Artigo escrito por Paulo Roberto Guedes – 26.12.2022*
Já há alguns anos eu venho defendendo que empresários e executivos, em quaisquer áreas de atuação, precisam entender que suas ações impactam a vida de milhares de pessoas e que, o mínimo a se esperar de cada um deles, é a capacitação suficiente para isso seja compreendido de forma correta, completa e abrangente.
Compreender a grandiosidade de se trabalhar para a melhoria de vida de todos aqueles que ‘giram’ em torno das empresas – colaboradores/fornecedores ou consumidores/clientes, é fundamental, assim como conhecer os reais impactos gerados junto à toda a sociedade de tudo aquilo que se faz, pois ao final de tudo, de um jeito ou de outro, essas ações geram efeitos – para o bem ou para o mal – para a vida de todos.
Entretanto, mais notadamente no Brasil, não é o que se vê em grande parte das empresas, pois como comentado pela especialista Laura Salles, co-fundadora da startup Plurie br, ao analisar tema extremamente importante como é a “diversidade”, ela chegou à conclusão que o “o discurso e a prática ainda estão distantes nas empresas” e basicamente pela “falta de engajamento dos próprios líderes”. E mais, as “empresas estrangeiras levam o tema com mais seriedade, enquanto no Brasil o discurso ainda é muito raso” (reportagem da jornalista Bianca Zanatta publicada no Estadão do último dia 24).
Vejamos, como exemplo, o avanço tecnológico. Inerente às atividades produtivas a evolução da tecnologia tem gerado impactos na vida dos cidadãos, da sociedade, da economia e também da política. Constata-se, entre os diversos efeitos gerados - melhorias dos processos operacionais entre eles – que há significativa diminuição no número de empregos de menor qualificação e sem a devida correspondência quantitativa no aumento no número de empregos mais qualificados. Novos empregos que, além de exigirem maior conhecimento, capacitação e postura voltada à inovação, não tem contribuido, diferentemente de outras épocas, para o efetivo aumento no número de postos de trabalho.
De fato, a compreensível busca por melhorias operacionais tem exigido aperfeiçoamento, aprendizado e capacitação constantes, mas que tem privilegiado as pessoas melhores formadas. Considerando um país como o Brasil, e com as exceções de sempre, pessoas que na sua maioria pertencem às classes mais ricas da população.
Esse processo, que parece inexorável e persistente, ocorre também nos países desenvolvidos, nos quais as tarefas mecânicas, rotineiras ou que, via avanço tecnológico, são substituídas pelas “máquinas”, vão aumentando a produtividade daqueles que ficam mas, infelizmente, expulsando do mercado de trabalho a mão-de-obra menos qualificada. Esse tipo de “desemprego estrutural”, com impactos econômicos, sociais e políticos significativos, ainda não é devida e corretamente analisado.
Já há 7 anos atrás, e é preciso repetir o que escreveu o economista francês Thomas Piketty, em seu livro “O Capital no Século XXI”. Ao demonstrar com clareza e números reais (foram consolidados números e informações coletadas em vinte países dos últimos duzentos anos) escreveu Piketty: “o crescimento econômico e a difusão do conhecimento ao longo do século XX impediram que se concretizasse o cenário apocalíptico preconizado por Karl Marx, mas, ao contrário do que o otimismo dominante após a Segunda Guerra Mundial costuma sugerir, a estrutura básica do capital e da desigualdade permaneceu relativamente inalterada”, traduzindo-se “numa concentração cada vez maior da riqueza, um círculo vicioso da desigualdade que, a um nível extremo, pode levar a um descontetamento geral e até ameçar os valores democráticos” (grifos meus).
Piketty, entre outras, fez duas outras observações também importantes: 1ª.: “a evolução dinâmica de uma economia de mercado e de propriedade privada, deixada à sua própria sorte, contém forças de convergência importantes, ligadas sobretudo à difusão do conhecimento e das qualificações, mas também forças de divergências vigorosas e potencialmente ameaçadoras para nossas sociedades democráticas e para os valores de justiça social sobre os quais elas se fundam” (grifos meus), e 2ª.: “deve-se sempre desconfiar de qualquer argumento proveniente do determinismo econômico quando o assunto é a distribuição da riqueza e da renda. A história da distribuição da riqueza jamais deixou de ser profundamente política, o que impede sua restrição aos mecanismos puramente econômicos” (grifos meus).
Mais recentemente, afirmou a Diretora Geral do FMI, Christine Lagarde: “o crescimento inclusivo é um dos maiores desafios do nosso tempo”, pois “o lado amargo da nova realidade é que, apesar do crescimento econômico, um número excessivo de pessoas está ficando para trás” (grifos meus). Analisadas as economias mais avançadas, constatou-se uma clara tendência, desde 1990 e até agora, de aumento da desigualdade. “Mas se olharmos para as economias emergentes e em desenvolvimento, o quadro é mais complexo”.
O professor Paul Collier, da Universidade de Oxford, em seu livro “O futuro do capitalismo”, consegue mostrar que o processo de concentração de renda, generalisado em quase todo o mundo, não é inerente ao capitalismo, mas sim a uma “falha de funcionamento que pode e deve ser corrigida”. E, ao contrário de propostas nostálgicas e de retorno ao passado, defendidas por populistas nacionalistas que adotam políticas cada vez mais excludentes, ele sugere a restauração da política e da sociedade inclusiva (grifos meus) como caminho para que se crie um mundo mais ético, no qual o Estado, a Família e a Empresa, desenvolvam papéis igualmente éticos. Corretíssimo!
É certo que além da evolução tecnológica e a forma como evolui o Capitalismo, aqui rapidamente comentados, não são os únicos responsáveis pelo aumento do desemprego e da desigualdade. Uma nova estrutura da força de trabalho (mais mulheres trabalhando, aumento do subemprego e do emprego informal etc.), o descaso com a educação e a destruição das principais políticas sociais, como foi o caso do Brasil nestes últimos quatro anos, a pandemia e a guerra na Ucrânia, também contribuíram para o agravamento desses problemas, aumentando ainda mais as incertezas e a insegurança com relação ao futuro. O Relatório de Desigualdade Global, produzido pela Escola de Economia de Paris, tem indicado que a população 1% mais rica se apropria de cerca de 1/3 dos rendimentos brutos globais, enquanto a população 50% mais pobre fica com apenas 14%.
No Brasil, no terceiro trimestre de 2022, segundo o IPEA, o índice Gini, que mede o grau de concentração de renda de um país (de zero a um, quanto mais próximo de um, maior é a desigualdade), chegou a 0,519.
Número ainda alto, considerando que na grande maioria dos países desenvolvidos o índice não chega a 0,45. No Japão, Canadá, Alemanha, Noruega, Dinamarca e Suécia, por exemplo, esse índice está entre 0,25 e 0,30.
Informações geradas pelo 2.º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, dão conta que 58,7% dos domicílios brasileiros, que representam 125,2 milhões de pessoas, não têm “acesso pleno e permanente de alimentos”, isto é, vivem com ‘insegurança alimentar’. Dentre esses, há 33,1 milhões que, literalmente, ‘passam fome’. Ou seja, em 2022, 15,5% de todos os brasileiros passaram fome, contra 9,0% no último trimestre de 2020. Ainda, segundo o documento, a incidência da segurança alimentar é extremamente mais alta “nas famílias lideradas por mulheres, por pessoas negras ou pardas e por indivíduos com baixa escolaridade”.
Há diversos outros indicadores que ilustram a terrível situação na qual vive a maioria da população brasileira: a) diminuição, na composição de renda total do brasileiro, da participação do salário, substituído crescentemente pelo aumento de receitas oriundas de transferências e benefícios pagos pelo governo em suas diversas formas, o que por si só dificulta ainda mais a busca pelo equilíbrio das finanças públicas; b) aumento no número de domicílios sem renda do trabalho; aumento dos postos de trabalho caracterizados como de “baixa renda, pouca instrução e alta informalidade”.
Uma das deduções, que aqui se coloca, é que além de todos os problemas existentes, o novo governo precisa discutir, urgentemente e de forma correta e permanente, propostas que combatam o desemprego, a desigualdade e a miséria. E que as soluções encontradas, sejam de fato e concretamente implementadas.
Isso, não tenho dúvidas, somente será possível com a participação contínua do conjunto de toda a sociedade que precisa, além de ficar distante das ‘benesses e dos favores’ governamentais, assumir suas reais responsabilidades e compreender, como aqui já foi escrito, que de um jeito ou de outro as ações de cada um afetam – para o bem ou para o mal – a vida de todos.
Como escreveu o diretor regional do SESC São Paulo, Danilo Santos de Miranda a respeito dos resultados apresentados pelo Relatório da Fome: “essa crise da fome deve ser enfrentada por todos os setores que compõem a sociedade (grifos meus), sob a coordenação do poder público”. “Sem calibragem das políticas de proteção social e atenção à inclusão produtiva, parte do Brasil seguirá sem chances de prosperar”, complementou sobre o mesmo assunto, Solange Monteiro, em artigo específico publicado na revista Conjuntura Econômica de agosto de 2022 (“Combate à Pobreza”).
Como ficou demonstrado, principalmente nestes últimos quatro anos aqui no Brasil, a sociedade civil mobilizou-se na defesa da Democracia e do Estado de Direito, mas também precisará atuar e pressionar os governos, em todas as esferas e níveis de poder, para que se busquem soluções urgentes no sentido de se amenizar, pelo menos, os problemas que afligem, e de longo tempo, a grande maioria da população brasileira, sem o que, nada mais terá importância.
Portanto, assim como são inegociáveis os valores democráticos, também devem ser as políticas públicas que promovem o crescimento econômico, o emprego e a educação e combatam a desigualdade e a miséria, sob pena de, caso isso não ocorra, tudo ser perdido. Não é uma discussão ideológica, mas a simples compreensão de que Democracia e Estado de Direito, imprescindíveis, somente serão mantidos quando alcançados em sua plenitude e valendo para todos. Tarefa árdua que, espera-se, faça parte da agenda do novo governo a ser instalado à partir do próximo dia primeiro.
Queira-se ou não, as discussões sobre política, sociedade e economia chegaram à mesa de discussão de todos e ninguém poderá ficar de fora. Inclusive e principalmente os empresários e executivos do setor privado. Espero que todos tenham se capacitado e obtido a devida compreensão para enfrentar o momento em que vivemos. Ainda há tempo de se evitar males maiores.