A reforma que não houve

Publicado em
06 de Outubro de 2015
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A semana que passou foi marcada pela tão esperada reforma administrativa e ministerial. O anúncio não chegou sequer a ser uma decepção, tantos foram os vazamentos que o precederam. Além de tudo, a nova equipe parece ser ainda mais frágil que a anterior, dando razão à ironia do jornalista IGOR GIELOW (Folha de São Paulo, sábado, 3/10, pág. A-2): “Alento aos liberais, o Brasil é um estado mínimo. Nada acontece”. Claro que o “mínimo”, aqui, não se referia ao tamanho, nem à abrangência de atuação, mas à eficácia, ou à falta dela.

De fato, o nosso país acabou tornando irrelevante o debate ideológico sobre o papel do Estado e sobre o grau de sua intervenção nas relações econômicas e sociais. Porque inventamos o pior dos mundos: um estado enorme, caríssimo e ineficaz; que gera a ilusão de que está atuando, mas o faz de forma tão atabalhoada (quando não mal-intencionada), que o resultado, quando há, é o oposto do que interessa à sociedade. Mesmo a corrupção – que se revela, cada vez mais claramente, como o grande obstáculo à nossa transformação num país moderno e civilizado – é filha dileta da nossa inegável propensão a criar estruturas altamente complexas e ineficientes que, além de conspirarem contra a sua funcionalidade, possibilitam o lucrativo comércio de “facilidades”...

Digo que a corrupção generalizada e endêmica é a grande inimiga do nosso desenvolvimento não tanto em função dos recursos que ela drena – que são oceânicos, como constatamos todos os dias – mas, principalmente, pela destruição do sentido de solidariedade e do senso ético que são pedras angulares da vida em sociedade. Quando vamos aos grandes números, percebemos que as perdas decorrentes da incompetência e do péssimo arranjo do setor público são infinitamente maiores do que as provenientes da corrupção. E ambas explicam a nossa dificuldade de superar o status de país emergente, em que empacamos há tanto tempo.

Temos um Estado inegavelmente disfuncional, seja como República (pelas inúmeras possibilidades de colisão entre os poderes, que são proclamados independentes e harmônicos, mas acabam não sendo nem uma coisa, nem outra), seja como Federação (pela superposição de funções entre União, estados e municípios). São tantas as possibilidades “de algo dar errado” que, por efeito da implacável Lei de Murphy, elas invariavelmente “dão errado”...

A Constituição de 88 trouxe, de fato, avanços extraordinários, no campo dos direitos individuais, da cidadania e da democracia, mas exagerou na dose em muitos outros aspectos, tornando ainda mais travada, onerosa e paquidérmica a máquina pública brasileira, além criar óbices formidáveis à livre iniciativa. Não se trata de ideologia, mas de funcionalidade.

Salta aos olhos que o Brasil terá de passar por um vigoroso processo do que, antigamente, em termos empresariais, chamava-se O&M (organização e métodos). O nome pode ter mudado, mas os objetivos são atualíssimos: encontrar as formas mais racionais, práticas, rápidas e baratas, sem prejuízo da segurança, de se organizar a estrutura, os processos e os fluxos de trabalho de uma organização. Por que não de um país? O nosso, como se sabe, está envelhecendo. Estamos desperdiçando o nosso bônus demográfico. Nesta toada, vamos ficar velhos, antes de ficar ricos. E parece que não aprendemos nada.

Para que (além, óbvio, de arrumar empregos e sinecuras para apaniguados) as nossas estruturas governamentais precisam ser tão complexas, tão pesadas e, até por isso, tão ineficientes? Por que os processos são sempre os mais complicados e onerosos? Até quando vamos atribuir esta sina à nossa herança ibérica, como se isso explicasse tudo? Será que não vamos descobrir nunca que o Estado é meio e não um fim em si mesmo? E que ele não gera riqueza? Não custa relembrar, que, em termos ideais, o Estado apenas se apropria de uma parcela da riqueza produzida pela sociedade, com o compromisso de, em contrapartida, prestar serviços públicos de qualidade, que permitam à nação se desenvolver e oferecer um ambiente seguro e saudável a seus cidadãos, para que estes possam viver, constituir família, criar seus filhos, empreender, produzir e, em última análise, terem a oportunidade de buscar a sua realização pessoal. É claro que não é a isso que temos assistido em nosso país, embora a carga tributária brasileira – que era de 23% do PIB antes da Constituição de 1988 – já tenha atingido a incrível marca de 36% do PIB, uma das mais altas do mundo, somente sendo superada por países de IDH muito elevado.

Não há dúvida de que esta escalada da carga tributária em relação ao PIB acontece pela conjugação dos dois fatores aqui já comentados – de um lado o desperdício gigantesco decorrente das disfunções do Estado e, de outro, o nosso comportamento permissivo em relação ao mau uso do dinheiro público, emitindo para os governantes o sinal errado de que a nossa tolerância é infinita e de que a capacidade contributiva da população é um saco sem fundo. Não foi por outro motivo, aliás, que o novo ministro da Saúde, MARCELO CASTRO (PMDB-PI), por ocasião de sua posse, se aventurou a defender a volta da CPMF, em caráter permanente, com alíquota de 0,2% incidente no débito e no crédito, na prática aumentando-a para 0,4%, quando a proposta do próprio Governo é de apenas 0,2%. A justificativa dele para a proposta (“a população não vai nem sentir a CPMF”) é um verdadeiro deboche.
Está claro que o tímido corte de oito ministérios e as outras medidas cosméticas anunciadas na última 6ª feira estão muito longe de resolver o problema de caixa do Governo Federal. Com raras exceções, os cofres estaduais e municipais também vivem momento de penúria. Portanto, as tentativas de avançar no bolso do contribuinte continuarão a acontecer, por todos os lados, nas três esferas da administração pública. Esta é a grande questão nacional, não o eventual impeachment da Presidente ou a possível cassação do presidente da Câmara dos Deputados. Afastem-se ambos; a turba provavelmente comemorará, como num ululante grito de gol. E, no day after, será assaltada em mais alguns pontos percentuais do PIB, porque tudo continuará como sempre foi.

Esqueçamos o balé de conveniência que é dançado pela classe política e pela grande mídia, numa reedição do panis et circenses com que os nobres de Roma distraiam o populacho. Vamos às causas! É em torno delas que vale a pena mobilizar o Brasil, erguendo um obstáculo instransponível a qualquer nova escalada tributária e obrigando, assim, a um efetivo repensar de toda essa estrutura gigantesca e ineficiente a que chamamos Estado Brasileiro. E não vale fingir que faz isso simplesmente cortando ou adiando investimentos essenciais; cortando ou reduzindo programas sociais indispensáveis. Isso é o que fazem governantes incompetentes e insensíveis, quando acuados pela falta de recursos. E seria um grande retrocesso.

Avançar é, ao contrário, preservar o essencial e cortar o supérfluo, o que não agrega valor, o que só serve ao clientelismo político, ao nepotismo, à busca insaciável por mais e mais mordomias. É acabar com órgãos inteiros, que não fazem a menor diferença, para poder fortalecer outros, que são imprescindíveis. É questionar o tamanho e o custo das casas legislativas, em todos os níveis, desde a quantidade de parlamentares até a de seus assessores e, principalmente, à remuneração de todos eles. É simplificar ao máximo os processos judiciais, reduzindo ao mínimo indispensável a quantidade de recursos e eliminando todas as possibilidades de chicana, de maneira que a Justiça possa ser feita de maneira célere, com observância do direito de defesa e do devido processo legal, por um Judiciário mais enxuto e mais ágil. É reduzir a níveis aceitáveis os proventos escandalosos que ainda são pagos a servidores ativos e inativos de algumas carreiras do serviço público. É liquidar, sem dó nem piedade, privilégios de todos os tipos. E proclamar, como cláusula pétrea, que abusos não podem gerar direitos adquiridos.

Faça-se tudo isso – e muito mais, na mesma direção – e os recursos que hoje faltam, começarão a sobrar, ensejando a prestação de serviços públicos de melhor qualidade, o resgate da dívida pública e a construção de uma sociedade mais equilibrada e mais próspera, sem necessidade aumentar impostos (talvez seja possível até reduzi-los, depois de algum tempo).

Esta, sim, seria uma revolução para qual valeria a pena convocar a população, concentrando nela toda a energia que hoje é despendida nas redes sociais em torno de objetivos menores e sectários, que dividem ao invés de somar, que geram ódio ao invés de esperança. Seria uma revolução semelhante aquela que levou o Rei João Sem-Terra a capitular e assinar a Carta Magna, em 1215, que foi a primeira de todas as constituições conhecidas, arrancada sob a pressão irresistível dos taxpayers ingleses, que não suportavam mais a sanha arrecadatória da Coroa para sustentar guerras malsucedidas contra a França.

Não me escapa o fato de que essas coisas são relativamente fáceis de enunciar, mas de execução dificílima, a não ser sob o comando de verdadeiros estadistas que, infelizmente, escasseiam entre nós. Certamente, para corrigir os engessamentos criados pela Constituição de 88, será preciso mudar as vinculações de recursos, as transferências obrigatórias, a distribuição de rendas e de encargos entre os três níveis de administração; rever todo o sistema tributário, não só para reduzir o seu peso sobre a sociedade, mas principalmente para simplificá-lo. Tudo isso envolve uma reforma constitucional de grande profundidade, que deve também abranger o sistema político, partidário e eleitoral.

Vamos ter de fazer isso de qualquer maneira, mais cedo ou mais tarde. Que seja logo, em respeito aos nossos filhos e netos, e às gerações futuras.

Também não ignoro que mudanças dessa profundidade só são possíveis quando há quebra da ordem constitucional ou quando a crise se torna insuportável, viabilizando o que, em condições normais, seria impensável. Não creio na primeira hipótese, mas acho que a crise atual – com ou sem impeachment, com ou sem cassação de quem quer seja, e com os desdobramentos inevitáveis da Operação Lava Jato – tem características de um tsunami político, diante do qual nada para em pé. É capaz de gerar, portanto, energia suficiente para quebrar a nossa inércia secular e mobilizar vigorosamente a sociedade no sentido de obrigar a nossa classe política a rever de alto a baixo os seus conceitos e as suas prioridades. Com todo o respeito, é preciso que esses senhores e senhoras acordem dos seus devaneios e intrigas palacianas e caiam na real: elas não são o Poder, mas apenas o exercem em nome do seu único titular, o povo brasileiro. E este, definitivamente, anda com a paciência cada vez mais curta.

 

 

Geraldo Vianna é advogado, consultor em Transportes, ex-presidente da NTC&Logística e Diretor da CNT.

 

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