Introdução – por Amyra El Khalili, colunista do Correio da Cidadania
Eis um caso interessante que afeta toda a economia, principalmente os preços dos alimentos em todo o setor produtivo, neste artigo do professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ), Wladimir Ferreira Salles.
Vejam que o autor contextualiza a questão da “comoditização”, explica o seu significado e os impactos sobre o setor de frete e cargas rodoviárias.
Sua conclusão, e sugestão, para que o setor não quebre é pela necessidade de investimentos na malha rodoviária e na renovação da frota de veículos, além da “descomoditização”, que é o que estamos propondo há duas décadas, em luta contra a miopia da direita e da esquerda retrógradas, sem vontade "política", enquanto nossa posição nada tem a ver com argumentos meramente ideológicos, nos questionando se é “dentro do mercado ou fora do mercado”.
No entanto, é necessário ter padrões de produção para garantir a qualidade fitossanitária e legal da produção, por um motivo muito simples: garantir o direito do consumidor e do trabalhador.
Não é porque é agroecologia, agricultura familiar, permacultura, entre outras alternativas, que não se podem exigir padrões de qualidade, fitossanitários e legalidade, com normas e regras.
O que se defende é que todos esses critérios de padronização sejam debatidos e decididos por quem produz e por quem consome, pois são determinantes na formação dos preços e na geração de emprego e renda.
É difícil fazer-se entender quando se tem 50 tons de cinza com seus outros interesses, com teses carcomidas pelo tempo dos que não conhecem como o mundo “funciona aqui fora” e atropelam o debate ao rotular as pessoas como se o mundo fosse bipolarizado.
No mais, é assunto que diz respeito a todos e todas nós, que produzimos e consumimos bens e serviços.
Portanto, temos de estar em todas as posições, “dentro e fora do mercado”, já que nem o Estado nem o Mercado têm competência para fazer a gestão daquilo que é objeto de “direito fundamental”, o bem difuso, de uso comum do povo. Sejam os recursos naturais, tanto quanto o direito à saúde, à alimentação, à moradia, à segurança pública, à educação, entre outros, protegidos pela Constituição.
Até porque, no final das contas, seremos nós, os mortais, os que pagaremos esta fatura.
Eis o artigo:
A defasagem entre o custo e o frete praticado no transporte rodoviário de cargas (TRC) está entre 12% e 24% dependendo do tipo de negociação. As consequências, para a economia e para a sociedade, poderão ser desastrosas em breve.
Brasil, um país rodoviário
No Brasil, quando o assunto é transporte de cargas, uma discussão se faz presente entre os especialistas: a nossa eterna dependência do modal rodoviário. Os anos passam e nossa matriz de transportes sofre pouca ou nenhuma alteração, com uma predominância excessiva do transporte por rodovias, em detrimento dos demais, como podemos ver nos indicadores da matriz de transporte de cargas da CNT 2014 (Confederação Nacional de Transportes): rodoviário, 61,1%; ferroviário, 20,7%; aquaviário, 13,6%; dutoviário, 4,2%; aéreo, 0,4%: total 100,0% .
Apesar dos planos desenvolvidos por diversos governos, a participação do transporte rodoviário tem oscilado muito pouco. A última previsão, incorporada no “Plano Nacional de Logística e Transporte (PNLT), em sua revisão de 2014, é de que em 2025 atinjamos o percentual de 30% para este modal. Um desafio enorme, se considerarmos que o alcance desta meta requer um amplo programa de investimentos nos demais modais de transporte e que”, em face da atual situação econômica do país, é necessária uma nova forma de planejamento e gestão destes investimentos, sendo fundamental:
• uma estrutura de planejamento de longo prazo, amparada pelas melhores práticas internacionais (contabilidade econômica, financeira e ambiental);
• a estruturação de um marco regulatório setorial que forneça segurança econômica e jurídica aos investidores;
• a diversificação das fontes de financiamento de longo prazo;
• a atração do capital privado;
• o incentivo ao investimento estrangeiro.
O que são commodities?
Já faz algum tempo que a palavra commodity passou a integrar o jargão do mundo dos negócios, em parte pelo aumento das transações comerciais mundiais, com a integração dos mercados, uma das principais características do processo de globalização.
Apesar de seu uso se ter tornado comum, não custa lembrar que o termo commodity significa, em sua essência, uma mercadoria que possui um padrão de produção e pode ser comercializada em diversos mercados, com múltiplos instrumentos econômicos.
Ao tratarmos um produto como commodity, admite-se que se trata de algo que possui critérios de produção, classificação, certificação, normas e regras de comercialização legalmente constituídas, cuja base transacional comercial é o preço, uma vez que as demais características estão “pré-estabelecidas” e são de domínio geral.
São exemplos típicos deste mercado: petróleo, minério, grãos, dentre outros, que têm seus preços geridos por bolsas e associações internacionais, as quais exercem um controle rigoroso sobre o valor de cada produto.
Com o passar do tempo e com os avanços tecnológicos experimentados pela humanidade, tornou-se possível a produção em maior escala e com melhor qualidade, consequentemente causando dificuldade de diferenciação aos olhos do consumidor.
Os serviços viraram “commodities”
Durante muitos anos temos ouvido a afirmação: “os produtos estão virando commodity e a diferenciação virá da prestação de serviços”.
A tese, defendida por muitos, era que as características técnicas e físicas dos produtos, por si sós não eram capazes de influenciar o consumidor, na hora da compra. Que a diferenciação, segundo os defensores desta tese, dar-se-ia pela agregação de serviços que, aos olhos do consumidor final, tornariam o produto adequado às suas necessidades. Ou seja, caminhávamos para um processo de “comoditização” dos produtos.
Ocorre que o “fenômeno” da “comoditização” chegou também ao mercado de prestação de serviços, em função de uma percepção dos compradores (tomadores) de serviços, da inexistência de um diferencial no produto ofertado pelo mercado.
Assim como nos produtos físicos, a “comoditização” no mercado de serviços teve um impacto maior em alguns setores do que em outros.
Um dos mercados em que a “comoditização” se estabeleceu foi o de transporte rodoviário de cargas, quando, ao longo dos anos, o produto principal, o “frete”, passou a ser tratado pelos embarcadores (1) sem diferenciação e, portanto, avaliado somente pelo preço apresentado pelo prestador do serviço, sem o parâmetro da qualidade.
O impacto no frete rodoviário de cargas
Segundo a Agência Nacional de Transporte Terrestres (ANTT), na pesquisa publicada em janeiro de 2017, realizada com 1.785 empresas do setor, identificou-se uma profunda defasagem entre o valor médio praticado no mercado para o frete rodoviário de cargas e o que deveria ser cobrado, com base no cálculo dos custos dos prestadores deste serviço, que levou à queda do faturamento das empresas do setor a um patamar de 19%, em média, no ano de 2016.
Dentre os fatores destacados pela agência, como causadores da situação de queda (decréscimo) de faturamento experimentada pelo setor estão o aumento de custos, como salários, combustível, manutenção, veículos, despesas administrativas e também a drástica redução do volume de cargas transportadas no país, em função da crise político-econômica por que passa o Brasil.
O quadro apontado coloca as empresas ofertadoras do serviço em situação extremamente difícil, pois veem seus custos aumentarem, com pouca, ou nenhuma, possibilidade de realinhamento dos preços praticados.
Porém, existe outra característica apontada pela grande maioria das empresas contratantes do serviço, que é a visão de que estes serviços são commodities, não havendo diferenciação no produto fornecido pelos transportadores, o que torna o preço ofertado a variável determinante para a tomada de decisão do embarcador.
Este processo de “comoditização” não é novo. Na realidade, historicamente, a atividade de transporte sempre foi tida como “marginal” e tratada como algo sem valor técnico-científico (notório saber).
Como existe excesso de capacidade produtiva no setor (concorrência), gerando uma taxa de ocupação pequena e uma grande oferta de serviço, os embarcadores, por sua vez, estão empoderados para pressionar continuamente pelas reduções do preço a ser pago pelo frete.
Em um cenário onde temos a combinação de aumento de custos, defasagem de preços e a “comoditização”, é fácil perceber que os atores, que estão no lado da produção (oferta), sofrem uma pressão enorme para manter o negócio em funcionamento.
Empresas que tenham o frete rodoviário como principal, ou único produto, encontrarão cada vez maiores dificuldades para continuar operando, uma vez que o valor praticado neste sistema não cobre os custos de produção e serviços e, consequentemente, estarão fadados a quebrar, correndo riscos permanentes com o endividamento.
A saída para as empresas que estejam na situação acima descrita está na agregação de outros serviços ao seu portfólio, que possam gerar diferenciação mercadológica, ou seja, na “descomoditização”.
O custo socioambiental da “comoditização” do frete
Apesar de seu caráter econômico e de mercado, o tema “comoditização” do frete rodoviário de cargas deveria despertar o interesse da sociedade como um todo, pois alguns aspectos são extremamente relevantes para o conjunto dos cidadãos.
Ao transacionar um valor de frete baixo, em que muitas vezes sequer os custos operacionais do veículo são cobertos, dois processos extremamente importantes são, geralmente, deixados de lado ou executados fora do padrão recomendado: a manutenção preventiva dos veículos e a renovação da frota.
A falta de manutenção adequada e a postergação da renovação da frota causam um impacto social e ambiental muito grande, pelo aumento do risco de acidentes e pela maior emissão de gases poluentes na atmosfera.
A manutenção ineficiente é apontada como causa principal de parcela significativa dos acidentes urbanos e rodoviários no Brasil. Czerwonka destaca ser de 80% o percentual de veículos trafegando com algum tipo de problema, incluindo pneus em péssimas condições e motores desregulados, que colocam em risco a segurança não só dos ocupantes dos veículos, como todos os demais utilizadores das vias.
Veículos com alta idade necessitam de maior controle para evitar o aumento da geração de partículas poluentes, pela alteração das características originais do motor, como a má regulagem da bomba injetora.
Nota:
1) Embarcador é o contratante do serviço de transporte, ainda que não seja ele o proprietário da carga.
Referências:
Perspectivas do investimento 2015-2018 e panoramas setoriais. Rio de Janeiro: Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, 2014. 196 p.
EL KHALILI, Amyra. Pós-Rio+20 – Reflexões sobre a “comoditização” dos bens comuns. Disponível em: http://correiocidadania.com.br/2-uncategorised/12483-pos-rio-20-reflexoes-sobre-a-comoditizacao-dos-bens-comuns. Acesso em: 13 abr. 2017.
______. Ser ou não ser mercadoria- Eis a questão!. Disponível em: http://correiocidadania.com.br/2-uncategorised/12465-ser-ou-nao-ser-mercadoria-eis-a-questao. Acesso em: 03 abr. 2017.
CZERWONKA, Mariana. Falta de manutenção triplica riscos de acidentes. Disponível em: http://portaldotransito.com.br/noticias/falta-de-manutencao-triplica-risco-de-acidentes/. Acesso em: 2 abr. 2017.
*Wladimir Ferreira Salles é engenheiro mecânico pela FTESM (RJ), mestre em Transportes pela UFRJ, com MBA pelo IBMEC/RJ. Atua nas áreas de supply chain, logística e produção e no gerenciamento em processos de armazenagem, transporte e distribuição, entre outros. Coautor do livro “Gestão de logística, distribuição e trade marketing”. É professor convidado da FGV-RJ.