Artigo publicado por Thiago Sales Pereira
A crise dos transportes rodoviários e a insegurança causada pelo tabelamento do preço dos fretes vêm à tona mais uma vez diante de recentes movimentos no âmbito do Judiciário, da Agência Reguladora (ANTT) e dos próprios caminhoneiros, que após circularem boato de possível nova greve, interditaram parcialmente na última segunda-feira (10/12) a BR-116 (Rodovia Presidente Dutra). Diante disso, surgem questionamentos sobre o que de fato está em vigor e o que pode ser objeto de discussão nas esferas administrativa e judicial.
Na esfera judicial, o mais recente capítulo veio em 12/12, ocasião em que no âmbito da ADI 5.956/DF, o relator, ministro Luiz Fux, revogou medida cautelar deferida cinco dias antes. A partir de então volta a ser possível a aplicação de penalidades de cunho administrativo, ante a vigência da Lei Federal 13. 703/18 e da edição da Resolução ANTT 5.833/18, que dispôs sobre penalidades para hipóteses de descumprimento da fixação de preços de frete. Relembramos que, na origem, a Medida Provisória 832/2018, posteriormente convertida em lei (Lei Federal 13.703/18), foi objeto de Ações Diretas de Inconstitucionalidade, dentre elas a ADI 5.956, na qual havia sido proferido despacho pelo ministro Luiz Fux determinando a suspensão de todos os processos judiciais, individuais ou coletivos, em trâmite no país, cuja discussão envolvesse a inconstitucionalidade ou suspensão de eficácia da Medida Provisória 832/2018 ou da Resolução ANTT 5.820/18, primeira norma administrativa a estabelecer metodologia de cálculo e tabelamento de preços.
Tal decisão fundamentou-se no poder geral de cautela e na aplicação analógica dos artigos 12-F, § 1º, e 21 da Lei 9.868/99 e do artigo 5º, § 3º, da Lei 9.882/99, com menção também a decisões anteriores proferidas nas ADIs 5.353 e 5.409.
Diante disso, questiona-se: haveria fundamento legal para que, em decisão monocrática, sem referendo do Tribunal Pleno, se mantivessem suspensas toda e qualquer outra discussão judicial no país?
A Lei 9.868/99 assegura em seu artigo 12-F, §1º (norma que trata especificamente de medida cautelar em ADI por omissão, ou seja, ação diversa daquela em que proferida a decisão aqui mencionada anteriormente) a possibilidade de suspender processos e procedimentos judiciais e administrativos, desde que por meio de decisão proferida pela maioria absoluta dos membros do STF. O artigo 21 da mesma Lei, no mesmo sentido, dispõe que por decisão da maioria absoluta dos membros do STF é possível suspender o curso de outras ações que envolvam a aplicação de lei que esteja sendo questionada quanto à sua constitucionalidade.
Adiante, a Lei 9.882/99, que trata do Julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, tem nas disposições de seu artigo 5º, § 3º, a previsão de que o STF, por maioria absoluta de seus membros, possa determinar a suspensão de processos em outras instâncias.
Ou seja, a lei tem como regra a decisão por maioria absoluta. Fato é que há previsão legal – não utilizada como fundamento da decisão - contida no artigo 5º, § 1º da Lei 9882/99, no sentido de permitir, por decisão monocrática, a suspensão de todos os outros processos, desde que a circunstância seja de extrema urgência ou perigo de lesão grave, ou ainda caso esteja a ADI em trâmite em período de recesso, desde que tal decisão monocrática seja na sequencia referendada pelo Tribunal Pleno, o que não fora levado a efeito no âmbito da ADI 5.956.
De forma semelhante, o Regimento Interno do STF - citado nos precedentes mencionados na decisão - também contém disposição (artigo 21, V, do RISTF) que determina a submissão de tais decisões monocráticas ao Plenário do STF. Quanto aos precedentes mencionados, verifica-se que na ADI 5.353, há também expressa menção e encaminhamento da decisão para referendo por parte do Plenário do Supremo Tribunal Federal.
Em relação ao Poder Geral de Cautela, a decisão contrariou entendimentos proferidos no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal, um deles esposado pelo então ministro Sepúlveda Pertence, na ADI 223/DF, cujo objeto coincidentemente também versou sobre regramento imposto por medida provisória. Na ocasião, a decisão, com extensa fundamentação, afastou a hipótese de eventual cerceamento da plenitude do exercício da Jurisdição por parte dos magistrados, de forma geral, asseverando que todos eles podem e devem exercer a tutela jurisdicional, especialmente caso entendam pela inconstitucionalidade da regra colocada à discussão.
Há que se considerar o evidente esforço do ministro Luiz Fux ao designar audiências entre as partes, incluindo alguns, mas não todos os terceiros interessados, na tentativa de colher esclarecimentos e conduzir uma composição. No entanto, a condução do problema não parece levar à composição, muito menos à pacificação, posto que: (i) inicialmente, foram suspensas as discussões a respeito da normativa, mas não a sua aplicação; e (ii) agora, recentemente, foi suspensa apenas a aplicação de penalidades.
Pois bem, não obstante as questões de ordem procedimental, acrescenta-se ao cenário o fato de que na decisão não foram levados em consideração precedentes do próprio STF, contrários à prática de fixação de preços quando fixados fora da realidade, sendo alguns deles da Primeira Turma, a qual pertence o ministro Luiz Fux (RE 598.537, AI 683.098-AgR, AI 752.432-AgR, RE 481.110-AgR e AI 631016-AgR-AgR).
Diante disso, de um lado, as normas que versam sobre a fixação de preços de frete seguem em vigor, gerando expectativas de direitos e obrigações, e também tensões nas relações entre prestadores e tomadores de serviço. De outro lado, ficam suspensas em todo o país as discussões judiciais sobre o tema e a aplicação de penalidades.
Nitidamente, são naturais os questionamentos sobre a validade da decisão, mantida sem o referendo do Plenário, ou mesmo sobre a possibilidade de se superar, por meio de composição, as inconstitucionalidades arguidas no âmbito das ADIs que questionaram a MP 832 e na sequencia a Lei Federal 13.703/18. Salta aos olhos a confissão da AGU, ao requerer a revogação da Medida Cautelar, no sentido de que “os canais de participação dos setores interessados serão efetivados ‘pela nova estrutura governamental’”, ou seja, a ANTT exerceu até então seu restrito poder normativo com evidente nulidade. Não suspender a norma, deferindo-se a aplicação de penalidades nela expostas, mesmo após a confissão de nulidade em seu processo de elaboração, mantendo-se, por outro lado, suspensas todas as demais discussões sobre o assunto, a pretexto de obter composição ou mesmo aguardar medidas do Poder Executivo, sem o necessário referendo do Plenário, é circunstância que, salvo melhor juízo, viola, na esfera processual e material, a garantia de acesso ao poder judiciário e, na sequência, de obtenção de uma prestação jurisdicional válida e efetiva. Com tais peculiaridades, seguem a ADI e as angústias de lado a lado.
No âmbito administrativo vale lembrar que as Resoluções que tenham conteúdo normativo autônomo, caráter geral, impessoal e abstrato, e somando-se a isso disponham diretamente sobre normas de índole constitucional, podem, em tese, ser objeto de controle concentrado de constitucionalidade.
Por outro lado, em sentido diverso, aquelas resoluções de natureza regulamentar, isto é, que se apresentam como veículo de execução de lei, ao extrair diretamente de tal norma (lei) seu fundamento de validade, desafiam em tese o controle de legalidade nas hipóteses em que fique aquém, além ou contra a lei da qual deriva. O controle concentrado de constitucionalidade é inviável, posto que a eventual ofensa à CF/88 se releva de forma indireta.
O atendimento ao anseio de questionamento de caráter constitucional pode ser viabilizado por meio do controle difuso em relação à lei da qual se origina a Resolução, demonstrando-se, de forma pragmática, o alcance e os reflexos que estão sendo produzidos na seara de direitos e obrigações de pessoas físicas e jurídicas afetadas por sua aplicação prática.
Caminhando para a hipótese concreta, verifica-se que a Resolução ANTT 5.820/2018, foi editada sob a égide da então vigente Medida Provisória 832/2018, antes de sua posterior conversão em lei, qual seja, a Lei Federal 13.703/18. Tal Resolução sofreu alterações ainda durante a vigência da Medida Provisória 832/2018, ocasião em que se verificou a revogação de seu Anexo I e dos artigos 2-A e 2-B inicialmente por modificação decorrente da Resolução ANTT 5821/2018, que na sequencia foi integralmente revogada pela Resolução ANTT 5822/2018, não havendo publicação de norma posterior que tratasse de tais dispositivos. Vale lembrar que incide em relação ao texto modificado, e posteriormente revogado, a regra da não repristinação prevista no art. 2º, §3º da LINDB.
Após a conversão da Medida Provisória 832/2018 na Lei 13.703/18, a Resolução 5820 teve seus artigos 3-A (Resolução ANTT 5828/2018), 3-B (Resolução ANTT 5833/2018), e anexo II (Resolução ANTT 5835/2018) alterados.
Vale ressaltar que a Resolução ANTT 5820/2018, quando editada, não se submeteu aos ditames de Participação e Controle Social e Análise de Impacto Regulatório exigidos pela Lei de criação da ANTT (Lei Federal n. 10233/2001) em seus artigos 3º, §2º e 3º, e 68, e por seu Regimento Interno (Resolução ANTT 5810/2018 - anexo I) artigos 102 e 103, apesar de sua finalidade se revelar extremamente impactante para os direitos de agentes econômicos e usuários.
Importa também mencionar que a tipificação de condutas e fixação de penalidades trazidas pela Resolução 5833 decorreram de ato unilateral do Diretor Geral da ANTT, até o momento não referendado pela Diretoria Colegiada, o que denota nova ofensa ao Regimento Interno da Agência (Resolução 5.810/18) em seu art.11, incisos XIII e XVII, e à Lei Federal 10.233/2001 Lei de criação da ANTT) em seus artigos 52, 66, 67 e 68, não obstante também todo o possível e pertinente questionamento sobre a validade e eficácia da tentativa de tipificação e mensuração de infrações e penalidades por meio de ato infralegal.
Aos impactados por tais normas cumpre debater e exigir, tecnicamente e dentro da legalidade, atos e provimentos jurisdicionais emanados em obediência a direitos e deveres de ordem processual e material.