Em era de incertezas, manter a democracia é fundamental*

Publicado em
21 de Fevereiro de 2017
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Em artigo publicado aqui mesmo no Guia do TRC, em 23/11/16 (“A recuperação do Brasil é difícil por si só, mas se depender de grande parte dos políticos brasileiros, ela será impossível”), comentei o fato de que, “apesar de não haver tempo a perder, nossos políticos (em todos os poderes e nas três esferas de governo), como se vivessem em outro mundo, trabalham e se ocupam para resolver outros problemas. Na verdade, seus próprios problemas” (1). E ainda se “dão ao luxo”, a maioria deles, de mentir com uma desfaçatez de “fazer inveja”. São dignos representantes da chamada “era da pós-verdade” (2), na qual a verdade pouco importa, mas sim, a versão

Como escreveu Henry Kissinger, em seu livro “Ordem Mundial” (3), mesmo sobre as mesmas e até verdadeiras informações, as pessoas discordam do seu significado e têm compreensões diferentes, seja por ignorância, por conveniência ou mesmo má fé. Imaginem, e aqui vai minha pergunta, o nível e a quantidade de divergências existentes quando a análise que se faz está baseada em meias-verdades, informações mentirosas ou dúbias e para uma população na qual 13 milhões são analfabetos? 

A crise pela qual passa o Brasil não tem precedentes em toda a sua história, mas ela é mais agravada ainda, em face do excesso de informações falsas, distorcidas, mentirosas e que divulgadas a todo o momento, confundem o entendimento e a correta compreensão para a maioria das pessoas. 

É de conhecimento público que as soluções para a gravíssima crise pela qual passa o Brasil deverão ser “dolorosas” e com grandes custos para toda a sociedade, principalmente aquela mais pobre. Isto já é bastante visível atualmente. E os possíveis resultados, quando vierem, somente serão percebidos no médio prazo. Mas o País já alcançou, aqui e agora e infelizmente, a marca de mais de 12 milhões de desempregados! A retomada da geração de empregos é urgente, pois até o relógio conspira contra (4). 

Uma vez controlada a inflação e aprovada a PEC do Teto dos Gastos, que pelo menos inibe o crescimento das despesas e dos gastos públicos de forma exagerada, é fundamental que o governo estabeleça, como principal prioridade, o combate ao desemprego. É fato inquestionável que o maior desalento brasileiro do momento é o desemprego (5) e que este, antes de melhorar, terá seus índices ainda piorados por, pelo menos, até meados deste ano (6). O desemprego, num período recessivo de longo prazo como este, é a última variável macroeconômica a conquistar índices positivos. 
 
Editorial da Folha de São Paulo do último dia 16 (“O elo mais fraco”) comenta o relatório do Banco Mundial que comprova, lamentavelmente e “pela primeira vez em mais de uma década” o aumento no número de brasileiros pobres e miseráveis como consequência da grave recessão econômica ainda “vigente” no Brasil. Ainda, segundo o Editorial, a taxa nacional de pobreza elevou-se de 7,4% para 8,7% em 2015, em razão da alta brusca do desemprego (grifos meus). Para 2016 espera-se que esse percentual chegue aos 10% da população brasileira. A consequência imediata é a de que o Brasil, ainda em 2017, tenha mais pobres e miseráveis do que tinha nos anos de auge da crise. Vale relembrar que o combate à pobreza se dá, entre outras ações, com emprego!

Mas mesmo aqueles que estão empregados, e quase de uma forma generalizada, tem seu humor afetado e vivem com “medo” de perder o emprego. Recente pesquisa realizada pela CNI (Confederação Nacional da Indústria) dá conta que o percentual de pessoas que estão com medo de perder o emprego saiu de 48% em 2010 e chegou a 82% em 2016 e com tendência de aumento (7). 

Por outro lado, no início deste ano, a Oxfam, organização não governamental britânica, apresentou alguns números sobre a desigualdade mundial: desde 2015, apenas 1% da população global concentra em mãos mais riqueza que os 99% restantes! Thomas Picketty, economista inglês e famoso por ter escrito diversos livros sobre economia e distribuição de rendas, sendo um dos principais, “O Capital no Século XXI” (8), em pesquisa recente, mostra que, nos últimos trinta anos, enquanto a renda do 1% mais rico nos EUA aumentou 300%, a renda dos 50% mais pobres não se alterou! 

No livro citado, ainda, segundo Picketty, “a evolução dinâmica de uma economia de mercado e de propriedade privada, deixada à sua própria sorte, contém forças de convergência importantes, ligadas sobretudo à difusão do conhecimento e das qualificações, mas também forças de divergências vigorosas e potencialmente ameaçadoras para nossas sociedades democráticas e para os valores de justiça social sobre os quais elas se fundem” (grifos meus). 

Picketty procura demonstrar, em seu livro, que a taxa de crescimento econômico é inferior à taxa de rendimento do capital, o que faz com que haja aumentos na concentração de renda e da riqueza, com consequências diretas no aumento da desigualdade. Isto, num processo vicioso e elevado ao extremo, traduz-se em descontentamento das populações e em riscos aos valores democráticos. Ressalve-se a crença de Picketty, porquanto ele acredita que a “intervenção política já foi capaz de reverter tal quadro no passado e poderá voltar a fazê-lo”. Desde que, acrescento, a Política acelere “seus passos”, uma vez que, nos dias atuais, ela está muito atrasada quando a comparamos com a Economia. Esta sim, avançando muito mais rapidamente. 

A concentração de renda e de riqueza, em todo o mundo, não é uma novidade. Aliás, como já apontado por Jacques Attali (“La voie humaine”) no início deste século, noventa por cento da riqueza total do planeta pertencem a apenas 1% da população mundial e “não há, à vista, ‘quebra-mares’ suficientes para deter a maré global de polarização da renda, que continua aumentando de maneira ameaçadora” (9).

Portanto, seja por motivos estruturais ou conjunturais, seja por movimentos mundiais com grande capacidade de impactar nossos países, nos quais pouco se pode fazer, ou pela total incompetência na administração interna de um país, o fato indiscutível é que o crescimento da concentração de renda tem contribuído, junto com outros motivos tão ou mais importantes, para um crescimento ainda maior da desigualdade social que, por sua vez, gera um clima de insatisfação e intolerância que afeta a todos. Os valores democráticos estão, sem dúvida, sendo ameaçados como jamais estiveram em toda a sua história. E não só no Brasil! (10).

É sabido que enquanto os governos, na maior parte do mundo, se não em todo, estão cada vez mais impotentes para administrar e gerenciar as crises, agora cada vez mais frequentes, as pessoas, por seu lado, estão cada vez mais insatisfeitos com o rumo ‘das coisas’ e, principalmente, com a falta de competência e de compromisso de seus governantes. No caso brasileiro deve-se acrescentar, também, a falta de vergonha.  

Não é à toa que o aumento da desobediência civil, da violência, da criminalidade, do terrorismo e a generalização de conflitos entre pessoas, nações e países, se vê por todo o planeta, também de forma globalizada, submetendo a maior parte a população mundial atual (inclusive dos países mais desenvolvidos) a viver numa era de incertezas e aterrorizada pela ‘insegurança’ quase que total (11).

Ora, quem acompanha minimamente o noticiário sobre o Brasil sabe que nosso País é um fiel retrato (acredito que piorado, em alguns aspectos) daquilo que se passa no mundo. Mesmo sendo um País pouco afetado pelo terrorismo internacional, o grau de violência (e até de anarquia) e de insatisfação alcançados são típicos de uma sociedade agonizante, nos quais o “establishment” e uma grande parte dos poderes constituídos, não conseguem ter credibilidade e confiança suficientes para fazerem o País voltar à normalidade e retomar o caminho do desenvolvimento. 

Muito pelo contrário, pois em face do comportamento indiferente da maioria dos políticos e governantes brasileiros têm-se quase a certeza de que, com essa classe dirigente jamais avançaremos. Criam-se, portanto, espaços para o crescimento dos movimentos extremistas (12) de direita ou de esquerda, da xenofobia (13), do preconceito e da discriminação. 

Vale à pena repetir, na íntegra, alguns trechos do que escreveu o historiador e jornalista Marco Antonio Villa, no jornal O Globo, no último dia 14: “A questão central é que a velha ordem quer se manter a todo custo no poder”... “O risco de a crise política se transformar em crise social é grande. As finanças estaduais estão exauridas. Os serviços públicos estão sucateados. O desemprego é alto. E a falta de rápida e severa punição dos crimes de corrupção acaba desmoralizando as instituições e estimulando o desprezo pela democracia”. “No horizonte, nada indica que a elite política tenha consciência da real situação do país. A crise não frequenta os salões de Brasília. Lá a vida continua bela — como sempre” (14).

Como se vê, um cenário extremamente ruim e que, se não for alterado -  inclusive através da imprescindível participação da população, que precisa exigir maior celeridade, maior esforço e dedicação das classes dirigentes, no trato das ‘coisas públicas’ - num breve espaço de tempo, poderá colocar em xeque também nossas esperanças. 

(1)    Que no momento somente se preocupam em tomar providências relativas às suas defesas nos escândalos de corrupção. É visível o fato de que o Executivo, parte do Congresso Nacional (incluindo os presidentes das duas casas) e das lideranças empresariais, mobilizam-se freneticamente para abafar a Operação Lava Jato e combater quaisquer propostas de leis e/ou medidas que tenham como objetivo o combate à corrupção e à punição a seus crimes.

(2)    Ao eleger o termo “pós-verdade”, como o termo do ano de 2016, a Oxford Dictionaries quis enfatizar o fato de que, agora utilizado de forma frequente, esse termo deixou de ser periférico para se tornar central em quaisquer comentários políticos. Casper Grathwohl, presidente da Oxford Dictionaries em entrevista para o “Washington Post” disse que “a leitura de muitos acadêmicos e da mídia tradicional é que as mentiras fizeram parte de uma bem sucedida estratégia de apelar a preconceitos e radicalizar posicionamentos do eleitorado. Apesar de claramente infundadas, denunciar essas informações como falsas não bastou para mudar o voto majoritário”.

(3)    “As causas desses conflitos (no interior ou entre sociedades) não têm se limitado à inexistência de informações ou à incapacidade de compartilhá-las”. Eles têm surgido porque, “embora diante da mesma fonte de material a ser examinada, indivíduos têm discordado sobre seu significado ou sobre o valor subjetivo daquilo que ela descreve”. “Nos casos em que valores, ideais ou objetivos estratégicos estão em contradição fundamental, a exposição e a conectividade podem finalmente tanto alimentar confrontações como amenizá-las”. (Ordem Mundial, Henry Kissinger, Ed. Objetiva, 2015).

(4)    “Democracia e Emprego”, escrito por mim e publicado neste Portal dia 18.01.2017 tratou deste assunto: “O desemprego é consequência e ao mesmo tempo, causa, não só das crises política e econômica que se mantêm ‘firmes e fortes’, apesar de todos os esforços realizados até aqui, mas também de uma crise social que, sem controle, poderá gerar problemas muito mais profundos e sérios para o Brasil. O País não pode e não deve correr esse risco e nem, tampouco, criar condições para que o ambiente de insatisfação popular seja ainda maior, no qual os movimentos contrários à Democracia e que se caracterizam “pelo cerceamento do pluralismo e pela intolerância ao contraditório” prosperem (grifos meus).

(5)    Não ter emprego, segundo Bauman, “implica ser descartável, talvez até ser descartado de uma vez por todas, destinado ao lixo do ‘progresso econômico’”. O resultado desse ‘progresso econômico’, reduz-se “em última instância, a fazer o mesmo trabalho e obter os mesmos resultados econômicos, porém com uma força de trabalho mais reduzida e com ‘custos de mão de obra’ menores que antes” (“Tempos Líquidos, de Zygmunt Bauman, Editora Zahar, 2007).. 

(6)    Artigo do jornalista Rolf Kuntz, publicado no Estadão do dia 08/01/17 (“Entre os bons sinais da inflação e risco Trump”) vai direto ao ponto: “a oferta de emprego demora a crescer quando a economia sai de uma recessão (grifos meus). Essa tendência tem sido geralmente confirmada pela experiência de muitos países. Na fase inicial as empresas conseguem aumentar a produção sem novas contratações. Só depois de algum tempo, quando a recuperação começa a se consolidar, as contratações são retomadas”. Verdade, infelizmente.

(7)    O estudo (Indicador de Medo do Desemprego - IMD) é elaborado trimestralmente e tem, como base, pesquisa de opinião por domicílio realizada pelo IBOPE Inteligência. Os entrevistados, não só com relação a eles, mas também com relação às pessoas de sua família, têm que escolher entre três alternativas: “muito medo de ser afetado pelo desemprego”, “pouco medo de ser afetado pelo desemprego” ou "não está com medo de ser afetado pelo desemprego". Matéria a respeito foi publica pelo Nexojornal no último dia 15, que mostra, inclusive, os resultados por diferentes grupos sociais, por região, gênero e faixa salarial (https://www.nexojornal.com.br/grafico/2017/02/15/O-medo-do-desemprego-no-Brasil).

(8)    “O crescimento econômico moderno e a difusão do conhecimento tornaram possível evitar o apocalipse marxista, mas não modificaram as estruturas profundas do capital e da desigualdade – ou pelo menos não tanto quanto se imaginava nas décadas otimistas pós-segunda guerra mundial” (O Capital do Século XXI, Thomas Pickety, Editora Intrínseca, 2015).

(9)    Segundo Attali, citado no livro “Tempos Líquidos”, de Bauman, “metade do comércio mundial e mais da metade do investimento global beneficiam apenas 22 países, que têm apenas 14% da população do planeta, enquanto os 49 países mais pobres, responsáveis por 11% da população mundial, recebem somente 0,5% do produto global” (“La voie humaine, Editora Fayard, 2004).

(10)    Tzvetan Todorov, filósofo e historiador búlgaro, falecido no último dia 7, publicou em 2012, “Os Inimigos Íntimos da Democracia”. Ali ele escreveu sobre a corrosão da democracia no mundo contemporâneo, a ameaça à cidadania, diante do cinismo dos políticos tradicionais e da ascensão dos movimentos populistas à direita e à esquerda. (www.nexojornal.com.br – “As ideias de Tzvetan Todorov em 7 reflexões”, por Juliana Domingos de Lima, em 08.2.17).

(11)    A segurança, segundo Bauman, é um dos dois valores essenciais da humanidade. O outro é a liberdade (“Para ser feliz há dois valores essenciais que são absolutamente indispensáveis: um é segurança e o outro é liberdade. Você não consegue ser feliz e ter uma vida digna na ausência de um deles. Segurança sem liberdade é escravidão. Liberdade sem segurança é um completo caos. Você precisa dos dois”). Grifos meus.


(12)    Tanto a direita como a esquerda, embora de formas diferentes, mas sempre através de políticas populistas, procuram se “apropriar” das populações excluídas para transformá-las, infelizmente, em massas de manobra. O Brasil também, com características razoavelmente diferentes, também tem esse fenômeno em andamento. Políticos da direita brasileira, agora mais à vontade, e da esquerda agonizante, mantêm seus discursos pautados em benesses populistas.  

(13)    “O século 21 se apresenta como aquele em que muitos homens e mulheres deverão abandonar seu país de origem e adotar, provisória ou permanentemente, o status de estrangeiro. (...) Todos os países estabelecem diferenças entre seus cidadãos e aqueles que não o são, justamente os estrangeiros. [Eles] não gozam dos mesmos direitos, nem tem os mesmos deveres. (...) Isto nos atinge a todos, porque o estrangeiro não é só o outro, nós mesmos o fomos ou o seremos, ontem ou amanhã, ao acaso de um destino incerto: cada um de nós é um estrangeiro em potencial”

“Pode-se medir nosso grau de barbárie ou civilização por como percebemos e acolhemos os outros, os diferentes. Os bárbaros são os que consideram que os outros, porque não se parecem com eles, pertencem a uma humanidade inferior e merecem ser tratados com desprezo ou condescendência. Ser civilizado não significa haver cursado estudo superior ou ter lido muitos livros (...): todos sabemos que certos indivíduos com essas características foram capazes de cometer atos de absoluta barbárie. Ser civilizado significa ser capaz de reconhecer plenamente a humanidade dos outros, ainda que tenham rostos e hábitos diferentes dos nossos”

Trechos do discurso de Todorov ao receber o Prêmio Príncipe de Astúrias por sua contribuição às ciências sociais, em 2008. Todorov, ao prever a crise de refugiados na Europa, disse que ‘ser civilizado significa ser capaz de reconhecer plenamente a humanidade dos outros’ (www.nexojornal.com.br – “As ideias de Tzvetan Todorov em 7 reflexões”, por Juliana Domingos de Lima, em 08.2.17).

(14)    “Voltar às ruas. O impeachment somente destampou a panela de pressão. Crise se agravará após as revelações das delações da Odebrecht”, Marco Antonio Villa, O Globo de 14.02.2017.

* Paulo Roberto Guedes é consultor de empresas e professor do curso de Logística Empresarial do GVPec, da EAESP/FGV.

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