Sem querer entrar em discussões semânticas ou conceituais, mas simplesmente para facilitar a elaboração deste texto, antes de inicia-lo, me permitirei definir dois conceitos importantes: Sociedade Civil e Classe Dirigente.
Sociedade Civil, aqui várias vezes citado, é um conjunto de organizações e instituições voluntárias e autônomas que funcionam independentemente e fora das estruturas estatais. Segundo o Wikipédia a Sociedade civil é um “conjunto de organizações voluntárias que servem como mecanismos de articulação de uma sociedade, por oposição às estruturas apoiadas pela força de um estado (independentemente de seu sistema político). Alguns exemplos: Clubes Cívicos, Instituições Políticas, Órgãos de Defesa do Consumidor, Cooperativas, Corporações, Grupos Culturais, Grupos Religiosos, Instituições de Benemerência, Associações profissionais ou de empresas, etc.
Classe Dirigente. Considerando que existem em todas as sociedades, apenas duas classes, a dirigente e a dirigida, utilizarei o termo Classe Dirigente como aquela que, menor que a Classe Dirigida, exerce todas as funções políticas, monopoliza o poder e goza das vantagens deste. É a classe que controla, por influência política as populações de uma determinada sociedade. E embora minoria, dirige a totalidade da sociedade por ser, sempre, organizada – ao contrário da majoritária classe dirigida. Pode-se dizer que aqueles que compõem a classe dirigente, geralmente, constituem em um grupo homogêneo e, principalmente, solidário entre si, em contraposição dos demais que se encontram divididos e desarticulados. O Wikipédia fala em Classe dominante para designar a classe social que controla o processo econômico e político de um País. Em artigo mais antigo defini Classe Dirigente como o conjunto de políticos – do executivo, legislativo e judiciário – lideranças sindicais, empresariais ou representantes da sociedade civil que, organizados e solidários entre si - mesmo briguem entre si algumas vezes – que controlando os poderes político e econômico, controlam as classes dirigidas. Ocupando as funções do Estado ou não.
Dito isto, vamos ao texto. Grande parte de nossa classe dirigente, por ignorância, conveniência, má fé, burrice ou tudo isso junto, ainda não se deu conta da gravidade do momento atual e continua apenas se preocupando com as próximas eleições e a preservação de privilégios conquistados. Legais, todos eles, mas questionáveis a maioria deles, sob os pontos de vista da legitimidade, da moral e da ética. Do foro privilegiado à bolsa moradia, de medidas provisórias direcionada a grupos especiais à incentivos fiscais, tributários ou financeiros inapropriados, do fundo partidário às emendas parlamentares ou da nomeação sem critério à decisão monocrática que afronta decisões colegiadas, tudo precisa ser rediscutido, pois mesmo que previstos na legislação (aliás, criada e mantida pelos mesmos), muitos desses benefícios não se justificam e não se sustentam se submetidos a quaisquer discussões e análises realmente sérias e republicanas.
Para resolver apenas seus problemas pessoais e dos grupos aos quais eles pertencem ou representam, a maioria dos políticos – do executivo ou legislativo - mente e engana seus eleitores sem qualquer constrangimento, com uma “cara-de-pau” e uma desfaçatez de tal ordem que, caso não se esteja preparado, passa-se a acreditar em qualquer coisa. “A recuperação do Brasil é difícil por si só, mas se depender de grande parte dos políticos brasileiros, ela será impossível“ foi o título do artigo publicado por mim no Guia do TRC, em novembro de 2016. A classe política brasileira está totalmente desacreditada e por diversos motivos, inclusive pelo envolvimento em vários casos de corrupção. Mas, saliente-se, também porque não consegue, de forma clara, transparente e concreta, representar a população que a elegeu, notadamente quando aprova leis que nada tem a ver com as necessidades desta última. Em muitos casos, até em detrimento dela.
Entretanto, como aqui já escrito, a classe dirigente a que me refiro não é composta somente por políticos. A parcela inconsequente e irresponsável da classe dirigente brasileira que tem impedido o Brasil de alcançar maiores progressos contempla, também, parte da classe empresarial e das lideranças de quase todos os setores que atuam em nossa sociedade, bem como, principalmente nos últimos 15 anos, de uma grande parte dos movimentos sociais, transformados em “aparelhos do Estado”. Volto a citar Douglass North, prêmio Nobel em Economia que, ao fazer comentários sobre o Brasil, há doze anos passados (vide artigo de Giuliano Guandalini publicado na Revista Veja de 12/12/2015: “A Fórmula da Riqueza”), afirmou: “Há uma aliança próxima entre interesses políticos e econômicos. O resultado é uma barreira à competição e às mudanças institucionais inovadoras e criativas. Isso impede o Brasil de se tornar uma nação de alta renda”. E continua: “Esses grupos se protegem da competição, numa ação que tende a fechar a economia e barrar a eficiência”. Ainda, segundo ele, este é, talvez, a principal razão do atraso brasileiro, pois esses “grupos de interesse, em conluio com o governo, expropriam o futuro da nação” (grifos meus).
Ao centralizar e se apoderar dos poderes político e econômico, parte dessa classe dirigente utiliza – principalmente quando tem o poder da nomeação, isto é, quase sempre - um razoável grupo de burocratas, funcionários públicos e executivos corruptos, obedientes e coniventes, para controlar a máquina pública e a maioria dos recursos governamentais disponíveis, sejam eles financeiros ou não.
O que tem ocorrido no centro do poder, neste último mês – precisamente em época de Copa do mundo de futebol – é exemplo indiscutível dessa irresponsabilidade. Executivo, Legislativo e Judiciário, cada um em sua esfera de poder, decretaram medidas, aprovaram leis e julgaram ações que deverão aumentar o já gigantesco déficit fiscal, que já dura cinco anos seguidos, em algumas dezenas de bilhões de reais. Renúncia de despesas e aumento, manutenção ou criação de gastos, desiquilibrarão ainda mais as contas públicas. Até a criação de 300 novos municípios – e todos os ‘penduricalhos’ pertinentes – está sendo estudada pelo Congresso, assim como emenda ao projeto da lei das agências de regulação que permite indicações políticas para diretorias e para os conselhos de administração de empresas estatais (buscando profissionalização e aumento de produtividade, a Lei 13.303/16 limitou essa possibilidade e proibiu a nomeação de dirigentes partidários e de familiares). Vale mencionar a decisão de um ministro do STF que proibiu a privatização de empresas públicas, sociedades de economia mista, subsidiárias e controladas sem aval do Congresso Nacional. Além de impedir receitas extraordinárias com a venda, mantêm despesas para o setor público que poderiam ser evitadas. Reportagem de Anne Warth, da agência Estado de Brasília, deste último dia 10, mostra que estatais que dependem da União, por não terem capacidade de geração de receitas suficientes para cobrir suas despesas, consumiram R$ 18,2 bilhões do Governo Federal em 2017. Já há uma previsão de R$ 20,4 bilhões para este ano.
A “farra fiscal”, como classificou o ministro da Fazenda Eduardo Guardia, em alguns casos beneficia e em outros pretende beneficiar, indústrias dos mais diversos setores, desde fortes e importantes grupos empresariais até corporações e entidades sindicais com grande poder de lobby. Apenas três exemplos: 1º) Programa Rota 2030 para a indústria automobilística, no qual o governo federal “abre mão” de tributos, e portanto de receitas, equivalentes a R$ 2 bilhões por ano (neste caso o próprio executivo concordou); 2º) Benefício tributário para o setor de refrigerantes da Zona Franca de Manaus, com impacto de R$ 1,8 bilhão por ano; 3º) Perdão de dívidas tributárias a produtores rurais que, somente este ano, poderá chegar a R$ 13 bilhões, segundo o Estadão. Essa irresponsabilidade, considerando a atual situação brasileira, foi a forma encontrada para manter benefícios a indústrias que, além de terem extraordinária capacidade econômica/financeira, estão há décadas instaladas no País e já deveriam ter aprendido a “andar sozinhas. Mas o que se vê é o contrário: continuam buscando ‘incentivos’ para fazer o que deveriam, por princípio e natureza empresarial, ser feito por conta própria.
Mas essa “farra fiscal” vai muito além. Segundo excelente reportagem/pesquisa feita pelas jornalistas Idiana Tomazelli e Adriana Fernandes do Estadão de Brasília, há mais ‘brindes’: a) Desaprovação do dispositivo que fazia parte da LDO para 2019 (Lei de Diretrizes Orçamentárias) e que proibia reajuste ao funcionalismo federal. Segundo o Broadcast do Estado, essa conta poderá alcançar cerca de R$ 17,5 bilhões no ano que vem; b) Refis para empresas integrantes do Simples (R$ 8 bilhões em 10 anos); c) Benefícios para as Transportadoras (R$ 27 bilhões até 2020); d) Refis para dívidas do Funrural (R$ 18 bilhões em 2019); e) Desoneração de ICMS nas exportações (R$ 38 bilhões ao ano); f) Benefícios Sudam e Sudene (R$ 9,3 bilhões até 2020); g) Desistência na proposta de se reduzir o Reintegra (R$ 2,2 bilhões em 2018 e R$ 10 bilhões em 2019); h) Permissão para venda direta de etanol pelos produtores aos postos de combustíveis (R$ 2,4 bilhões por ano); e i) Desaprovação da tributação aos fundos para clientes de alta renda (entre R$ 6 e 11 bilhões). “Ampliar a concessão de benefícios tributários a setores específicos da economia é absolutamente inoportuno para o País e vai exigir medidas compensatórias para fechar as contas”, disse Eduardo Guardia, ministro da fazenda. Aliás, se Guardia esperava a reoneração da folha de pagamento, a revisão do contrato de cessão onerosa com a Petrobrás e a privatização das distribuidoras da Eletrobrás, como medidas prioritárias de sua administração, quase tudo “já foi por água abaixo”.
Além de caracterizar total desconhecimento da realidade brasileira, descompromisso com os reais interesses da nação e perigosa irresponsabilidade política (e fiscal), esse comportamento é uma clara demonstração de má-fé com relação aos governos futuros, na medida em que inviabiliza suas administrações e transforma o que já era difícil em quase impossível.
Acredito que muitos desses projetos não deverão evoluir e dificilmente serão aprovados pelos poderes pertinentes, uma vez que isso poderá criar problemas insolúveis e aumentar ainda mais o desemprego e a pressão social. Mas como é possível esperar qualquer coisa de nossa classe dirigente, seria conveniente as autoridades não incluídas nesse grupo, ficarem atentas, pois não é demais relembrar, apenas como ilustração, que em 2017 benefícios desse tipo (tributos, desonerações e financiamentos baratos) tiraram dos cofres públicos algo em torno dos R$ 277 bilhões (cerca de 5% do PIB). Isto é, basicamente para beneficiar representantes da Classe Dirigente. O ‘bolsa-família’, que beneficia parte da Classe Dirigida, e tão criticado por muitos, chegou a quase R$ 27 bilhões. Embora a ampliação ou criação de benefícios neste momento seja “absolutamente inoportuno”, é fundamental que se faça uma profunda reavaliação de cada um deles e manter apenas aqueles imprescindíveis e desde que, de forma direta ou indireta, tragam retornos para a sociedade brasileira como um todo. Aqui, mais uma vez, não se discute a legalidade das propostas e dos projetos apresentados, posto que os legisladores e responsáveis por eles tem (pelo menos ao que parece) autoridade para tal. Discute-se, isto sim, a legitimidade e a oportunidade de mantê-los.
Não bastassem essas medidas de claro agravo ao déficit público, os congressistas, para fazerem bonito com o “chapéu alheio”, ainda anularam as multas aplicadas – cerca de R$ 715 milhões - durante a greve dos caminhoneiros. Vale acrescentar: a emenda para anistiar as multas e outras sanções aplicadas aos caminhoneiros foi apresentada por um deputado que, coincidentemente, é dono de uma transportadora. Segundo ele não há qualquer impedimento de atuação ou conflito de interesses, pois atualmente a empresa é de seus filhos. Também um ministro do atual governo aproveitou o momento para dizer que as perdas fiscais – advindas da chamada “farra fiscal” - não deverão ser muito “traumáticas”. Além do que, não seria conveniente continuar brigando com a base aliada em ano eleitoral! O interessante é que quem tem responsabilidades com o futuro do Brasil classificou essa pauta de votações como “pauta-bomba”, enquanto o próprio presidente do Senado disse que não considera nada exagerada a atuação dos parlamentares nessas votações. Então tá!
No caso da anistia de multas, mesmo aceitando-se que valor seja pouco significativo perante o total da receita governamental anual, questiona-se a sua oportunidade, posto que a impunidade não é, no momento, algo a ser desconsiderado, uma vez que a greve – mais política do que reivindicatória e até certo ponto criminosa – trouxe enormes prejuízos para toda a nação brasileira, cujos impactos ainda estão sendo calculados. O IBGE, ao divulgar as estatísticas de maio – mês da greve – com relação à abril, dão conta que a indústria teve queda de 10,9% (2º pior resultado desde 2002), o comércio, queda de 0,6% e o setor de serviços, queda de 3,8% (a maior queda desde janeiro de 2011). Segundo a CNC – Confederação Nacional do Comércio de Bens, as vendas no varejo ampliado de maio – que inclui veículos e material de construção -, comparadas com o mês anterior, tiveram queda de 4,9%, o pior resultado desde o início dessas estatísticas em 2004. Segundo o IPEA, os investimentos (Formação Bruta de Capital Fixo) tiveram queda de 11,3% e aquisição de máquinas e equipamentos caíram 14,6%. O indicador de construção civil indicou, ainda de acordo com o IPEA, teve queda de 11,5%. Já, de acordo com a FGV, os índices de confiança também tiveram queda: menos 4,8 pontos dos consumidores (menor desde agosto de 2017) e menos 1,9 ponto dos empresários (menor desde outubro de 2017). Como explicitado pelo editorial do Estadão do último dia 12: “Além de prejudicar a produção, o consumo e a criação de empregos, o bloqueio de rodovias interrompeu o investimento produtivo. É estrago para terrorista nenhum pôr defeito (grifos meus)”.
Ressalve-se uma vez mais: a atuação dos políticos e outros participantes do governo, de todas as esferas e instâncias de poder, não atuam somente em benefício próprio, aliás como ilustram os exemplos citados anteriormente ou como comprovado pela Operação Lava Jato. Como conceituado no início do texto, aqueles que detêm o poder político e econômico, às vezes brigam, mas geralmente são solidários entre si e, portanto, é automático concluir que a atuação desses políticos se fez em consonância e de acordo com outros segmentos da sociedade brasileira, “melhores organizados” e que fazem parte da chamada Classe Dirigente. Veremos isso na Parte II