Artigo escrito por Paulo Roberto Guedes*
É do meu entendimento que a falta de informações corretas, imparciais e fidedignas, mais a ignorância, dificultam sobremaneira a correta compreensão dos fatos. Com a existência de organizações especializadas na produção - em larga escala - de ‘fake-news’, entender seja lá o que for, fica quase impossível.
Henry Kissinger, em seu livro “Ordem Mundial” (1), escreveu: “mesmo sobre as mesmas e até verdadeiras informações, as pessoas discordam do seu significado e têm compreensões diferentes, seja por ignorância, por conveniência ou mesmo má fé”. Pois é! Qual será, então, a quantidade de divergências existentes quando as análises se fazem sobre informações falsas, mentirosas, pela metade ou dúbias?
Desde os primeiros anos deste século, pelo menos no mundo ocidental, parece ter se consolidado o pensamento de que a solidez de uma Democracia se faz a partir do combate intransigente à violência, à corrupção, à impunidade e à desigualdade.
E isso não passou despercebido para a sociedade brasileira que, desde os escândalos do Mensalão, também passou a defender os mesmos valores, aliás como demonstrado, não só pelas pesquisas realizadas, mas principalmente, pelos movimentos populares que se sucederam. O Petrolão veio reforçar esse pensamento e os movimentos populares contra a corrupção e a impunidade passaram a ser mais frequentes e vigorosos.
No que diz respeito especificamente à corrupção, há, certamente, uma correlação quase linear entre ‘combate à corrupção e valorização da democracia’, como corroborado pelo ministro do STF Celso de Melo, ao comentar a respeito da criminalidade e da delinquência governamental. Disse o ministro, em setembro de 2016, na posse da ministra Carmem Lúcia como presidente da Corte: “tais práticas delituosas – que tanto afetam a estabilidade e a segurança da sociedade, ainda mais quando perpetradas por intermédio de organizações criminosas – enfraquecem as instituições, corrompem os valores da democracia (grifo meu), da ética e da justiça e comprometem a própria sustentabilidade do Estado Democrático de Direito (grifos meus), notadamente nos casos em que os desígnios dos agentes envolvidos guardam homogeneidade, eis que dirigidos, em contexto de criminalidade organizada e de delinquência governamental, a um fim comum, consistente na obtenção, à margem das leis da República, de inadmissíveis vantagens e de benefícios de ordem pessoal, ou de caráter empresarial, ou, ainda, de natureza político-partidária” (site de O Globo, 12/09/16).
É transparente, portanto, que a Democracia pressupõe atitude incansável, intransigente e inegociável no combate à corrupção. Assim como é bastante evidente que a Operação Lava Jato, ao longo do tempo aqui no Brasil, foi considerado e reconhecido como o maior movimento de combate aos crimes praticados por organizações criminosas que, como se descobriu, estavam ‘entranhadas’ nos altos escalões do poder, público e privado.
Entretanto, na medida em que as investigações se aproximavam dos poderosos, inúmeros obstáculos foram sendo criados para o seu normal andamento. Inclusive com a disseminação de notícias falsas e mentirosas. A utilização da internet e dos meios de comunicação mais avançados, para realizar ataques, críticas e formas de desconstruir a imagem das instituições, dos investigadores, procuradores e de juízes envolvidos no processo, foi aumentando cada vez mais. Como bem assinalou a jornalista Miriam Leitão, já no dia 20 de março de 2016, na Globo.com, ao comentar sobre a Lava-Jato: “Há um ponto em comum dos dois lados dessa batalha final da conflagrada cena política brasileira: inimigos de morte compartilham o mesmo sonho de que a Operação Lava-Jato arrefeça e, se possível, desapareça” (grifos meus). E mais, “que seja anulada por um erro processual qualquer; que seja desmoralizada”.
De fato, por diversas vezes houve a movimentação dos principais partidos políticos brasileiros no sentido de encaminhar projetos-de-lei que tivessem como objetivo geral, a redução da autonomia do Ministério Público e/ou da Polícia Federal, e como objetivo específico, enfraquecer a Operação Lava-Jato (2).
Quando o advogado e político italiano, Dr. Antonio Di Pietro, ex-magistrado que trabalhou nas investigações da Operação Mãos Limpas na Itália, ele concedeu uma entrevista ao jornal o Estado de São Paulo (07.09.2016) e foi categórico: “Para isso (acabar com a Operação), os acusados lançaram diversos argumentos mentirosos e falsos, sobre os processos investigatório e jurídico e diretamente sobre as pessoas que trabalhavam nessa Operação” (grifos meus). Como se vê no Brasil, colocar a opinião pública contra a Operação Lava Jato passou a ser objetivo fundamental de todos aqueles que se veem ameaçados pelas investigações. Um dos caminhos para desmoralizá-la.
Acho que está muito claro que a Operação Lava Jato e seus principais integrantes, assim como o próprio ex-ministro Sergio Moro, mesmo na época em que foram transformados em ‘heróis’, conseguiram “arregimentar” um número muito grande, significativo e poderoso de inimigos. Se a Lava Jato foi útil para tirar o PT do governo e prender um outro político, agora ela não interessa mais, pois está colocando em risco quase a totalidade dos políticos e partidos brasileiros existentes.
Os “donos do poder” envolvidos em ‘mal feitos’ não estão “para brincadeira” e contam, sem dúvida, com a ajuda de muitos outros, mesmo que pertencentes a ideologias ou partidos políticos diferentes. Farão o que for preciso para acabar com a Operação Lava-Jato, pois não interessa a nenhum deles a continuidade dessas investigações.
E o novo governo, que para se eleger aproveitou-se do discurso de combate à corrupção e às organizações criminosas, chegando inclusive a nomear o principal juiz da Lava Jato para o ministério da Justiça, jamais teve interesse em prosseguir, de fato e concretamente, com os trabalhos que combatessem, esses tipos de crimes. O esvaziamento do COAF, a humilhação e a posterior demissão de Sergio Moro, a intervenção na Polícia Federal e a nomeação do atual Procurador Geral da República, são apenas alguns exemplos que demonstram, na prática, o total cancelamento desses objetivos.
Mesmo que se questionem alguns procedimentos dos procuradores da Lava Jato, não é possível ignorar que parte dos julgamentos já ocorridos, frutos das investigações realizadas, foram ‘aprovadas’ em primeira e segunda instâncias, isto é, corroboradas pela Justiça. Como disse o ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro, “Criticar a Operação Lava Jato é ignorar que ela foi uma obra coletiva, envolvendo todas as instâncias, inclusive STF”. Também não possível esquecer os inúmeros benefícios que essa operação trouxe para o País e para a autoestima do povo brasileiro, que começou a acreditar que todos são iguais perante a Justiça. Não se pode, em tão curto espaço de tempo, transformar ‘heróis’ em ‘bandidos’.
Não há dúvidas que há um verdadeiro conluio entre alguns políticos (e seus partidos), algumas autoridades públicas e empresariais (e parte da imprensa) com o objetivo de se apoderar do Estado. Afinal é o Estado que lhes dá poder, é o Estado que lhes fornece – a fundo perdido – recursos suficientes para viverem bem e se manterem no poder.
O Procurador Geral da República, Sr. Augusto Aras, em ‘live’ transmitida ontem, disse que “agora é a hora de corrigir os rumos para que o lavajatismo não perdure”. “A correção de rumos não significa redução do empenho no combate à corrupção”. E finalizou: “Contrariamente a isso, o que nós temos aqui na casa é o pensamento de buscar fortalecer a investigação científica e, acima de tudo, visando respeitar direitos e garantias fundamentais”. Será? A conferir.
Há uma outra entrevista extremamente interessante, também concedida ao Estadão, agora no dia 27.03.2016, por um outro ex-magistrado italiano e que também trabalhou na Operação Mãos Limpas. Disse o Dr. Gherardo Colombo: “A justiça sozinha é incapaz de derrotar a corrupção” (grifos meus). E completou quando questionado sobre “que fim levaram as pessoas que apoiavam a Mãos Limpas? Votaram no Berlusconi?”: “Existe ainda hoje quem se escandaliza por causa de propinas, mas, para mim, parece que o comportamento da opinião pública hoje, é muito diferente em relação a 30 anos atrás. Continuam a dizer que esses políticos são todos corruptos etc., mas a partir disso não surge um comportamento coerente.
Consequentemente, é imprescindível que nós, cidadãos brasileiros, a sociedade civil, de uma forma geral e, principalmente a imprensa, fiquemos atentos com relação a todo e qualquer movimento que procure interromper as investigações contra esse tipo de crime organizado. Sempre respeitando o que estabelece o Direito, a Constituição Brasileira e a própria Democracia, o processo de combate à corrupção e ao crime organizado precisa continuar e punir os culpados, sejam eles quais forem.
Particularmente eu tenho abordado este assunto por diversas vezes (um dos primeiros artigos a respeito – “Proteção e Continuidade da Operação Lava Jato”, foi escrito por mim e publicado no linkedin em 21/03/2016), pois creio que uma verdadeira Democracia, como aqui já comentado, somente estará consolidada quando priorizar o combate intransigente à violência, à corrupção, à impunidade e à desigualdade. E é a Democracia, ainda, o único caminho que busca minimizar, com liberdade e justiça, as distorções naturais de uma sociedade.
(1) “As causas desses conflitos (no interior ou entre sociedades) não têm se limitado à inexistência de informações ou à incapacidade de compartilhá-las”. Eles têm surgido porque, “embora diante da mesma fonte de material a ser examinada, indivíduos têm discordado sobre seu significado ou sobre o valor subjetivo daquilo que ela descreve”. “Nos casos em que valores, ideais ou objetivos estratégicos estão em contradição fundamental, a exposição e a conectividade podem finalmente tanto alimentar confrontações como amenizá-las”. (Ordem Mundial, Henry Kissinger, Ed. Objetiva, 2015).
(2) Ricardo Noblat, no O Globo de 06/09/16, comentou a respeito: os objetivos desses possíveis projetos-de-lei são bastante simples e claros: “neutralizar a colaboração premiada, dificultar acordos de leniência, ampliar recursos judiciais sobre prisões, condicionar abertura de inquéritos no Supremo, no Superior Tribunal de Justiça e no Ministério Público, ampliar o sigilo e anular processos quando divulgados”. E vão mais adiante, na medida em que buscam, inclusive, “restringir benefícios da colaboração premiada a quem apresente bons antecedentes”, “instituir novos mecanismos de efeitos suspensivos e de reclamações em processos, além de criar formas para adiamento de aplicação de sentenças”. Não satisfeitos, ainda querem definir “formas de anistia a partidos sob investigação, e de evitar punições a políticos acusados de lavar dinheiro de corrupção no financiamento eleitoral”.
(3) Antônio Di Pietro comentou que a existência de um “sistema de conluio entre o meio empresarial, autoridades públicas e o financiamento de partidos políticos”, encontrado na Itália, tem “muita semelhança com a Operação Lava Jato, não só na atividade investigativa, mas, sobretudo na realidade factual do que está acontecendo no Brasil”. Na Itália, inclusive, foram realizados muitos movimentos no sentido de colocar a opinião pública contra a Operação Mãos Limpas (grifos meus).
(4) "A corrupção traduz um gesto de perversão da ética do poder e de erosão da integridade da ordem jurídica, cabendo ressaltar que o dever de probidade e de comportamento honesto e transparente configura obrigação cuja observância impõe-se a todos os cidadãos desta República que não tolera o poder que corrompe nem admite o poder que se deixa corromper". “Os cidadãos desta República têm o direito de exigir que o Estado seja dirigido por administradores íntegros, por legisladores probos e por juízes incorruptíveis”, afirmou o Ministro Celso de Melo, na cerimônia de posse da nova Presidente do STF, Ministra Carmem Lúcia.