Quem é o responsável pela realização do bem-estar comum?

Publicado em
25 de Outubro de 2019
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Recentemente eu li dois artigos interessantes e que me chamaram muito a atenção. Ambos, com base nas pesquisas realizadas pelos três economistas que venceram o último prêmio Nobel de Economia (Banerjee, Duflo e Kremer), comentam sobre o fato de que é possível -  necessário digo eu, disponibilizar recursos para a realização de políticas públicas voltadas aos mais pobres, de forma eficaz e com bons resultados. Os economistas, ao cabo de suas pesquisas, ficaram surpresos, na medida em que se constatou não haver necessidade de se gastar muito dinheiro para combater a malária ou elevar os níveis de escolaridade das comunidades mais carentes. Eles demonstraram, inclusive, que avaliar a efetividade dessas políticas, de forma objetiva, também é possível.  
Um dos artigos foi publicado no último dia 24 no Estadão, e escrito pelo senador José Serra (“Dá para fazer”) e o outro, escrito pela economista Monica de Bolle (“Pobreza real, pobreza mental”), foi também publicado no Estadão dia 16 pp.
 
José Serra desenvolve seu texto demonstrando que, embora tenhamos avançado, os erros cometidos foram enormes e colocaram o Brasil fora do grande processo de desenvolvimento mundial. E que nosso grande desafio atual é retomar o crescimento econômico e manter uma agenda social compatível com as reais necessidades brasileiras. 
 
A economista Monica, observando que houve reações muito negativas de alguns setores da sociedade com relação à premiação escreveu: “a reação nas redes sociais de gente que se identifica com a direita extrema retrógrada do País foi de condenar a premiação de diversas formas”, inclusive afirmando “que a pobreza é um ‘estado natural’ e que as políticas públicas para combate-las são inúteis”. Monica depois finalizou: “Quem sabe seja possível algum dia desenhar intervenções públicas para a pobreza mental”.
 
Parece-me evidente que falta ao Brasil, uma estratégia clara e de maior efetividade para a retomada do crescimento econômico. Depois de um longuíssimo período de recessão, mas ainda vivendo uma grave depressão, fazer o PIB crescer 0,8% neste ano e cerca de 2% o ano que vem, não ajuda muito os 25 milhões de brasileiros desempregados e desalentados. Nem, tampouco, os 30 milhões de analfabetos, os 55 milhões que vivem na linha da pobreza ou os 100 milhões que não participam de uma rede saneamento básico. E nem irá melhorar os serviços prestados pela administração pública, especificamente nos campos da educação, da saúde, da água tratada, da segurança e da infraestrutura logística, atividades fundamentais para real melhoria das condições de vida da população e alicerces de qualquer desenvolvimento econômico que se queira.
 
Não há qualquer dúvida que o fraco desempenho da economia brasileira, e não é de agora, está diretamente vinculado à dificuldade que o governo tem para diminuir suas despesas, diminuir o déficit fiscal e o consequente, e vergonhoso, aumento de endividamento público. As incertezas geradas pelas baixas perspectivas de crescimento da economia mundial (1), o ambiente extremamente ruim da política nacional e as dificuldades para que sejam aprovadas de forma correta e justa (2), as reformas que já se demonstraram como essenciais para a retomada do desenvolvimento, são outros ingredientes que não contribuem.
É evidente, embora muitos não vejam dessa forma, que a inabilidade política deste governo dificulta ainda mais a aprovação de medidas que diminuam os gastos públicos. E não há muitas dúvidas que as demais reformas, tais como a tributária e de racionalização administrativa, cujos interesses ‘não convergentes’ exigem muita negociação, serão postergadas para o próximo ano, pois 2019 já terminou. Vale lembrar, inclusive, que o ano que vem é de eleições.
Há que se compreender que a falta de políticas sociais e a falta de empregos, em um país como o Brasil, já extrema e demasiadamente carente, tem aumentado ainda mais o sofrimento da maioria do povo brasileiro. 
 
A Pesquisa Nacional para Amostra de Domicílio Continuada (PNADC), realizada pelo IBGE, mostrou que a diferença de rendimentos entre pobres e ricos, no Brasil, é cada vez maior. O índice de desigualdade tem aumentado, sendo que a população 1% mais rica ganha cerca de 34 vezes mais do que ganham os 50% mais pobres. Somente em 2018, ainda segundo a pesquisa, os 10% mais pobres tiveram uma queda de 3,2% em seus rendimentos, enquanto o 1% mais rico teve sua renda aumentada em 8,4%. Importante ressaltar, também, que a falta de instrução tem contribuído para que as pessoas ganhem menos. Enquanto os assalariados com formação Superior Completa recebem em média, R$ 4.997,00 por mês, assalariados sem instrução recebem apenas R$ 856,00. Quase 83% menos!
 
O próprio coordenador de Trabalho e Rendimento do IBGE, senhor Cimar Azeredo não tem dificuldades de comentar: “O Brasil tem um histórico de desigualdade bastante elevado e a pesquisa mostra que o problema persiste” (entrevista publicada pela Folha de São Paulo, dia 16 último). A reportagem da Folha, com base na opinião de diversos especialistas no tema “desigualdade”, conclui com aquilo que todos sabemos: “esse problema é fruto de fatores históricos e estruturais mas, também, do patrimonialismo que se apodera de recursos estatais e empregos públicos, políticas sociais voltadas a grupos que menos precisam e uma estrutura tributária regressiva, que cobra proporcionalmente mais impostos de quem ganha menos” (grifos meus).
 
Mesmo reconhecendo que o Brasil, em face de sua situação fiscal, precisa ter real controle dos gastos públicos, é preciso entender que o Estado, diferentemente do que apregoam alguns ortodoxos defensores do liberalismo econômico, não pode ser administrado “apenas pelo caixa”. E investir, não é gastar. Desde, é claro, esses investimentos tenham como objetivos, as camadas mais necessitadas da população e a retomada do crescimento econômico. 
Retomo este assunto – o da falta de empregos e do aumento da desigualdade - porque neste mundo “moderno” e “tecnologicamente avançado”, já tomou conta de uma grande parte da opinião pública, o pensamento de que o único caminho para solução desses problemas é o mercado totalmente livre, com um Estado significativamente menor do que o atual. Uma espécie de “laissez-faire” (3), expressão francesa, cunhada no século XIX, que significava um capitalismo em estado “puro”, no qual o mercado, ao funcionar livremente e sem qualquer interferência, seria responsável pela promoção do desenvolvimento de toda a economia, na medida em que, ao buscar o lucro, conseguiria realiza-lo através da eficiência e do melhor aproveitamento dos recursos produtivos. A principal e natural consequência seria a obtenção de maior produtividade e menores custos de produção. A crença, em síntese, era a de que o mercado totalmente livre, não só produziria todos os bens e serviços necessários e ‘solicitados’ pela população, como também criaria oportunidades para as empresas, num processo de concorrência perfeita, obterem seus lucros, investirem e gerarem mais empregos.
 
Lamentavelmente, como demonstram todas as pesquisas a respeito, no Brasil e no mundo, não foi o que se verificou na prática, posto que as desigualdades de oportunidades, inerente a um processo que só privilegia os “melhores”, propiciou crescentes concentrações da renda. Como já expressado por mim, é um erro debitar somente ao Estado, todos os males de uma sociedade e, ao Mercado, creditar a solução de tudo. Se é verdade que as economias planificadas (que muitos a caracterizam incorretamente como socialistas) querem alcançar a igualdade de resultados, ignorando a individualidade e sem qualquer estímulo para que se aumente a produtividade, também é verdade que os mercados precisam da regulação e do controle do Estado, inclusive para que se mantenha um clima concorrencial saudável.
 
De fato, talvez esses sejam os maiores desafios do capitalismo atual: combater a desigualdade e, simultaneamente, manter o equilíbrio entre intervenção estatal e liberdade de mercado. Entretanto, queiramos ou não, caberá ao Estado a principal responsabilidade de busca pelo bem comum. Inclusive pelo fato que também ao Estado cabe o papel de criar condições favoráveis para o setor privado crescer, se desenvolver e contratar mais e melhor. 
 
Não há dúvidas que o Brasil retrocedeu dez anos, perdeu mais uma década e vive uma situação de extrema gravidade, no qual o desemprego, vale novamente lembrar, é um “barril de pólvora”. O professor e economista Roberto Macedo, em artigo publicado no Estadão, no último dia 3, escreveu que “é preciso disseminar a noção desse imenso desastre atual, pois a percepção dele e de sua enorme gravidade ainda não foi suficientemente difundida a ponto de levar a um inconformismo da sociedade”. E finaliza: “isso para que ela (a sociedade) cobrasse dos que governam o País que cumpram o seu dever de bem conduzi-lo, pela rápida adoção de mais políticas para pôr em ordem as finanças públicas e reativar a economia”.
 
A “saída da crise econômica exige criatividade e receita diferentes” foi o título de artigo aqui publicado no dia 06/09/19, pois não é possível acreditar que “em um País no qual os índices de concentração de renda e de desigualdade só aumentaram, o desequilíbrio fiscal e a consequente destruição da capacidade de investimentos do governo se deu por conta dos mais pobres e desempregados. Ou por causa dos benefícios sociais existentes”. Está na hora de trocar de receita, pois a quase totalidade da população brasileira não aguenta mais.
 
(1) Organização Mundial do Comércio (OMC) alerta sobre a piora do quadro econômico e político mundial. As novas projeções indicam que as trocas internacionais deveram aumentar apenas 1,2% em 2019. Para 2020, 2,7%. Calcula-se, também, que o crescimento mundial não ultrapassará, neste e no próximo ano, os 2,3%. Em 2019 as economias desenvolvidas deverão crescer 1,7% e no máximo 1,4% no próximo. Países em desenvolvimento tem taxas de 3,4% e 3,8%, respectivamente para 2018 e 2019. América do Sul, América Central e Caribe têm previsões próximas de 0,1% e 2,4%;
 
(2) A reforma da Previdência, com expectativas de conseguir economizar cerca de R$ 1,2 trilhão em 10 anos, chegou aos R$ 800 bilhões e, mesmo melhor do que se esperava, ainda está longe de resolver os problemas de “excesso” de gastos públicos;
 
(3) Podendo ser traduzido como “deixar fazer”, essa expressão passou a ser um símbolo da economia liberal, na medida em que preconizava total liberdade no funcionamento do mercado e sem qualquer interferência estatal em seu funcionamento. O economista escocês, Adam Smith (1723/1790), considerado um dos “pais da economia”, e na crença de que as pessoas eram “criaturas sociais”, também acreditava que a única intervenção do Estado deveria se limitar à defesa do direito à propriedade, à garantia da lei e da ordem, da defesa nacional e da oferta de produtos e serviços específicos, tais como a saúde pública, a educação e o saneamento básico.
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