Não tenho qualquer dúvida de que 2018 será um ano tão ou mais difícil do que está sendo este de 2017. O Brasil jamais viveu, em toda a sua história, uma crise com as dimensões da atual. Porque ela não é econômica, social, ou política. A crise é total, generalizada e está em todos os lugares e setores.
Esta crise, resultado da atuação de vários governos medíocres, foi sendo gerada ao longo das últimas décadas. Ela abalou, negativamente, nossas estruturas, nossas instituições, nossos valores e nossas esperanças. A imoralidade instalada nos diversos governos que “desgovernaram” o País nos últimos tempos, gerou um descrédito tão grande que quase todos nós fomos transformados, em maior ou menor grau, em ‘pecadores’. Inicialmente não mais nos indignando com os tristes acontecimentos do “dia-a-dia”, posto que viraram rotinas. E no momento seguinte praticando, mesmo que ‘levemente’, um pequeno delito, na compra de um produto sem a correspondente nota fiscal, na adulteração da nota de refeição para buscar maior reembolso na empresa, na balança que vende 1 kg mas pesa 850 gramas, na utilização do ‘acostamento’ como pista normal de tráfego, na fraude da carteira de estudante para pagar ‘meia’, na utilização de um falso recibo médico para diminuição de imposto a pagar, ou na utilização de recursos não contabilizados. Embora nada se justifique, tudo é devidamente explicado. Segundo alguns, faz parte de nossa cultura. Será?
Tenho uma tese antiga: em qualquer lugar do mundo, e em qualquer época, sempre haverá um contingente de pessoas “desajustadas”. Uso esse termo apenas para adjetivar pessoas que, por algum motivo, não estão ‘ajustadas’ aos valores morais e éticos, às normas de conduta e às leis estabelecidas pelo conjunto maior da sociedade. São pessoas que cometem crimes, sonegam, ‘furam a fila’, ocupam indevidamente as vagas de idosos ou cadeirantes nos estacionamentos etc. Enfim, jogam lixo na rua e ‘emporcalham’ toda a sociedade. Por outro lado há um contingente muito maior de pessoas que, além de não cometê-los, ainda combate os crimes cometidos pelo contingente de ‘desajustados’. É a turma do ‘bem’, que ao recolher todo o lixo gerado, ainda estabelece as regras para que a sociedade, limpa, seja habitável por todos.
Acredito, também, que o contingente de ‘desajustados’, em minoria, possibilita que o contingente de ‘ajustados’ – a maioria - tenha condições para realizar a ‘faxina’ saneadora com eficiência. Diante disso, é muito provável que a maioria, determinada a manter a lei e a ordem (e a limpeza), logre construir uma sociedade mais harmônica, mais igual e mais justa, na qual a crença de futuros melhores e a esperança sejam características fundamentais. É uma sociedade “do bem”, que pratica, acredita e transmite, para todas as gerações, esses valores. Os erros, os crimes e a sujeira jogada na rua, pela minoria de ‘desajustados’, são exceções.
Mas acho que a sociedade brasileira chegou ao limite e o percentual de ‘desajustados’, se ainda não é maioria, chegou a uma quantidade quase impossível de ser controlada. A ‘sujeira’ é tanta que é quase (o quase é porque ainda tenho esperanças) impossível limpá-la. Não há recursos suficientes para prender, controlar, auditar ou fiscalizar a enorme quantidade de ‘malfeitos’ praticados. Não há gente e estrutura para limpar todo o lixo jogado no chão. E quando isso acontece, mais e mais pessoas trocam de lado, pois começam a aceitar que essa é a única forma de sobrevivência. Como já dito aqui, passam a aceitar e a cometer ‘pequenos delitos’. Diante desse “cada um para si e Deus para todos”, o que se transmite para as gerações mais novas é que o mundo pertence aos espertos, o crime compensa e estudar não é preciso.
Em diversos artigos, durante os últimos três anos pelo menos, tenho comentado sobre a terrível possibilidade de alcançarmos, aqui no Brasil, o “caos” (segundo o dicionário Aurélio: “O vazio obscuro anterior à criação do mundo”. “Grande confusão ou desordem”). Situação na qual o contingente de “desajustados”, principalmente quando instalado no poder, impõem à toda a sociedade, seus valores e conceitos de moral e de ética.
Para quem ainda não está sofrendo diretamente os efeitos do caos, parece que ele ainda não ocorreu. Mas ouso discordar. Em minha opinião o caos foi instalado no País e, como “sapos em panela de água que vai esquentando devagar”, estamos todos sendo sacrificados. Evidente que as classes mais pobres são as primeiras a receberem, negativamente, esses impactos. As classes mais privilegiadas, até de forma alienada, vão vivendo...
O Brasil vive uma ‘grande confusão e uma enorme desordem’. Ou é normal termos cerca de 13,4 milhões de pessoas vivendo em condições de extrema pobreza (vivem com menos de US$ 1,90 por dia)? Ou altíssimos índices de desigualdade, posto que o Índice Gini do Brasil (conceito de renda familiar per capita) é de 0,549 (o índice vai de zero a 1 e quanto mais próximo do zero, mais igualitária é a sociedade)? E que indicam, também, péssimas condições de vida para 76% da população urbana brasileira. Como exemplo, vale citar a cidade mais rica do País, São Paulo, que tem, em seus bairros mais nobres e privilegiados, expectativa média de vida de 75 anos, enquanto outros, com menos “sorte”, têm apenas 55. É normal que 10% da população mais rica do Brasil detenha mais do que 50% de toda a renda nacional ou que apenas o 1% mais rico detenha 28% dessa renda? É normal que se tenha 13 milhões de desempregados? Ou quase 12 milhões de analfabetos? É normal que mais de 60 mil pessoas morram, por armas de fogo ou de forma violenta e outras 50 mil pessoas morram no trânsito, anualmente? Ou, como mostram as pesquisas, mais de 300 mil morrem, todos os anos, por ‘algum tipo de falha’ no atendimento hospitalar’? É normal que o Brasil tenha a terceira maior população carcerária do mundo e ainda persiste a clara sensação da impunidade e da insegurança? Estão normais os serviços públicos, notadamente aqueles voltados à educação, à saúde e à segurança de nossos cidadãos? São normais os salários e os privilégios concedidos a uma parcela razoável de funcionários públicos, em particular aqueles que trabalham nos poderes judiciário e legislativo? É normal ficarmos discutindo aumentos de verbas para campanhas políticas, carnaval e festas de fim de ano, quando a maioria dos hospitais brasileiros não conta, sequer, com os insumos mais básicos de atendimento? É normal que se agridam professores em plena sala de aula? É normal o funcionamento de nossas instituições e, em particular, de nossa justiça? Tem o STF demonstrado credibilidade compatível? Funcionam de forma satisfatório os nossos legislativos? Estão nossos políticos se esforçando na busca de soluções para os grandes problemas nacionais, ou apenas ocupando-se com seus próprios interesses e o acobertamento de seus crimes? Nossos partidos políticos, quase todos envolvidos em casos de corrupção, estão exercendo suas funções de forma correta ou apenas trabalhando para manterem seus benefícios? Os tribunais de contas estão funcionando bem e apontando os ‘erros’ cometidos pela maioria das administrações públicas? Nossas lideranças (temos?) estão à altura dos atuais acontecimentos? Os dirigentes empresariais e de trabalhadores, incluindo os sindicatos, têm agido de forma independente e com objetivos claros na busca do crescimento e do desenvolvimento do País? Nossos estudantes estão bem preparados e posicionando-se de forma firme, independente e imparcial contra quantidades cada vez maiores de abusos? Alguém acredita na normalidade de funcionamento das instituições e poderes constituídos, em todas as suas esferas? É normal que se combata tanto a Polícia Federal e o Ministério Público por eventuais excessos cometidos, exatamente no momento em que eles estão desvendando os maiores crimes de corrupção jamais vistos no País?
Mesmo com uma imprensa bastante ativa e razoável liberdade de expressão, o seu funcionamento tem sido de forma isenta, imparcial e honesta? Ou não é fato que, quando tem interesses envolvidos e com os quais ela se ‘identifica’, a imprensa não só distorce os fatos como, se necessário, omite ou inventa informações? Rádio e a TV, meios mais diretos de comunicação e mais próximos da população, estão cumprindo seus papéis – informação, cultura e entretenimento – de forma a contribuir para o desenvolvimento das pessoas, principalmente as mais jovens? E a sociedade como um todo, tem se movimentado com objetivos definidos, claros e que convirjam para uma discussão sadia de nossos principais problemas?
Mesmo com algumas divergências, todos conhecemos as respostas para as questões aqui elencadas. Acredito que, se respondidas com honestidade e imparcialidade, todos chegaremos à conclusão de que o caos está instalado no Brasil, apesar de seus efeitos serem sentidos, apenas, pela parte mais pobre e menos protegida da população brasileira. A minoria protegida e razoavelmente distante desse caos, ainda continua ocupada na solução de seus próprios problemas e, de uma forma geral, mais preocupada com o funcionamento geral da economia, uma vez que esta precisa estar em condições de manter seus privilégios e benefícios. Manter o ‘status quo’ e não ceder espaço.
A crise não acabou, mesmo a econômica como apregoam alguns, posto que o problema fiscal e o desemprego (nossos maiores problemas do momento) não estão resolvidos e, pelo que se constata, não serão solucionados nos próximos anos. É fundamental, inclusive, evitar uma certa “ditadura” do mercado financeiro, que se limita a discutir as finanças públicas somente até o ‘déficit primário’. Isto não é somente um erro de abordagem, mas também uma forma encontrada para que não se discuta o principal: o vertiginoso crescimento de nossa dívida pública total que, como se sabe, aumenta na medida em que continuamos gerando déficits nominais. Estes incluem, além do déficit primário, o serviço da dívida (amortizações e juros).
Portanto, mesmo que tenhamos alguma tranquilidade na economia no atual momento (retomada do crescimento do PIB, controle da inflação, queda da taxa de juros e equilíbrio nas contas externas), os problemas do déficit nominal e da dívida pública estão longe de serem equacionados. Quase sem controle, esses problemas, se não equacionados rapidamente, deverão dificultar significativamente a “rolagem” da dívida pública.
A reforma da Previdência é outro exemplo. Embora seja necessária, ela foi transformada, pelo governo Temer, muito mais em um factoide para mantê-lo “vivo”, do que uma real preocupação com os problemas econômicos brasileiros. Volto a enfatizar, assim como o combate intransigente à corrupção, a reforma da previdência é imprescindível, mas não pode ser transformada em ‘panaceia’.
Nossas classes dirigentes, de empresários, políticos e magistrados, não estão tratando assuntos sérios, de forma séria. Estão tratando apenas de seus interesses e trabalham, de fato, para se manterem no poder, sob o abrigo do fórum privilegiado, distantes da “Lava-Jato” e com todos os benefícios, mesmo que ilegítimos, mantidos. O judiciário, nossa última esperança, já a alguns anos, dá sinais inequívocos de estar em constante conflito, dividido em grupos antagônicos e com comportamento explicitamente político. Disse o professor da FGV, doutor Oscar Vilhena Vieira, “é exasperante que a instituição (no caso o STF) que tem por responsabilidade precípua a guarda da Constituição também esteja dando sinais de convulsão. Não apenas porque alguns membros do tribunal, como o ministro Gilmar Mendes, assumiram um comportamento despudoradamente político, como porque a corte, como tenho insistido, perdeu a colegialidade. Ao assumirem individualmente funções que constitucionalmente são do colegiado, os ministros agravam a crise de autoridade do Supremo e reduzem sua capacidade de contribuir para o desfecho da crise política”.
Não há dúvidas. Até o judiciário, que poderia ser considerado o último obstáculo antes de se alcançar o caos, perdeu credibilidade e se mostra cooptado pelos poderes econômico e político vigentes. Ou não é verdade que a classe política, envolvida na operação Lava-Jato, ainda não foi julgada pelo STF? Interessante observar que o STF fez questão de prender, diga-se merecidamente, o deputado federal Paulo Maluf (aos 86 anos de idade e vinte anos depois do crime cometido). Será que vale aquele ditado antigo de “é fácil chutar cachorro morto”?
Movimentos e manifestações populares funcionam bem quando são realizadas por meio de ‘chamados’ claros e objetivos, isto é, com ‘recados’ simples: contra o governo militar, contra a ditadura, a favor da volta do Estado de Direito, a favor das eleições diretas, a favor do divórcio, contra a corrupção, a favor do impeachment ou contra determinado governo. Quando as manifestações se fazem com mensagens difusas, difíceis de se entender e, até mesmo conflitantes (democracia e volta de militares ao mesmo tempo), elas perdem força e, em pouco tempo, são esquecidas. Quando não é levada por paixões inexplicáveis ou lideranças populistas e carismáticas, a população, na sua maioria, com pouca ou quase nenhuma informação, às vezes pouco interessada no tema e confusa em função das diferentes e contraditórias informações recebidas, tem muita dificuldade para tomar posição clara e consciente. Exceto em casos de mobilizações específicas e feitas com ‘militantes’ ou ‘gente paga’.
O fato é que, para temas complexos, não há soluções fáceis e simples, principalmente nos campos da política, da economia, da tributação, da justiça social e da sociedade de uma forma geral. Na crise brasileira atual, se até os diagnósticos são discutíveis, imagine-se o que não ocorre com as soluções? E se as soluções precisam ser mais elaboradas e sofisticadas, elas fogem da compreensão e do entendimento da maioria das pessoas. Quero ressaltar que este meu entendimento não é fruto de qualquer comportamento discriminatório, posto que gostaria de ver, sem dúvida, toda a população participando de forma efetiva e objetiva de todas as principais decisões que, direta ou indiretamente, têm impacto na vida de todos os cidadãos. Mas como reiterado pelo professor de Teoria Política da UNESP, Marco Aurélio Nogueira: “o brasileiro médio tem fé e esperança. Vê o Estado como provedor geral e protetor. Por essa via, transfere sua expectativa para políticos habilidosos em explorar a ingenuidade popular. Não entende porque a elite nacional se mostra cega e indiferente à miséria e à pobreza. Deixa-se seduzir por quem se anuncia como “salvador”.
Assim como precisamos da participação crescente de cidadãos esclarecidos e conscientes, também precisamos de lideranças responsáveis e comprometidas com o bem do País. Mas isso somente será possível de tivermos um sistema político decente, muito diferente do que temos hoje, que está ‘apodrecido’ e ‘viciado’. A reforma política é imprescindível para que esse ‘ciclo vicioso da mediocridade’ instalada na política brasileira seja rompido. É preciso que a sociedade brasileira deixe de ser ‘infantil’ e acredite que não existem salvadores da pátria, papais Noel ou que tudo será diferente a partir de um determinado dia primeiro. É preciso ter coragem para abrir mão de privilégios eventualmente existentes, sair da zona de conforto e fazer o que precisa ser feito. É preciso agir. E para isso somos eleitores. Mesmo considerando que as eleições sejam manipuladas e controladas pelo poder econômico, são elas, dentro do sistema democrático, o único caminho para que a quase totalidade da população brasileira se expresse, conteste e eleja pessoas comprometidas com os interesses maiores da nação
Mesmo com a desinformação e a proposital difusão de notícias falsas e mentirosas, criadas pela ‘má fé’ de muitos, é preciso separar o “joio do trigo” e escolher bem. Escreveu a professora Betania Tanure (Valor de 22.12.17), “vivemos um tempo em que a única saída passa pelos homens e mulheres de bem (“ajustados”?), que precisam pôr sua competência a serviço de uma causa maior, uma causa que oriente a ação do indivíduo, da empresa e do País. O ideal, todos sabemos, é que a causa nos mobilize, nos impulsione para essa construção. Nesse caminho, sejamos realistas: se não for pelo amor, que seja pela dor. Se o mal é ousado, que o bem não se cale. Quando as luzes são acendidas sem medo, a sombra e a escuridão perdem espaço. Avante! Você pode, com certeza, contagiar.”
A Democracia, sem dúvida, é o único regime político no qual a correção de rumos é feita pela vontade da maioria. E se nossa classe política atual não é confiável, votar bem, nas próximas eleições é mais do que obrigação. É imprescindível.