A guerra na Ucrânia, a Democracia e a Economia de Mercado

Publicado em
31 de Março de 2022
compartilhe em:
Artigo escrito por Paulo Roberto Guedes – 30.03.2022
 
De fato, o senhor Putin conseguiu transformar a União Europeia em uma nova potência no cenário mundial. Guardadas as devidas proporções, a própria OTAN - Organização do Tratado do Atlântico Norte (1) também tem sido fortalecida em face dos eventos que se sucederam a partir do início da invasão da Ucrânia pela Rússia (2). Rápidas e importantes ações, com razoável grau de eficácia foram tomadas. Sanções contra a Rússia (talvez as maiores da história), fornecimento de armas, ajuda humanitária, distribuição de alimentos, medicamentos e uma série de outros recursos para a Ucrânia, e definição de políticas para recebimento dos milhões de fugitivos ucranianos, foram algumas das providências tomadas, com significativo nível de consenso entre todos os 27 países que participam da UE. Mesmo com o risco de se perder o fornecimento de gás e petróleo vindos da Rússia e que ainda (?) abastecem vários países europeus, a UE fez o que muitos não esperavam. 
 
Apesar do que afirmou o Ministro de Relações Exteriores da Ucrânia, senhor Dmitro Kuleba (“nos últimos dias vimos a UE ter dificuldades para aprovar ações mais contundentes”), a UE parece ter entendido os graves riscos que passaria a correr, caso Putin continuasse avançando como no início do conflito. E, à bem da verdade e por mais incrível que possa parecer, não há quaisquer dúvidas que a invasão russa coloca em ‘xeque’ não somente os valores democráticos, mas a própria Democracia (3) e, no curto prazo, também a Globalização, pelo menos da forma como a conhecemos hoje. 
No parecer da Bloomberg, de 24.03.22, John Micklethwait e Adrian Wooldridge escreveram: “Putin e Xi expuseram a grande ilusão do capitalismo” e “a menos que os EUA e seus aliados se mobilizem para salvá-la, a segunda grande era da globalização está chegando a um fim catastrófico”. Será?
 
Aqui vale lembrar que já a partir da pandemia da Covid-19 começaram a ser criados os primeiros obstáculos à globalização, na medida em que muitos países começaram a entender não ser conveniente depender demasiadamente de produtos e serviços importados. Principalmente àquela época, com relação a produtos e insumos químicos e farmacêuticos, ou oriundos dos países mais contaminados pela doença e com dificuldades de realizarem suas exportações. Fosse pela diminuição efetiva da produção ou mesmo por terem suas estruturas logísticas totalmente desestruturadas. 
 
Outro ponto importante a destacar, foi o aproveitamento que os representantes da Direita mais extrema, ou de um nacionalismo exacerbado e populista, fizeram com relação ao tema, posto que políticas de defesa do mercado interno e de proteção das empresas locais começaram a surgir de forma crescente em todo o mundo.   
 
Acredito que mesmo considerando insumos e produtos mais essenciais, será muito difícil qualquer país ‘viver de forma totalmente independente’. Até porque a própria iniciativa privada, ao decidir sobre investimentos e a rentabilidade de seus negócios, continuará procurando a forma mais eficaz para produzir, inclusive no que diz respeito à escolha e a localização dos mercados consumidores ou fornecedores. Vale lembrar também, que a própria China, totalmente interdependente de quase todo o mundo é, atualmente, o maior protagonista da Globalização. Como muito já se disse a respeito, a melhor resposta aos problemas gerados pela globalização e o excesso de liberalismo econômico (economias sem regras e/ou controles), é buscar uma forma mais eficaz de praticá-los, adaptados às novas realidades e nos quais o combate à desigualdade seja de fato levada à sério.
 
De uma forma geral, todo o mundo ainda se sente inseguro, considerando que não se vislumbra o término do conflito tão breve como se deseja e todos os cenários futuros são de incertezas, inclusive nos campos econômico e financeiro, uma vez que as sanções aplicadas contra a Rússia, neste momento, deverão gerar efeitos colaterais muito rapidamente para todos (4), inclusive o Brasil (5). 
 
Se o Sr. Putin acreditava que a invasão à Ucrânia se concretizaria rapidamente, inclusive com a ‘concordância’ do povo ucraniano (a Ucrânia não é russa, como fez por demonstrar a grande maioria dos ucranianos) e do mundo ocidental, à semelhança do que ocorreu nas invasões da Georgia (2008) e da Criméia (2014), ele errou. E feio. Como escrevi em outro artigo, publicado no Portal do Guia do TRC dia 07 pp (“A invasão da Ucrânia pela Rússia, a Democracia e o Brasil”), a Ucrânia, assim como outros países que eram totalmente influenciados pela antiga União Soviética, optou por ficar mais próxima do mundo ocidental e democrático e “fugir” da influência dos países mais autoritárias do oriente.
 
Em resumo, todo cuidado é pouco, pois como escreveu Thomas Friedman, em reportagem do New York Times publicada no Estadão dia 22 pp (“Plano A de Biden contra plano B de Putin”), caso não possa “ocupar e manter toda a Ucrânia por meios militares e simplesmente impor seus termos de paz” (os noticiários dão conta de que “os russos não têm homens ou equipamentos para tomar a capital Kiev ou outras grandes cidades, tais como Kharkiv e Odessa”), o passo seguinte poderá ser “conduzir 5 milhões ou 10 milhões de refugiados ucranianos, principalmente mulheres, crianças e idosos, para Polônia, Hungria e Europa Ocidental – para criar ônus sociais e econômicos tão intensos que esses Estados da Otan acabarão pressionando Zelenski a concordar com quaisquer termos que Putin exija para parar a guerra”.
 
E mais, escreveu Friedman, “Putin pode sentir que não pode tolerar qualquer tipo de empate ou acordo sujo. Ele pode sentir que qualquer coisa além de uma vitória total é uma humilhação que minaria seu controle autoritário do poder. Nesse caso, ele poderia optar por um plano C” (“ataques aéreos ou com foguetes contra linhas de suprimentos militares ucranianos do outro lado da fronteira com a Polônia” que, como se sabe, faz parte da Otan) ou, na pior das hipóteses, pelo plano D (“lançar armas químicas ou a primeira bomba nuclear desde Nagasaki”). 
 
Adicione-se a tudo isso, os terríveis impactos que serão gerados às economias europeias e aos países, direta ou indiretamente, envolvidos no conflito. Os riscos de recessão na Europa e até mesmo nos EUA não são descartados. Incluem-se, também, os riscos de uma inflação alta e mais duradoura do que outras, posto que haverá significativa desorganização da produção e das estruturas logísticas correspondentes, com destaque para as regiões de conflito. Não há qualquer dúvida, além do mais, que Rússia e Ucrânia ‘viverão’ um grande desastre econômico. 
 
Com Putin, a Rússia parece estar se transformando no grande inimigo mundial e criando condições reais e concretas para uma ruína econômica do País. Com um PIB classificado entre o 9º ou 10º do mundo, a Rússia tem uma economia incapaz de se recuperar no curto-prazo e poderá ter a moratória como uma alternativa necessária, o que complicaria tudo ainda mais. Mesmo considerando eventuais efeitos em terceiros, a maior prejudicada será a Rússia, que pouco – ou nada – terá de ajudas internacionais. Com suas reservas ‘bloqueadas’ e por não ter uma moeda conversível (ou de reserva, como são o dólar, a libra, o euro ou o yen), poderá ficar cada vez mais isolada no mundo. Uma alternativa, que não me parece provável, seria obrigar que o pagamento das exportações russas fossem realizadas em ‘rublos’.
 
Particularmente eu não acreditava que Putin invadisse a Ucrânia. Mas ele invadiu. E em função das circunstâncias atuais, e por mais triste e trágico que seja, a expectativa de se utilizar bombas nucleares continua no radar, pois como escreveu Friedman “ignorá-la como uma possibilidade seria ingênuo ao extremo”. Putin, pelo menos é o que parece, não é uma pessoa que aceita ser humilhado (6) e sua reação, como de praxe é em pessoas desse tipo, será culpar os outros e reagir de forma bastante “explosiva”.
 
O mundo ocidental já sabe que a Democracia, o Estado de Direito e a Economia de Mercado (incluindo aqui o fenômeno da globalização), ainda se mostram como o melhor caminho para a prosperidade global, e que isso somente é possível dentro de um ambiente de segurança e de respeito às instituições mundiais vigentes (7). Mas é preciso reconhecer seus defeitos e criar uma nova ordem, posto que as outras alternativas apresentadas são piores (8). Não menos importante é compreender que se a preservação desses valores dependem da conciliação entre EUA e UE, é essencial não deixar Putin vencer. 
 
Em todo o caso, é preciso viabilizar uma “saída” para Putin. A China, aqui, tem papel fundamental, pois ela não tem qualquer interesse – assim como todo o mundo – em um prolongamento dessa guerra (9), posto que é um país com extrema interdependência à quase todo o mundo ocidental, em termos comerciais, financeiros e econômicos. A China, assim como os EUA e a UE, sabem que expandir a interdependência entre países é uma necessidade estratégica. Ou melhor, geoestratégica. Mas a China, assim como a Rússia, são países muito mais difíceis de se entender e acreditar, posto que são países nos quais o poder de um ditador é ‘significativo ao extremo’.
 
Henry Kissinger, ex-assessor para assuntos internacionais de diversos governos norte-americanos, em seu livro “Ordem Mundial”, publicado pela Objetiva em 2015, escreveu que “uma nova ordem mundial de Estados que afirmem a dignidade individual e uma forma de governo participativa, e que cooperem em âmbito internacional segundo regras previamente acordadas, pode ser o objeto de nossas esperanças e deveria ser motivo de nossa inspiração”. E que para se obter uma “genuína ordem mundial, seus componentes, ainda que mantendo seus próprios valores, precisam adquirir uma segunda cultura que seja global, estrutural e jurídica – um conceito de ordem que transcenda a perspectiva e os ideais de uma única região ou nação” (grifos meus). Não é tarefa fácil, mas deveria ser o objetivo de todos nós, incluindo os estadistas do mundo atual. 
 
(1) A OTAN é uma organização criada com objetivo de defender militarmente, e de forma coletiva, todos os seus associados em caso de ataque externo. Fazem parte da OTAN os EUA, o Canadá e mais 28 países europeus.
 
(2) Está cada vez mais claro que os países europeus, em especial aqueles que pertencem à Otan, vão aumentar seus gastos militares de forma a se fortalecerem e diminuírem o máximo possível a vulnerabilidade da própria organização, notadamente no lado leste da Europa.
 
(3) Putin “falhou em seu objetivo de nos dividir, em minar nossa crença no direito fundamental das nações soberanas de escolherem seu destino e seus aliados”, escreveu no Estadão (17 pp) o Encarregado de Negócios da Embaixada e Consulado dos EUA no Brasil. E finalizou: “na disputa entre democracia e autocracia, soberania e subjugação, não se enganem: a liberdade vai prevalecer”.
 
(4) Em artigo publicado no “braziljournal.com/opinião” (“As sanções contra a Rússia e a nova arquitetura financeira global”), Roberto A. Attuch Jr, ex-diretor do Credit Suisse e do Barclays e fundador da Ohmresearch, escreveu que “o congelamento pelos EUA de parte das reservas russas trouxe a especulação de que o mesmo possa eventualmente acontecer com os US$ 3 trilhões de ativos chineses em títulos americanos. O nível de interdependência e até mesmo simbiose entre as duas maiores economias do mundo nos diz que caso essa possibilidade seja sequer considerada, “all bets are off”. O colapso nos mercados faria 2008 parecer uma brincadeira”, pois dadas as enormes incertezas existentes, tudo “dependerá do futuro político da Rússia e de sua relação com a China. Mas é possível que o uso das sanções financeiras tenha atingido seu ápice e estejamos caminhando para uma nova arquitetura financeira global”.
 
(5) Empresas suspensas na rede Swift (“Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication”), que nada mais é do que um sistema de padronização de comunicação entre bancos, notadamente com relação às transferências de valores, não tem como realizar operações financeiras – e comerciais – com outras empresas, posto que os fluxos financeiros são suspensos. De forma simples: o dinheiro dos importadores brasileiros não chega aos exportadores russos e o Brasil tem mais de 60% dos seus fertilizantes e adubos importados da Rússia. Dados da Secex (Secretaria de Comércio Exterior) indicam que o Brasil, em 2021, importou da Rússia, mercadorias que alcançaram o valor de US$ 5,7 bilhões, com expectativa de, em 2022, elevar esse valor ao dobro.
 
(6) A identidade de Putin e a identidade russa são inseparáveis neste momento. A pergunta de 1 bilhão de rublos é: Como reagirá um homem que passou a vida combatendo sentimentos de vergonha e humilhação quando grande parte do mundo o fizer passar vergonha e humilhação merecidamente? Como um sujeito que passou a vida tentando projetar poder e perspicácia reage quando aparenta cada vez mais enfraquecimento e pouca visão? Foi o que escreveu (“Recuo destruiria frágil identidade pessoal de Putin”) David Brooks para o NYT em artigo traduzido pelo Estadão em 12.03.22 por Guilherme Russo: ”Guerra na Ucrânia está ligada ao status recuperado pelos russos e cultivado pelo Kremlin”.
 
(7) “A disseminação da liberdade econômica continua sendo a melhor garantia da prosperidade global e americana: prosperidade global porque, apesar de todas as suas dificuldades, os últimos 50 anos de globalização enriqueceram a maior parte do mundo; e prosperidade americana porque a prosperidade de seu país depende da segurança de seu país”. E finalizaram: “Construir essa “nova ordem mundial” será um trabalho trabalhoso. Mas a alternativa é uma divisão do mundo em blocos econômicos e políticos hostis” - John Micklethwait e Adrian Wooldridge em artigo aqui já citado.
 
(8) “Por que as autocracias fracassam. Nas funções mais importantes do governo, o autoritarismo tem fraquezas graves” – artigo escrito por David Brooks, traduzido por Guilherme Russo e publicado no Estadão de 19.03.2022.
 
(9) E como escreveu no Estadão dia 14 pp, o Sr. Wang Huiyao, presidente do Center for China and Globalization, “quanto mais a guerra durar, mais revigorará a aliança ocidental em torno da ideia de um confronto de valores entre Oriente e Ocidente, aproximando ainda mais EUA e EU e aumentando os orçamentos militares em todo o mundo”. Ainda, segundo o senhor Wang, “esse cenário não é bom para a China, que prefere manter laços econômicos lucrativos e concentrar seus recursos no desenvolvimento interno”.
 
“O desafio chinês - A cumplicidade com a Rússia pode ter vantagens geoestratégicas para a China, mas é incompatível com a ordem global” é o título do editorial do Estadão do dia 19 pp.: “A China está alinhada com a Rússia em sua hostilidade às democracias liberais. Pouco antes da invasão, ambas declararam uma “amizade calorosa” e “sem limites”. Uma vitória rápida teria servido à China, favorecendo sua narrativa da decadência americana e preparando o cenário para uma invasão a Taiwan. Mas uma combinação da resistência ucraniana, da inaptidão russa e de uma enérgica coordenação ocidental frustrou esses planos” e o “prolongamento da guerra ameaça a globalização econômica na qual a China cresceu espetacularmente nas últimas décadas e aumenta o risco de que ela seja vista como cúmplice de um pária carniceiro – e eventualmente fracassado”. 
Boletim Informativo Guia do TRC
Dicas, novidades e guias de transporte direto em sua caixa de entrada.