É do conhecimento de todos que o Estado brasileiro, principalmente nos últimos anos, tem muita dificuldade para cumprir seu orçamento. Se por um lado os recursos do Tesouro Nacional, em face do desaquecimento da economia e consequente baixa de arrecadação, têm sido cada vez menores, por outro lado os gastos públicos, quase sem controle, tem aumentado muito acima do crescimento econômico. Para piorar, gasta-se muito mal. O resultado disso tudo é um crescimento insistente dos déficits fiscais e elevação perigosa da dívida pública.
Essa situação é agravada ainda mais quando computamos determinados programas de perdão de dívidas que os governos tem criado ao longo do tempo. São beneficiados, na maioria das vezes, pessoas físicas, jurídicas, estados e municípios que se caracterizam pelo não cumprimento das leis, pela irresponsabilidade fiscal e orçamentária, pela má administração e pela ineficiência. Portanto, indevidamente, parecendo que no Brasil atual a ordem reinante entre executivos públicos é descumprir orçamentos e jamais abrir mão de quaisquer dos seus benefícios, e entre executivos privados e cidadãos comuns, deixar de recolher corretamente seus tributos. Caso nada mude, os déficits das contas públicas tenderão a aumentar descontroladamente.
Segundo Idiana Tomazelli, do Estadão (20.08.17 - “Programas criados pelo governo podem perdoar dívidas tributárias”), o governo estuda a renúncia fiscal de cerca de R$ 78,1 bilhões. É claro que em um primeiro momento programas de parcelamento de dívidas (Refis) aumentam a arrecadação, pois obrigam os devedores a recolher parte do que deixaram de recolher em períodos passados. Mas é óbvio, também, que o perdão relativo a juros e multas nada mais é do que ‘abrir mão’, por parte do governo, de um montante enorme de recursos. O que se prevê, segundo Tomazelli: a) O “Programa Especial de Regularização Tributária (PERT)”, via MP 783, dará descontos nos juros de até 90% e nas multas de até 50%, para pessoas físicas e jurídicas que se propuserem a participar. E terão prazo de 15 anos para pagar. O valor total estimado dessa renúncia fiscal é de R$ 35,1 bilhões; b) MP 778, para estados e municípios regularizarem suas dívidas. O prazo é de 16 anos e 8 meses e os descontos propostos são de 80% nos juros e 25% nas multas. Estimativa de renúncia fiscal: R$ 35,4 bilhões; c) Parcelamento para devedores ao Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural – Funrural (MP 793): desconto de 100% nos juros e 25% nas multas. Prazo para pagamento: 15 anos. Renúncia fiscal estimada: R$ 7,6 bilhões.
Ainda, segundo a reportagem e afirmação do Sr. Carlos Roberto Occaso, subsecretário de Arrecadação, Cadastros e Atendimento, aproximadamente R$ 18,6 bilhões por ano deixam de ser arrecadados normalmente, fruto da inadimplência proposital realizada por contribuintes que sabem, que mais ‘dia-menos-dia’, benefícios como esses (perdão de parte da dívida e parcelamento a longo prazo, inclusive de Refis anteriores não cumpridos) sempre serão propostos pelo governo. Principalmente em épocas de dificuldades de caixa ou próximo a períodos eleitorais. Além disso, continua o Sr. Occaso, os Refis, em média, apenas conseguem arrecadar entre 2,4% a 6,5% dos débitos fiscais previstos. Em 2009, naquele que ficou conhecido como Refis da Crise, somente 23,9% dos débitos foram liquidados! E a renúncia fiscal com esse programa foi estimada em R$ 60,9 bilhões!
Não se deve esquecer também, dos “benefícios” criados pelo BNDES, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social que, como descrito em seu próprio site, tem como objetivos principais o financiamento de longo prazo para a realização de investimentos em todos os segmentos da economia, de âmbito social, regional e ambiental e o apoio a empreendimentos que contribuam para o desenvolvimento do Brasil, tais como a melhoria da competitividade da economia brasileira e a elevação da qualidade de vida da sua população. Enquanto os empréstimos repassados pelo BNDES às empresas eram cobrados a 7% ao ano, grande parte dos recursos liberados foi bancada por emissão de dívida pública, com juros de 10% ao ano, resultando num custo, para o País, de R$ 285 bilhões somente nos últimos dez anos. O PSI (Programa de Sustentação do Investimento) por exemplo, criado para combater a crise de 2008 e durar apenas um ano, “tornou-se parte da rotina e consumiu mais de R$ 500 bilhões para beneficiar um número limitado de empresas e agravou a situação das contas públicas sem evitar a recessão” (Rolf Kuntz no Estadão de 10/09/17).
Não é à toa que o Tesouro Nacional vem cobrando a devolução dos recursos repassados ao banco. Informações do próprio BNDES dão conta de que a dívida ao Tesouro Nacional chegou aos R$ 550 bilhões, dos quais R$ 100 bilhões já foram devolvidos em dezembro de 2016. Está sendo estudada a possibilidade de se devolver mais R$ 50 bilhões este ano e R$ 130 bilhões no ano que vem. À conferir.
Diante do momento atual, ainda sobre o BNDES, não é possível deixar de comentar o “episódio com os frigoríficos”, pois de acordo com informações do próprio banco, em reportagem do Estadão do último dia 20 (Alexa Salomão e Marcelo Godoy) “entre 2005 a 2016, dos R$ 14,5 bilhões liberados para a internacionalização de empresas brasileiras, R$ 11,7 bilhões (80,7%) foram para os frigoríficos”. R$ 8 bilhões (55,2%) somente para o grupo J&F.
Outro problema, que dificulta ainda mais o cumprimento das metas orçamentárias, é a existência de uma quantidade enorme de gastos obrigatórios, sobre os quais o governo de plantão, qualquer que seja ele, tem pouquíssimo gerência, a não ser cumpri-los como determina a legislação. Artigo de Adriana Fernandes e Idiana Tomazelli (Estadão de 20.08.17 – “Orçamento engessado”) ilustra essa grande dificuldade. Com base em informações do Ministério do Planejamento, e relativas ao mês de junho de 2017, o governo tem apenas 4,86% do orçamento total para gastar livremente (Despesas discricionárias – 3,33% e Gastos com o PAC – 1,53%). Enquanto isso os gastos relativos a benefícios previdenciários, nos quais o governo nada pode fazer a não ser pagá-los, representam mais de 57% do total das despesas da União. Segundo a Casa Civil da Presidência da República, e caso a reforma da Previdência não ocorra, os gastos do governo com pensões e aposentadorias em 2026 serão R$ 108 bilhões maiores do que hoje. Maior, portanto, que os orçamentos da saúde ou da educação.
Como se sabe, a maioria dos gastos públicos é obrigatória e quaisquer mudanças necessitam de providências demoradas, geralmente quase impossível de serem adotadas, uma vez que necessitam de aprovações do legislativo, sempre ‘envolvido’ em demandas políticas que, longe dos interesses da sociedade como um todo, estão muito mais voltadas ao atendimento dos diversos tipos de corporativismo e instituições organizadas específicas que se instalaram no País para obterem e manterem benesses governamentais.
Diante desse gigantesco problema, causado pela queda de arrecadação, seja pela diminuição das atividades econômicas ou pelas ‘desonerações’ e benefícios governamentais concedidos, parece evidente que ‘cortar’ investimentos tem sido uma das soluções encontradas, mesmo sabendo-se que estes são necessários para o crescimento econômico de médio e longo prazos. Reportagem da Folha de São Paulo do dia 10/09/17 mostram que os investimentos públicos atuais são os menores dos últimos dez anos (artigo de Maeli Prado e Mariana Carneiro). “Levantamento do Tesouro mostra que os gastos com investimentos caíram 13% desde o fim de 2013”. O PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) terá mais cortes em 2018.
Um dos claros exemplos, como comprovam os dados divulgados pelo Ministério dos Transportes, Portos e Aviação (MTPA) em seu Anuário Estatístico do Transporte/2010 a 2016, é o investimento público federal aplicado - valores efetivamente pagos - em transporte (rodoviário, ferroviário, hidroviário, portuário, aeroportuário, fundo da Marinha Mercante e Fundo Nacional da Aviação Civil). Segundo esse Anuário, no ano de 2010 os investimentos foram de R$ 19,7 bilhões e em 2016 foram de R$ 18,5 bilhões. Queda de 6,1%.
Já segundo dados da Pesquisa CNT (Confederação Nacional do Transporte), especificamente em infraestrutura de transporte rodoviário, o investimento público federal em 2001 foi equivalente a 0,13% do PIB, chegou ao pico em 2010, com 0,26% do PIB e, daí para frente foi caindo até chegar, em 2016, a 0,14% do PIB. Ainda segundo essa pesquisa, no ano de 2012 esses gastos (valores autorizados) foram de R$ 18,7 bilhões e em 2016 de apenas R$ 6,6 bilhões (em valores correntes).
É óbvio que as diversas fontes e todos os tipos de investimentos, ‘puxados’ pelo desempenho negativo do governo, também tiveram quedas. É o que mostra Cláudio R. Frischtak e João Mourão, em trabalho elaborado para o IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas) no contexto do projeto “Desafios da Nação” (22/08/2017). Os investimentos totais, que compreendem os setores público e privado, em transporte (rodoviário, ferroviário, mobilidade urbana, aeroportos, portos e hidrovias), representavam 2,36% do PIB na década de setenta e entre 2011 e 2016 alcançaram somente 0,85% do PIB.
Os estudos de Frischtak e Mourão mostram, portanto, que todos os investimentos em infraestrutura (telecomunicações, energia, saneamento e transportes) tiveram quedas significativas. Enquanto na década de 70 equivaliam 6,3% do PIB brasileiro, nos dez anos compreendidos entre 2001 e 2010 foram de apenas 1,96% do PIB, tendo uma pequena recuperação no período de 2011 a 2016, quando chegaram a 2,2% do PIB. Ou seja, atualmente investe-se em infraestrutura um terço do que se investia 46 anos atrás, quando calculados como percentual do Produto Interno Bruto!
Frischtak e Mourão vão mais além. Segundo seus estudos, o Brasil, com um estoque de infraestrutura equivalente a 36,2% do PIB em 2016, precisaria investir, durante 20 anos seguidos, 4,15% do PIB, isto é, mais do que o dobro dos investimentos observados no período 2001 e 2016 para alcançar um estoque de infraestrutura equivalente a 60,4% do PIB, percentual calculado como necessário para se alcançar melhor bem estar da população e aumentar a competitividade da economia. Resumo do estudo: “estamos muito distantes de uma infraestrutura que poderia ser considerada como aceitável para o país”.
Analisando-se 140 países em 2014, o Fórum Econômico Mundial, colocou o Brasil na 75ª posição em termos de infraestrutura. Com relação a qualidade, as rodovias brasileiras ocupavam a 121ª posição e os portos a 120ª posição. De lá para cá, só piorou. Lamentável.
Não é à toa, portanto, que o Brasil ocupa em 2016, no Índice de Desempenho em Logística, publicado pelo Banco Mundial, 55ª posição, em 160 países analisados. O LPI é montado com base na percepção de empresários e executivos entrevistados e os itens analisados, através de médias ponderadas, são: 1. Eficiência do processo de desembaraço (rapidez, simplicidade e previsibilidade do controle das fronteiras por parte das autoridades, incluindo as alfândegas), 2. Qualidade do comércio e infraestrutura relacionada com o transporte (portos, ferrovias, estradas e tecnologia de informação), 3. Facilidade para contratar o transporte com preços competitivos (disponibilidade de empresas transportadoras, concorrência, poder de barganha), 4. Competência e qualidade dos serviços logísticos (Operadores de transporte, agentes de carga, despachantes), 5. Capacidade de rastreabilidade da carga, 6. Integridade de Schedule (Cumprimento dos prazos de entrega previstos).
De acordo com o IMD - Índice de Competitividade Mundial, elaborado pelo World Competitiveness Yearbook em parceria com a Fundação Dom Cabral, o Brasil em 2015, ocupa a 56ª posição. No item relativo à eficiência do governo, o País está na penúltima posição em 61 países analisados. Outros itens que colaboraram para queda da competitividade foram: baixa confiança nas instituições brasileiras, desequilíbrio nas contas públicas, baixa capacidade de inovação e baixo índice de qualidade na educação.
Frischtak e Mourão resumem: “atualmente o Estado brasileiro (e suas empresas) investe cerca de 0,9% do PIB em infraestrutura, e o setor privado em torno de 1,05 % (em 2016). O esforço adicional de no mínimo 2% do PIB será necessariamente do setor privado, dado o esgotamento fiscal do Estado”.
Consequentemente, é vital a realização dos programas de privatização já previstos e outros que poderão ser estudados e implantados no futuro, pois além de contribuir para a retomada dos investimentos – mais do que necessários para a geração de empregos e renda, e portanto de crescimento econômico – eles são fundamentais para o desenvolvimento do País e, como efeito colateral de curtíssimo prazo, de fortalecimento do caixa do governo.
Na medida em que o governo abre mão de determinadas atividades econômicas e as transfere para o setor privado – geralmente com maior produtividade - ele tem melhores condições para focar suas principais atribuições, tais como segurança, saúde e educação. Vale, aqui, reproduzir parte do Editorial do Estadão do dia 25 pp (“Uma chance de recomeçar”): “No Brasil, além de racionalidade e eficiência econômica e administrativa, outros motivos justificam a privatização: despolitizar e desaparelhar a gestão pública que, como se sabe, tem sido ineficiente, ideológica e corrupta: estrategicamente obsoleta, politicamente loteada e economicamente ineficiente. A pilhagem e a bandalheira nos contratos e o desperdício, em projetos mal feitos, mal avaliados ou de má-fé, geram perdas econômicas e sociais incalculáveis. É o atraso”.
Estão aí, como exemplos de sucesso, o sistema de telefonia e a Embraer. Como exemplo de insucesso a Eletrobrás. “Privatizar não é, como disse Dilma Rousseff, a respeito da Eletrobrás, ‘abrir mão da segurança energética’. Insegurança foi deixar nas mãos dela... Intervenção estatal não é sinônimo de eficiência ou de segurança. Vender estatais é complemento aos programas de reformas fiscais, de controle e gestão”, comentou Sérgio Lazzarini em artigo para a revista Veja desta semana.
Volto aqui, a repetir o que já escrevi em outros textos. Se a solução para a crise econômica instalada no Brasil passa pelo equilíbrio das contas públicas e a aprovação de algumas reformas (a da Previdência é imprescindível), é necessário que os déficits primários estabelecidos sejam respeitados, tanto para 2017 como para 2018, pois confiança e credibilidade são fundamentais na retomada dos investimentos, notadamente aqueles voltados à infraestrutura de transportes e com decisiva e significativa participação do setor privado. Seja lá qual for o governo.