Artigo escrito por Paulo Roberto Guedes*
Pelo menos no mundo ocidental, parece ter se consolidado o pensamento de que a solidez de uma Democracia (1) se faz a partir do combate intransigente à violência, à corrupção, à impunidade e à desigualdade.
E isso não passou despercebido para a sociedade brasileira que, desde os escândalos do Mensalão, aliás como demonstrado pelas pesquisas e pelos movimentos populares realizados, também passou a defender esses valores. Mais tarde, a Operação Lava-Jato reforçou essa postura e os movimentos populares contra a corrupção e a impunidade passaram a ser mais frequentes e vigorosos.
Em março de 2016, diante do elevadíssimo nível de corrupção existente no País, escrevi um artigo (“Pragmatismo eleitoral e marketing político: crimes contra o País”, publicado no linkedin em 23/03/16) para comentar que os crimes de corrupção, além dos males diretos e imediatos gerados, como são os desvios de dinheiro, também causam outros muito mais abrangentes, profundos e duradouros. Não há qualquer dúvida que no caso brasileiro, a clara e nefasta aliança entre interesses públicos e privados, necessária para a realização da corrupção, fez com que os bens públicos fossem apropriados por grupos específicos, orientados apenas por seus próprios interesses. As consequências, como amplamente constatado, na medida em que se ampliavam os benefícios e os privilégios de classes e grupos selecionados, foi o impedimento da competição (2), da inovação e, em resumo, do desenvolvimento do Brasil (3).
Nestes últimos vinte anos, principalmente, mas não se limitando apenas a eles, a corrupção foi institucionalizada e um fortíssimo sistema de conluio entre empresários e autoridades públicas foi instalado. De tal ordem, como explicou Walfrido Warde (4), que gerou “profunda indisciplina jurídica” nas relações entre Estado e empresas, e total inexistência de “regramento democrático”. Não só nas épocas de pré-eleitorais’, notadamente quando as eleições ainda eram financiadas pelo setor empresarial, “mas também de um regramento que se ocupe das pressões inevitáveis que a sociedade civil organizada exerce sobre os governos e os agentes públicos, num contínuo ‘lobby’ pós-eleitoral”.
Consequentemente, para que sejam instaladas políticas sérias de combate a esse tipo de corrupção, além da decisão política, é necessário apoio majoritário da sociedade, rigoroso monitoramento, controle e correção quando necessário. Sempre dentro dos limites constitucionais e da legislação vigente.
Diante dos resultados obtidos, ficou claro que as operações conhecidas como “Mensalão” e “Lava-Jato”, obtiveram sucesso. Muitos poderosos, tanto da sociedade civil como do setor público, depois de prestarem os devidos esclarecimentos à Justiça, foram condenados. Valores significativos de dinheiro – embora muito aquém dos valores desviados - foram devolvidos aos cofres públicos. A Operação Lava-Jato, em particular, foi responsável pela maior investigação sobre corrupção da história brasileira e ‘desnudou’, como já dito, um processo pervertido e criminoso de conluio entre público e privado. Não foi à toa que a Lava Jato, em seus tempos áureos, foi justa e corretamente reconhecida como o maior movimento de combate a crimes praticados por organizações criminosas que, ‘entranhadas’ nos altos escalões do poder brasileiro, público e privado, trabalharam apenas para ‘satisfazer’ suas necessidades particulares.
Mas ficou claro, também, que na medida em que o “cerco” se fechava em torno de todos aqueles que delinquiram, da esquerda, da direita ou do centro, do setor público ou do setor privado, civil ou militar, mais e mais essas operações ‘recrutavam’ inimigos. E ficou nítido também, já à época, os esforços de todos eles para terminar com operações desse tipo. O alvo passou a ser a Lava-Jato.
E se a Operação Lava-Jato, em algum momento, foi útil para tirar o PT do governo (5) e prender alguns políticos ‘selecionados’, ficaram explícitas as movimentações para acabar com ela, uma vez que colocava em risco quase a totalidade dos políticos e partidos brasileiros existentes, bem como integrantes dos demais poderes da República e alguns dos maiores representantes do empresariado nacional. De fato, por diversas vezes houve a movimentação dos principais partidos políticos brasileiros no sentido de encaminhar projetos-de-lei que tivessem como objetivo geral, a redução da autonomia do Ministério Público e/ou da Polícia Federal, e como objetivo específico, o enfraquecimento da Operação Lava-Jato (6).
Vale à pena relembrar as opiniões da jornalista Miriam Leitão e do advogado italiano Antonio Di Pietro, que trabalhou na Operação Mãos Limpas na Itália: escreveu Miriam Leitão na Globo.com, em março de 2016: “Há um ponto em comum dos dois lados dessa batalha final da conflagrada cena política brasileira: inimigos de morte compartilham o mesmo sonho de que a Operação Lava-Jato arrefeça e, se possível, desapareça” (grifos meus). E mais, “Que seja anulada por um erro processual qualquer; que seja desmoralizada (grifos meus). Em entrevista ao Estadão, respondeu Di Pietro (caderno Aliás de 13/03/16): “na Itália foram realizados muitos movimentos no sentido de colocar a opinião pública contra a Operação Mãos Limpas (grifos meus). E para isso, os acusados lançaram diversos argumentos mentirosos e falsos, sobre os processos investigatório e jurídico e diretamente sobre as pessoas que trabalhavam nessa Operação” (grifos meus).
Este governo, que para se eleger aproveitou-se do discurso de combate à corrupção e às organizações criminosas, chegando inclusive a nomear o principal juiz da Lava Jato para o ministério da Justiça, jamais teve interesse em alcançar, de fato e concretamente, esses objetivos. O esvaziamento do COAF, a humilhação e a posterior demissão de Sergio Moro, a intervenção na Polícia Federal e a nomeação do atual Procurador Geral da República, são apenas alguns exemplos que demonstram, na prática, o total abandono das políticas de combate à corrupção (Analisados 180 países, o Índice de Percepção da Corrupção 2020, da Transparência Internacional, coloca o Brasil na 94ª posição. Enquanto a nota média geral foi de 43 pontos, o Brasil alcançou apenas 38).
Na semana que passou, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), por 3 votos a 2, declarou como “suspeito” o ex-juiz Serio Moro nos processos por ele julgados, relativos ao ex-presidente Lula. E ainda ontem o plenário do STF, por 8 votos a 3, reconheceu a incompetência do foro de Curitiba para realizar julgamento de quatro processos do ex-presidente Lula ali instalados (tríplex do Guarujá, sítio de Atibaia, sede do Instituto Lula e Apartamento em S. B. do Campo).
Com relação à suspeição de Moro, com muitos mais ‘ingredientes’ subjetivos (7), aguardemos a decisão do STF, uma vez que, de acordo com o Presidente do Supremo, ministro Luis Fux, essa decisão ainda dependerá das discussões previstas para a semana próxima. A ressaltar que os juízes da 2ª Turma, responsáveis pelos 3 a 2 não admitem rediscussão, pois segundo eles houve correto cumprimento das regras processuais.
Já, com relação à competência do foro correto, julgamento teoricamente mais simples, posto que não se exige qualquer subjetividade, se estava claro, pelo menos para a grande maioria de juristas e especialistas no Direito, e em especial para os juízes do STF, que a Justiça Federal de Curitiba não tinha competência para julgar o ex-presidente Lula, especificamente nesses processos, por que “cargas d’água” se demorou tanto? Por que, após três instâncias e nove juízes diferentes, considerando-se ainda que desde 2016 os advogados de defesa do ex-presidente já argumentavam a esse respeito? Seria apenas por ‘vaidade’ do ex-juiz Sergio Moro que se “auto reconhecia” como o único paladino da justiça no País? Ou havia interesses de não se criar oportunidades para que a defesa do ex-presidente conseguisse mais tempo, inclusive de forma a possibilitar que ele concorresse nas eleições presidenciais de 2018 (8)? Aliás, a esse respeito, o ministro Gilmar Mendes tem falado em “perseguição política específica”. Será verdade ou apenas mais um comentário preparatório para não permitir que outros condenados pela Lava-Jato se aproveitem “sistematicamente” desse mesmo benefício?
Ora, mesmo que se questionem alguns procedimentos dos procuradores da Lava Jato, e esse questionamento deve ser feito sempre, não é possível ignorar que os julgamentos ocorridos até agora foram ‘aprovadas’ em primeira e segunda instâncias, isto é, corroboradas por outras instâncias da Justiça.
Pois é, será que no momento em que Moro e Lava-Jato eram heróis e aplaudidos pela maioria da população e elogiados por grande parte da imprensa, e Lula e o PT eram os demônios, faltou coragem à Justiça brasileira, Corte Suprema à frente, para corrigir tudo o que estava sendo feito incorretamente? Não valeria à pena esclarecer o povo brasileiro do espetacular erro que estava sendo cometido?
E será que agora, quando a Operação Lava-Jato não interessa à mais ninguém, a não ser ao povo brasileiro, já totalmente desestruturada e desorganizada pelo governo federal, ainda é preciso “desmoralizá-la” e tê-la como “suspeita”? Mesmo sabendo que o Lula ainda não foi absolvido, pois não houve discussão quanto ao mérito da ação, e sim avaliação de questões meramente processuais, é possível, prévia e prematuramente, inverter tudo e dizer que Lula é o ‘mocinho’ e Moro e a Lava-Jato são os ‘bandidos’?
O fato é que a decisão do STF devolve os direitos políticos a Lula e o ‘qualifica’, pelo menos até agora, às eleições presidenciais de 2022. Há, também, quem admita que essa decisão produza em “efeitos cascatas”, pois muitos foram julgados pela Lava-Jato de Curitiba. E caso seja julgado como procedente a “suspeição” do ex-juiz Moro, mais complicações à vista surgirão. O presidente do STF, ministro Luiz Fux, disse que “essa decisão não derrui a Operação Lava Jato. É apenas uma decisão referente aos casos específicos a que ela se refere”. Será?
O advogado Sergio Eduardo M. de Alvarenga, em artigo publicado no Estadão do último dia 26 (“Decisões impopulares, essa vaca profana!”), é bastante objetivo a respeito desses dois julgamentos: “ora, se nem nós que militamos na área defendermos o respeito ao Estado de Direito, às leis, às regras processuais, às garantias individuais, quem o fará?”. E segue: “minhas convicções políticas são flexíveis, volúveis, adaptáveis. Variam com o tempo. Condicionam-se a preferências do momento. Às vezes, são vergonhosamente manipuladas por discursos bonitos e cativantes. Não raramente, depois me arrependo das minhas escolhas. Ao contrário do time de futebol de coração, na política é, sim, permitido mudar de lado”. E finaliza: “minhas convicções jurídicas, ao contrário, são sólidas. Frutos de aprendizado na faculdade e quase três décadas de exercício profissional. Sempre as preferirei”.
Pois é, parece que apesar da posição do Dr. Alvarenga, uma grande parte dos advogados, juízes e ministros da justiça também tem flexíveis, volúveis e adaptáveis, suas convicções jurídicas. No que deve acreditar a população que não é formada em direito mas tem, cada vez mais, acompanhado “ao vivo” as discussões dos tribunais de justiça do Brasil? É essa a Justiça capaz de ‘guardar’ a Constituição, dirimir conflitos e manter clima de confiança e segurança jurídica, necessários à estabilidade do Brasil?
A falta de informações corretas, imparciais e fidedignas, aliadas à ignorância, dificultam que fatos sejam compreendidos da forma mais próxima da realidade possível. Isto é, mais próxima da verdade. E com a existência de organizações especializadas na produção - em larga escala - de ‘fake-news’, entender seja lá o que for, fica quase impossível. Imagine-se, então, o nível e a quantidade de divergências existentes quando a análise que se faz está baseada em informações mentirosas, pela metade, incompreensíveis e dúbias, que mesmo aos especialistas causa indignação?
É por esse motivo que todos nós, cidadãos brasileiros (9), fiquemos atentos para todo e qualquer movimento que procure desmoralizar a Operação Lava Jato e interromper sua trajetória. Sempre respeitando o que estabelece o Direito, a Constituição Brasileira e a própria Democracia, a Operação Lava Jato e qualquer outra que combata a corrupção, deve continuar em seu processo investigatório e punir, quando for o caso, seja quem e quantos forem.