Artigo: É tempo de compliance*

Publicado em
08 de Setembro de 2015
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O grande impacto da “Operação Lava Jato” decorre do fato de, pela primeira vez, estar sendo aplicada, em todos os seus aspectos, uma legislação recente, aprovada no calor das grandes manifestações públicas de junho de 2013 e como resposta a elas. Refiro-me às Leis 12.846, de 01/08/13 e 12.850, de 02/08/13. A primeira também conhecida como Lei Anticorrupção e, a segunda, que regulamentou de modo mais amplo o instituto da colaboração premiada.

É importante salientar que a colaboração (ou delação) premiada – inspirada na legislação italiana – já vinha sendo incorporada ao direito positivo brasileiro, ainda que de modo tímido e incompleto, desde a década de 90, através de diversos diplomas legais, como, por exemplo, as leis  8072/90, crimes hediondos; 8.137/90, crimes contra o sistema financeiro; 9.613/98, combate à lavagem de dinheiro; 9.807/99, proteção a testemunhas; 11.343/06, colaboração premiada especificamente para crimes de tráfico de drogas; 12.529/11, acordo de leniência para crimes contra a ordem econômica.

A despeito de todos esses importantes precedentes, o certo é que foi a Lei 12.850/13 que acabou por regulamentar e sistematizar todo o procedimento da delação, que se revela imprescindível à desarticulação de qualquer organização criminosa. Não por acaso, a lei fundamental da máfia siciliana sempre foi a omertá, ou lei do silêncio, cujo descumprimento era punido, invariavelmente, com a morte. Daí o mérito excepcional do magistrado italiano Giovanni Falcone, que conduziu a famosa “Operação Mãos Limpas”. Levar um criminoso a delatar seus comparsas é tarefa muito difícil em qualquer parte do mundo; fazer isso na Itália dos anos 90, completamente infiltrada e dominada pela máfia, foi realmente um ato de coragem, uma façanha inspiradora.

Voltando ao Brasil da segunda década do século XXI, a Lei Anticorrupção é outro instrumento valiosíssimo que só agora começa a mostrar todo o seu potencial. Ela expõe as pessoas jurídicas a punições pesadíssimas, caso participem em ações de corrupção de agentes públicos, independentemente da responsabilidade civil e criminal das pessoas físicas de seus dirigentes. Entre outras sanções altamente desestimuladoras da prática dos ilícitos que visa combater, aquela lei prevê multas que podem chegar a 20% do faturamento bruto da empresa no ano anterior. Oferece, em contrapartida, a possibilidade de “acordos de leniência”, que podem amenizar as punições, desde que as empresas envolvidas confessem seus atos de corrupção e colaborem com as investigações. Mecanismo inteligente, já que, na maior parte dos casos acaba sendo o único caminho para que a empresa não feche as portas e, por envolver a confissão de culpa, torna efetiva e rápida a punição, evitando a eternização da discussão judicial.

Na verdade, tanto a delação premiada como os acordos de leniência são novidades mesmo para a maioria das grandes bancas de advocacia do país. Acompanhando de longe o que se passa em Curitiba e no STF, fico com a impressão que magistrados e promotores estão sempre um passo à frente dos advogados, que parecem ainda atônitos e pouco à vontade com as consequências práticas daquelas inovações, que, além do mais, reduzem o espaço para manobras processuais e recursos protelatórios.

Pior que tudo para os advogados, por conta do sigilo necessário que cerca a maior parte desses procedimentos, é que os defensores ficam “no escuro” por um longo tempo, sem saber exatamente do quê os seus clientes são acusados, o que ensejará, com certeza, alegações de cerceamento de defesa, que poderão eventualmente invalidar todo o processo, ou partes dele.

Sob este aspecto, aliás, é importante que a corda não seja esticada além do razoável para que o tiro não saia pela culatra. É verdade que estamos vivendo tempos novos e promissores no combate à corrupção, mas ainda somos – e queremos continuar a ser – um Estado de Direito, o que pressupõe o respeito às garantias constitucionais do direito de defesa e do devido processo legal.

E é preciso que seja assim, para que a “Operação Lava Jato”, além de chegar ao fim como processo, impondo as punições devidas a todos os culpados, possa cumprir o papel civilizatório que dela se espera, inaugurando uma nova etapa da nossa vida republicana, em que a administração pública, o parlamento, os partidos políticos e a atividade empresarial possam cumprir suas finalidades, respeitando seus espaços e limites de atuação, para que não se contaminem reciprocamente. E para que o jogo político, de um lado, e o jogo do mercado, de outro, possam se dar com absoluto respeito às regras postas, em ambientes decentes, limpos, em que seja impossível o contubérnio entre o público e o privado.

Como visto, os marcos legais para tanto já existem. Os processos resultantes da “Operação Lava Jato” oferecerão uma nova geração de precedentes jurisprudenciais que iluminarão o caminho dos operadores do Direito e, com certeza, dos empresários, principalmente daqueles que fazem negócios com o Estado, mas não apenas o deles.

Na verdade, como sabemos, a corrupção não é algo que existe apenas nas relações com o Estado, mas também nas relações entre agentes privados. Infelizmente, o mundo dos negócios, salvo honrosas exceções, também não vive sob o império da ética. Apesar das dificuldades crescentes impostas pela legislação e pelos tratados internacionais, que visam a impedir a lavagem de dinheiro, o “caixa 2” e outros subterfúgios, o certo é que ainda há muita propina e muito pagamento “por fora” nas relações entre particulares. E a vítima, nesses casos, não é apenas o fisco, mas o próprio mercado, na medida em que tudo isso resulta, em última análise, em concorrência desleal.

Não dá para acabar com a corrupção envolvendo o setor público sem acabar com a corrupção que envolve, desde sempre, o setor privado; as grandes e também as pequenas malandragens que parecem entranhadas na alma nacional. Tia Zulmira, personagem do imortal Stanislaw Ponte Preta, tinha uma máxima que de certa forma explicita isso: “instaure-se a moralidade ou locupletemo-nos todos”. Como a moralidade nunca foi de fato instaurada entre nós – desde pequenos nos acostumamos a conviver com as transgressões do dia a dia, praticadas impunemente por gente dita de bem – isso acaba funcionando como uma espécie de senha para que todos tentem se dar bem das mais variadas maneiras.

Há no ar uma indisfarçável esperança de que este processo que visa a apurar os desvios de grande monta acontecidos na Petrobrás – envolvendo políticos importantes, alguns dos maiores empresários do país, doleiros, operadores e executivos da estatal – acabe sendo o marco da instauração da moralidade, na medida em que decrete o fim da impunidade. Tudo indica que, pela primeira vez na história do nosso país, a lei vai valer para todos. E, no Brasil, isso não é pouca coisa.

Voltando à Lei Anticorrupção (Lei 12.846/13), é muito significativo o que consta do seu art. 7º, inciso VIII, ao dispor que: “Serão levados em consideração na aplicação das sanções: (...) a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica”.

Em outras palavras, o legislador está indicando o caminho às empresas que operem em setores sensíveis em que, eventualmente, possam ser apanhadas em situações de não conformidade, sujeitando-as às draconianas penalidades previstas no conjunto de leis que hoje tornam muito perigoso o caminho da esperteza. Ele está dizendo, em outras palavras: criem os seus mecanismos de compliance e os coloque para funcionar de fato. Isso será levado em conta na hora de distinguir entre bandidos contumazes e uma empresa decente que, eventualmente, cometeu um erro.

Trata-se de prestigiar o compliance, como requisito para que o acionista e o executivo de qualquer empresa possam dormir tranquilos, ao sinalizarem para toda a organização e para o mercado que há ali um compromisso  de cumprimento integral da legislação de todos os países em que opere.

A vida fora deste ambiente limpo e seguro vai ficando cada vez mais difícil e perigosa para o empresário. É nisso que aposto hoje; que este momento difícil e turbulento que atravessamos seja realmente uma travessia no rumo de um novo tempo – tempo de compliance – em que, como já disse em outro artigo, as pessoas físicas e jurídicas descobrirão que é muito mais vantagem cumprir a lei, porque os custos e os riscos da inconformidade vão se tornando tão elevados, que optar pelo cumprimento da lei representará, antes de tudo, um gesto de inteligência.

Geraldo Vianna é advogado, consultor em Transportes, ex-presidente da NTC&Logística e Diretor da CNT.

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