Artigo escrito por Paulo Roberto Guedes
Tudo indica que a atual crise gerada pela pandemia do coronavírus em todo o mundo, com quase dois milhões de pessoas contaminadas e cerca de 120 mil vítimas fatais, será uma das doenças de maiores impactos negativos sobre a humanidade nestes tempos modernos. Apenas para contextualização e para que se dimensione corretamente os efeitos da pandemia, e de acordo com informações da Organização Mundial da Saúde (OMS), a Covid-19 mata dez vezes mais que o vírus responsável pela gripe H1N1 que deixou, em 2009, cerca de 18.500 mortos. Infelizmente a pandemia se expande muito rapidamente e ainda não está controlada. Diante das notícias de que muitos governos gostariam de “flexibilizar” o isolamento social, o diretor geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus foi taxativo: “o isolamento social só deve ser flexibilizado quando a transmissão do coronavírus estiver sob controle” (1).
E diferentemente de outras pandemias, principalmente em face da falta de vacina e de remédios específicos, bem como da própria receita geral - “ficar em casa” -, problemas ainda maiores tem sido gerados em todos os países, neste mundo globalizado e interdependente. O Fundo Monetário Internacional (FMI), por exemplo, já estima que além dos problemas de saúde pública, somente neste 2020, mais de 170 países, dentre os 189 países membros, deverão ter quedas acentuadas de seus respectivos PIBs. A diretora geral do FMI, Kristalina Georgieva, ao fazer essa constatação, não teve dúvidas em acreditar que o processo de empobrecimento da população se dará de forma generalizada. Parece claro que consequências ainda maiores, seja sob os pontos de vista econômico, político, social ou geopolítico serão possíveis. A senhora Kristalina informou, ainda, que quase uma centena de países já solicitaram US$ 100 bilhões em financiamentos emergenciais. Pois é, exceto em tempos de guerra, esta talvez seja a maior crise já vivida pela humanidade, cujos efeitos negativos, ainda desconhecidos, ocorrerão em proporções inimagináveis.
À semelhança do que ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, é momento para que todos os países mais desenvolvidos, bem como os organismos internacionais reconhecidamente importantes e funcionais, políticos, científicos e a favor do desenvolvimento, trabalhem juntos na construção de um sistema que, de fato e concretamente, ampare os países mais pobres e propicie melhor e mais justa divisão dos benefícios produzidos em e por todo o mundo. O problema atual é de todos e mesmo considerando práticas egoístas e xenófobas de alguns, as providências precisarão ser globais, pois jamais se viveu uma era tão interdependente como a atual. E em todos os setores da atividade humana, principalmente na tecnologia e na ciência. E se o mundo já era totalmente dependente do desenvolvimento tecnológico e científico, agora mais do que nunca.
Enquanto isso no Brasil, com 23.430 pessoas infectadas e 1.328 mortes (dados acumulados até o dia 13/04/2020, isto é, 48 dias após o surgimento da primeira vítima, em 26/02/2020) e com pico de contaminação previsto, segundo o ministro Mandetta, entre o final de abril e os meses de maio e junho, as discussões, pelo menos para alguns políticos importantes no cenário nacional, parecem estar fora do contexto atual. Tudo é defendido ou atacado de acordo com as melhores conveniências políticas, ou seja, daquilo que é melhor para as eleições deste ano e as de 2022. Embora possa parecer um absurdo, é o que está acontecendo neste país no qual liderança e preocupação efetiva com o bem-estar da sociedade, têm se tornado raridades.
Ao mesmo tempo em que parte do governo federal e seus apoiadores defendem um abrandamento do isolamento social, a maioria de governadores e prefeitos adotam medidas cada vez mais restritivas. Todos defendendo suas razões pessoais, na grande maioria das vezes, aproveitam-se para fazer marketing político e ignoram, quase sempre, os conselhos técnicos, baseados em informações produzidas pela ciência. Até profissionais renomados no campo médico têm-se deixado levar pelas discussões partidárias. Ah, o poder!
Com isso, e lamentavelmente, ainda impera o pensamento “nós contra eles”, e vice-versa, que tantos males tem causado ao Brasil nos últimos vinte anos. Com a população, principalmente aquela mais humilde e/ou desinformada, sem saber no que ou em quem acreditar, parece que chegar-se a um consenso está cada vez mais distante. Perde o país, mais uma vez, uma extraordinária oportunidade para aprender com a crise, superá-la e desenvolver políticas que tenham como principal objetivo, um desenvolvimento sustentável mais justo e igual.
Mas alguém terá que fazer isso em algum momento, pois se algumas políticas de combate ao coronavírus e ao desemprego, mesmo que tardiamente, começam a ser implementadas (2), inclusive com aumento significativo dos gastos públicos, preocupar-se com o “dia seguinte” será um trabalho extremamente árduo e que já deveria ter sido iniciado (3). Classes dirigentes de todos os setores, incluindo principalmente os representantes do Estado, precisam agir nesse sentido. É o Estado o único responsável pela busca, indiscriminada (4), do bem-estar de toda a sociedade.
Em meu último artigo, aqui publicado no dia 06 pp (“Classes dirigentes também aprendem com a dor. Mas, principalmente no Brasil, somente quando são afetadas por ela”), eu escrevi que “parece não haver qualquer dúvida que o Brasil, nessas condições (de extrema desigualdade), terá problemas ainda maiores para enfrentar a crise gerada pela pandemia do coronavírus, pois a variável “saúde pública”, também não tratada com razoável seriedade, agora faz parte da lista de problemas. Consequentemente, e com toda a certeza, o custo da pandemia, para o país, será maior do que deveria. O descaso de nossos governantes com relação às políticas sociais voltadas à educação, à saúde pública e ao saneamento básico é, inevitavelmente, um fator complicador”. É fato que a população brasileira, desempregada, vivendo em favelas, sem saneamento básico ou água potável etc. etc., sofrerá muito mais do que qualquer outra, podendo levar o país a uma situação perigosa.
E mesmo considerando o enorme acréscimo nos gastos públicos (5), a contribuir ainda mais para o aumento do déficit das contas públicas, o equilíbrio fiscal (6), necessário sem dúvida, e principal objetivo (e também principal propaganda eleitoral) deste governo, não poderá ser buscado a qualquer custo, pois quaisquer “apertos” financeiros significativos poderão resultar em lentidão ainda maior no processo de retomada do crescimento da economia. Uma grande, importante e inevitável discussão política.
O professor, ex-presidente do Banco Central e experiente economista Affonso Celso Pastore, ao escrever no Estadão de 12 pp (“Precisamos de ousadia e responsabilidade”) foi claro: “Gastemos agora o que for preciso, resistindo à pressão dos oportunistas, que são muitos, com o compromisso de sermos sérios no futuro”.
E como destacado no parágrafo anterior, com muito controle, principalmente nas transferências de recursos para Estados e Municípios, que como temos visto, às vezes os utilizam para fazer “politicagem”. Até mesmo de forma desonesta.
Infelizmente as dúvidas e as incertezas são muitas. Como tratar ao mesmo tempo, a pandemia e as crises política, social e econômico que se avizinham – no Brasil elas estão presentes já há algum tempo – não tem uma receita pronta e única. Mas preservar vidas tem que ter prioridade, assim como a difusão e o estabelecimento de um novo grau de consciência política, notadamente junto aos nossos governantes (7).
Há muito eu escrevo, sem qualquer pretensão vale frisar, sobre a falta de empregos no país, sobre a exagerada desigualdade e do processo contínuo de concentração de renda, sobre os baixos investimentos em educação, saúde, pesquisa, ciência e segurança, sobre a falta de infraestrutura (toda ela, de transporte, comunicação, energia elétrica e saneamento básico), sobre a falta de políticas de proteção ao meio-ambiente mais efetivas, sobre a corrupção, a desfaçatez da maioria de nossos políticos e da impressionante indiferença com relação aos reais problemas do país, que grande parte de nossos dirigentes, inclusive empresariais, tem. Faltam lideranças políticas e governos sensatos. Problemas que, sem dúvida, ainda precisarão ser colocados em pauta e discutidos seriamente.
Os problemas citados, que foram se acumulando ao longo do tempo e a falta de governos mais séries e honestos, notadamente a partir da senhora Dilma, têm sido uma desgraça para o Brasil, gerando impactos diretos nos números de nossa macroeconomia. O brasileiro, de fato, tem ficado cada vez mais pobre. Mesmo sem o impacto do coronavírus, o país somente alcançaria a renda per capita equivalente à de 2013, em 2024, isto é, 11 anos depois. Com a pandemia, e as expectativas de uma queda no PIB deste ano de cerca de 5% (no mínimo, dependendo do que ainda virá), alcançar a mesma renda per capita de 2013 só será possível depois de 2027. 15 anos parados! Os resultados primários, positivos até 2013 (em 2005 chegou a ficar positivo o equivalente a 3,74% do PIB), ainda ficariam negativos em 2020 e por mais dois ou três anos, mesmo sem coronavírus. Com os gastos do governo (5), oriundos da pandemia, em 2020 o resultado negativo previsto é de 7,5% do PIB. Resultados positivos? Somente por volta de 2027. Evidente que a Dívida Bruta do Governo Geral (51,3% do PIB em 2011) deverá aumentar. Com possibilidades de chegar a 80% do PIB em 2020, agora com o coronavírus ficará próximo dos 93%!!! O que já era ruim, piorou!
É evidente que, assim que a epidemia estiver sob razoável controle e inviabilizada uma “segunda onda”, a economia de todo mundo e em particular a brasileira, terá que ser reorganizada, não devendo ser esquecido que as decisões tomadas hoje é que moldarão e definirão nosso futuro. Esperemos, portanto, que ao fim da pandemia, os problemas mais essenciais do Brasil recebam o “carimbo” de prioridade, ressaltando-se sempre que, apesar das exceções exigidas no momento, sejam preservadas a boa política (difícil neste Brasil), a Democracia e o Estado de Direito, essenciais para que essas discussões cheguem ao fim e ao bom termo.
(1) A “reabertura” das atividades econômicas deverá ser feita com muito cuidado. De forma gradual e seletiva. Gradual para que se possa fazer avaliações corretas e seguras, pois as diferentes regiões – principalmente no Brasil, um país com dimensões continentais - são afetadas também diferentemente pela epidemia, com “curvas de contágio e letalidade” específicas. E seletiva, pois há setores nos quais a retomada deverá ter prioridade com relação a outros.
O Site Poder360, do último dia 15.04.2020, comenta estudo da Universidade Harvard que indica a possibilidade de se manter medidas de distanciamento social até 2022, como forma de se evitar “o risco de uma nova onda de casos do coronavírus”. Disseram ainda os pesquisadores, ser necessário que se realizem diversos testes e se tenha mais tempo para entender melhor o vírus.
A União Europeia, por exemplo, já estabeleceu três indicadores para o relaxamento da quarentena: a) diminuição significativa dos casos, b) disponibilidade de leitos de UTI e c) capacidade de fazer testes nos casos suspeitos.
(2) Observação importante: é preciso mais agilidade e urgência na implantação das diversas providências assumidas. Segundo levantamento do Estadão, somente 28% dos recursos já foram aprovados e estão em processamento ou implementação, 48% ainda carecem de elaboração de MP ou PL por parte do Executivo e 24% aguardam aprovação do Congresso Nacional.
O cadastro para os 600 ou 1.200 reais, que deverá beneficiar 54 milhões de pessoas, só agora nesta semana conseguiu cadastrar 32 milhões para receberem esse auxílio emergencial. Os contratos de trabalho suspensos, com o governo assumindo parte dos salários, segundo a secretaria da Previdência e Trabalho, que deverá alcançar 24,5 milhões de trabalhadores com carteira, beneficiou apenas 1 milhão de pessoas até agora.
(3) O professor de finanças da Universidade de Miami, Paulo Leme (Estadão do último dia 05), faz três observações extremamente pertinentes ao caso: 1ª) revisão do papel do governo na economia, 2ª) funcionamento dos regimes democráticos e 3ª) reconstrução dos mecanismos de cooperação global. E alerta: depois de se colocar tanto dinheiro sob controle dos governos de plantão (calamidade pública enseja isso), “quem vai se beneficiar desses recursos e quem pagará a conta?” E mais, “como encolher de volta o governo ao seu tamanho inicial?”
Como escreveu a jornalista Luciana Dyniewicz em seu artigo (“Crise coloca papel do Estado em discussão”) publicado no Estadão do dia 12 pp: “Além de desencadear a pior crise econômica mundial desde a Grande Depressão, a pandemia da Covid-19 levantou o debate sobre a possibilidade de uma transformação profunda no capitalismo como não se vê desde os anos 1980. Maior presença do Estado na economia pode ser o novo normal, em oposição ao modelo que tem vigorado nos últimos 40 anos”.
(4) Artigos escritos por mim com relação ao assunto: “Quem é o responsável pela realização do bem-estar comum?” (25/10/19); “Estado moderno é aquele que, no momento adequado e preciso consegue criar oportunidades para todos” (21/11/19); e “Sociedades baseadas na responsabilidade social ‘não deixam como está para ver como é que fica”.
(5) Segundo dados divulgados pelo governo, ao longo deste mês, será dispendido o valor equivalente a R$ 568,6 bilhões (7,5% do PIB) para atenuar os efeitos do coronavírus. Nesse valor estão providências voltadas à ajuda aos mais pobres, desempregados, informais, pequenas e médias empresas e à saúde pública. Deve ser observado, portanto, que muitos benefícios não implicam em dinheiro novo, isto é, são antecipações de pagamentos que já estavam previstos no orçamento, como 13º salário dos aposentados e/ou empréstimos financeiros ou suspensão momentânea de alguns impostos. O valor líquido, portanto, é equivalente a R$ 260,9 bilhões (3,4% do PIB).
(6) “É possível que preocupação fiscal volte” é o nome do artigo escrito pelo economista Eduardo Giannetti no Estadão dia 12 pp. Escreveu Gianetti: “Um ponto que é importante é que uma crise como a atual escancara a gravidade da desigualdade. Se há uma coisa que nos fragiliza como nação hoje é o fato de termos milhões de brasileiros em situação precária. A desigualdade é um complicador extraordinário em um momento como esse”.
(7) Escreveu o Cardeal Arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer, no Estadão do dia 11.04: “O coronavírus acabou pondo em xeque as teorias econômicas que não têm por base a justiça e a solidariedade, as ideologias que, obcecadas pela ambição do poder e das vaidades por ele proporcionadas, promovem o ódio cego e a desagregação social. Desmascarou as tendências culturais orientadas pelo individualismo e o egoísmo, obrigando a reconhecer que ninguém, nenhum grupo e nenhum povo consegue ser feliz sozinho, nem resolver seus problemas sem os outros.