isso, onde o que menos importa são os problemas da sociedade brasileira.

Pesquisa feita pela Folha de São Paulo, junto a 114 confederações e federações de agricultura, indústria, comércio e transportes do Brasil, ilustra muito bem essa “paralisia” de qualquer processo de evolução esperado. Publicada na edição de 22 pp, a pesquisa constata a existência de um “sistema envelhecido, com baixa rotatividade e diversidade, cada vez mais político, e sobre o qual pairam suspeitas de nepotismo, desvio de recursos e corrupção”. De 99 entidades nas quais foi possível obter dados, 41 presidentes já ultrapassaram oito anos no cargo (equivalente a um mandato de quatro anos e uma reeleição), sendo que 17 deles estão há mais de vinte anos no comando. “O sistema sindical patronal se tornou um trampolim eleitoral”, complementa o texto da Folha.

Ressalto, uma vez mais, observação que reputo de suma importância para a correta compreensão deste tipo de crítica: não se discute a idade desses dirigentes, posto que, assim como há idosos modernos, há jovens antigos. E nem a modernidade, tampouco a antiguidade têm exclusividades sobre o bem ou o mal. Eleger candidatos jovens, ou postos como “novos” na política, mas que praticam a “velha” política, clientelista, populista (no pior sentido da palavra) e do “toma-lá-dá-cá”, não resolve o problema. A carência é de dirigentes com mentalidade mais aberta, democrática, que cria oportunidades a quem chega e que, sem os defeitos mostrados pela pesquisa feita pela Folha, mas totalmente ‘renovados’, procuram fazer coisas diferentes para alcançar resultados melhores e se ocupam, de fato, com os reais problemas brasileiros. Aqui a palavra renovação deve ser entendida simplesmente como atividade de mudar para melhor.

Por consequência, é impossível querer que a “Política” e os políticos se renovem, considerando que nossa sociedade civil organizada continue a mesma e fazendo tudo do mesmo jeito, ignorando a existência de um mundo novo e em circunstâncias – como no caso o Brasil – totalmente adversas. Não se pode mais admitir que as diversas entidades que fazem parte da sociedade civil apenas discutam e defendam (a qualquer custo e seja lá qual for o meio) seus próprios interesses, por mais justos que sejam, e não participem ou contribuam para solucionar os problemas maiores do País. É muito confortável ir à Brasília pleitear, seja lá o que for para sua classe e, uma vez atendido, voltar para casa e não se importar com as mazelas e os problemas nacionais que são muito maiores e, sem dúvida, com impactos negativos para suas atividades. Aliás, o que essas entidades menos fazem é criticar ou combater, sejam eles quais forem, os erros e os ‘malfeitos’ cometidos por seus “apadrinhados” que labutam em qualquer setor do serviço público, pois é com eles – os “apadrinhados” - que se buscam as soluções, as “dicas” e os “jeitinhos” para resolverem unicamente seus próprios problemas. Até pelo contrário, quando menos se espera ainda os condecoram com a máxima honraria do setor ali representado. Parece não perceberem – por ignorância ou má-fé – que ao não se dar soluções mais estruturais, esses mesmos problemas voltarão. Isto se até lá nada de pior acontecer!

Não é sem motivo que esses “apadrinhados”, instalados no setor público, constituem uma das maiores, se não a maior, força no Congresso Nacional e se aproveitam, sempre que possível, para chantagear os poderes nacionais em troca de mais e ‘perpétuos’ benefícios. Segundo o jornalista José Nêumanne, esses servidores públicos constituem “o baronato das castas que a Nação sustenta”.

Em agosto de 2006, portanto há quase 12 anos, escrevi um artigo para o Jornal de Alphaville (“Pragmatismo e Eleições”) para criticar o comportamento dúbio das classes empresariais que, ao contribuírem para as campanhas políticas elas acendiam uma vela para Deus e outras para os Diabos. O texto procurava mostrar que essas contribuições tinham, como único e principal objetivo, manter suas empresas, grupos de interesses ou associações, ‘de bem’ com os políticos e governos de plantão, independentemente de suas ideologias, de seus programas partidários, valores éticos e morais. Buscava-se, na verdade, ter condições para, no futuro, cobrar vantagens específicas aos seus interesses e projetos particulares. Este tipo de relacionamento, entre os setores público e privado, foi a forma encontrada por grupos bem definidos (empresas amigas do poder), à esquerda, ao centro ou à direita, para privilegiarem suas empresas. A corrupção, como bem vem demonstrando as operações Lava Jato e Zelotes, transformou-se em componente indispensável para que esse “tal de pragmatismo” fosse realizado de forma eficiente. O texto ainda criticava um pensamento razoavelmente dominante em grande parte da classe dirigente, mas que muitos “populares” também gostam de repetir, no qual a culpa pelos erros cometidos ao se escolher maus políticos era exclusivamente do povo, que não sabe votar.

A esse respeito, especificamente, o ex-presidente do IPEA, Jessé Sousa, em seu livro “Subcidadania brasileira – para entender o país além do jeitinho brasileiro” (Editora Leya- 2018), é bastante contundente: “O Brasil não é o país pré-moderno, do patrimonialismo, da corrupção apenas do Estado e da política, das relações pessoais e do “jeitinho brasileiro” que a pseudociência moralista de fachada inventou. Essa interpretação só passou a ser a dominante porque torna invisível tanto o saque do trabalho coletivo de todas as classes, via salários achatados e lucros e juros escorchantes, quanto a captura do Estado e do orçamento público, em favor da elite dos donos do mercado” (grifos meus).

É natural que o desgoverno, a crise atual (o desemprego e a crise fiscal, ainda não equacionados, estão se transformando em verdadeiras “bombas”, prontas para explodirem a qualquer momento), a exagerada quantidade de leis, uma Constituição ultrapassada e que privilegia apenas aqueles que tem poder, a inexistência de verdadeiros líderes, parte da classe dirigente somente se preocupando com seus próprios problemas, não nos faz acreditar em dias melhores no futuro mais próximo.

 

E quando se analisam os discursos e as propostas de todos os candidatos que se apresentam para as próximas eleições - de presidente a deputado – observam-se, além de muita mentira, descompromisso com os reais interesses da sociedade brasileira e profundo desconhecimento dos problemas que envolvem nossa economia. Exemplo ilustrativo ocorreu nesta semana, quando foi noticiado que o bloco parlamentar do Centrão decidiu apoiar Geraldo Alckmin. Ora, essa aliança nada mais é do que dar continuidade a tudo o que de ruim vem acontecendo no Brasil nas últimas décadas: a política do “toma-lá-dá-cá”, das trocas de favores, das nomeações políticas e, inclusive, da descontinuidade das principais investigações sobre corrupção, tais como a Lava Jato e a Zelotes. E ainda pior: o “tal do mercado” reagiu positivamente à essa aliança!

 

Não é à toa que a grande maioria da população brasileira, confusa e descrente da própria Democracia (fenômeno que tem alcançado inúmeros países ocidentais em todo o mundo), deixou de confiar na política, nos políticos, nos partidos políticos, na maioria das instituições e na maioria das lideranças dos setores público e privado. Mesmo não sabendo exatamente o que fazer, mas negando quase tudo o que aí está, tende a se aproximar, perigosamente, das posições mais radicais e extremas possíveis.

E se é preciso reverter esse quadro, é preciso, antes de tudo, reconhecer de forma clara e objetiva, as causas de nossos problemas que, sem dúvida, exigirá que tenhamos uma percepção correta e mais apropriada da sociedade brasileira. O falecido jornalista Paulo Francis dizia que “esperança de adulto se inicia a partir do conhecimento da realidade”. Jessé Souza, em livro aqui citado, é taxativo ao dizer que “uma sociedade se transforma quando a percebemos de modo mais verdadeiro e crítico”. É preciso, portanto, reconhecer que parte significativa da classe dirigente brasileira, corrupta, tomou o Estado para si e, independentemente do governo de plantão, tem buscando manter seus privilégios e a concentração do poder em suas mãos. Há que se reconhecer que o Brasil é um País desigual, tem um Estado falido e com uma parte substancial de sua população e de suas empresas ainda acreditando no Estado onipotente e provedor máximo e total. Quando deveria ser o contrário: ao viver sua maior crise o Brasil exige a contribuição e a ajuda de todos, pois muita coisa precisa ser refeita.

Nesse breve diagnóstico, e para que não se perca o foco, não se pode deixar de lado, portanto, o ‘enviesado’ sistema político brasileiro que, enquanto for mantido, jamais permitirá que esse conluio entre interesses privados, públicos e corporativistas, seja rompido. E assim como os políticos, as associações e instituições que nos representam, seja como profissionais ou como empresas, de trabalhadores ou patronais, precisam mudar. Esclarecer a seus representados a respeito do que está em jogo e colaborar para desenvolver soluções para o País, mais do que necessário, é preciso para “preservar os dedos”.

Esta parte da sociedade civil ainda não “contaminada”, e para não “perder o bonde da história”, tem obrigação de fazer as coisas de forma diferente, sem conluios, sem recorrer ao “jeitinho brasileiro” e à “baixa política”. É fundamental estimular seus representados para que pratiquem o ‘compliance’ e a boa governança e, imprescindível, que jamais abram mão da legalidade e dos valores morais, éticos e do direito que, por transcenderem a nós mesmos, pertencem a toda a sociedade. É preciso acreditar que o crescimento e o desenvolvimento pessoal, profissional ou empresarial ocorrem simultaneamente com o crescimento e o desenvolvimento do País, e não em detrimento destes. Que investir em inovação e produtividade traz muito mais resultados e benefícios para todos, do que ir, insistente e costumeiramente, a Brasília em busca de “favores”.

O mercado globalizado e a chamada era do conhecimento, características indiscutíveis do início deste século, ao contrário do que muitos tem dito, fortalece a “interdependência” entre pessoas, empresas e países. Nas democracias mais avançadas, principalmente, mesmo com a valorização da liberdade individual e da meritocracia, as pessoas cada vez mais se preocupam com o interesse comum, com o interesse da sociedade, pois sabem que é preciso, para viver bem, fazer parte de uma sociedade que também esteja bem. Somos, cada vez mais, “interdependentes”, confirma Ricardo Guimarães, fundador da Thymus, em suas palestras sobre “Evolução” (Empreendedorismo, Inovação, Estratégia e Futuro).

O estímulo e o incentivo para aumento e melhoria da capacidade profissional e pessoal – portanto de pessoas e empresas - é um dos itens fundamentais para que saiamos de uma mentalidade de “dependência” perante o Estado, e nos dirijamos para uma cultura de “interdependência”, na qual o propósito comum manterá o sistema funcionando de forma coesa e disciplinada para a consecução dos objetivos de todos.

O ano de 2018 será um dos mais importantes para o Brasil, pois será decidido se queremos, de fato, renovar a política, o parlamento e acabar com as velhas práticas, ao invés de simplesmente ‘maquiá-las’. Mesmo sabendo da baixa qualidade de nossos políticos (ao comentar sobre o Congresso Nacional, Ulysses Guimarães, ex-presidente da Câmara dos Deputados e ex-presidente da Assembleia Nacional Constituinte de 1988, disse que “pior do que o atual, só o próximo”), é imprescindível entender que não haverá governo, e muito menos Democracia, sem a participação de todos os poderes constituídos.

Escreveu o jornalista Fernão Lara Mesquita: “o Brasil está sonhando com uma ressurreição moral que sabe que não virá”. Embora com tendências a acreditar nessa frase, é preciso ter esperanças, pois sem ela estaremos no fundo do poço e sem condições de voltar. É preciso acreditar que os brasileiros de bem e a sociedade civil organizada tenham condições de contribuir para a elaboração de soluções que levem o Brasil às mudanças necessárias.

O mundo e o Brasil estão mudando e, portanto, é preciso “captar e representar” corretamente esse novo mundo e suas novas aspirações. Slide da palestra de Ricardo Guimarães, aqui já citado, traz uma frase do Papa Francisco que, diante do que aqui foi exposto, faz todo o sentido: “sonho com a transformação da igreja, para que seus costumes, seu estilo, sua linguagem e toda a sua estrutura se converta em um canal adequado à evangelização do mundo atual, mais do que para sua autopreservação” (grifos meus).

Parece-me óbvio, portanto, que se temos dúvidas – e motivos não nos faltam - quanto à capacidade, a idoneidade e a imparcialidade dessa parte da classe dirigente brasileira, algo precisa ser feito. Sem medo de encarar a realidade como de fato ela é, sem medo de fazer o que precisa ser feito, sem compactuar com o “status quo” da política brasileira, sem acreditar na política do “nós e eles” (simplificação medíocre, incorreta e totalmente prejudicial à compreensão da realidade brasileira), sem acreditar no “complexo vira-lata” (inferioridade em que o brasileiro, voluntariamente, se coloca em comparação com o resto do mundo), sem acreditar que o mercado é a solução para todos os males, sem acreditar que o Estado brasileiro é o culpado por tudo e sem acreditar que o povo brasileiro não sabe votar, cabe à sociedade civil organizada, não envolvida nesse processo perverso, papel fundamental. Mas para isso, como já explicitado, é imprescindível uma nova mentalidade na qual a convergência e o interesse e as causas comuns sejam itens inegociáveis.

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